2024 – #30 e #31 – Renascer e Morrer

Clyar abriu os olhos e percebeu uma multidão a seu redor. Todas as pessoas encaravam aquele ser recém vindo ao mundo. Não entendia muito bem o que estava acontecendo. Tentou se levantar, mas não tinha certeza de como fazer isto. Seu cérebro ainda não tinha entendido como enviar informações aos membros. Percebeu sua locomoção limitada e entendeu que teria que desenvolver essa noção de corpo aos poucos.
– Porque há tantas pessoas em volta me observando?
A pergunta martelava os pensamentos de Clyar, que conseguia se lembrar vagamente do que acontecera. Sua memória, apesar das falhas e lacunas, trazia fogo, calor, um sentimento muito forte, impossível de ser descrito em palavras.
Dor, agonia, ansiedade, vontade de mudar. Tudo isso era sentido por Clyar, que conseguia descrever perfeitamente enquanto via as pessoas se aproximarem. As pessoas vinham e postavam suas mãos de fuligem em sua cabeça, balbuciavam algo de difícil compreensão, viravam as costas e iam embora para que outras pessoas fizessem o mesmo.
Esse processo tardou alguns dias para que pudesse terminar, até que todas as pessoas repetissem o gesto. Nesse tempo, Clyar tentava se lembrar do que acontecera antes, para compreender a razão de toda aquela comoção social. Conseguiu mexer as articulações, mas ainda não conseguia ficar de pé. Não haviam forças e nem coordenação para tal.
Clyar se lembrou de que estava subindo uma escada de fogo, suas mãos se queimavam a cada degrau. Tal constatação era comprovada pelas feridas de queimaduras em suas palmas. Sentia medo, sentia dor, não entendia porque se lembrava de momentos tão traumáticos. Na sua lembrança a escada não tinha um fim, pelo menos não enxergava para onde iria.
A base da escada era em um lugar limpo, colorido, fresco. Tudo parecia perfeito demais. Clyar se lembra das pessoas sorrirem. Elas possuem casas, trabalhos, salários, televisão, bares, carros, família, todo tipo de alimentação. Mas algo não estava certo. Clyar desconfiava que aquilo não era real.
Se lembrou de encontrar uma escada e começar a subir. A escada não tinha fim. Seus degraus pegavam fogo, e a cada metro alcançado a dificuldade aumentava.
Após semanas de intenso esforço, sua energia estava por terminar. Pensou em desistir e retornar para a base da escada, viver o trajeto que os deuses escolheram, e seguir sem maiores problemas. Mas isso se tornava cada minuto mais impossível, a queda seria demasiada alta.
Clyar tinha a certeza de que toda aquela apatia da vida não era a única possibilidade.
Uma grande explosão surgiu de repente, destruindo todo seu corpo, eliminando toda e qualquer matéria presente. Era o fim da escada e, por conseguinte, da subida.
Clyar transpassou um limite que ninguém jamais havia ousado ultrapassar.
A morte do corpo enquanto matéria revelou algo que até então era completamente desconhecido para Clyar.
Ao abrir os olhos novamente, finalmente compreendeu o que se passava à sua frente. Pessoas livres celebravam a ousadia de alguém que ousou cursar um caminho distinto. Desafiou os trajetos divinos e pagou caro pela escolha. Pagaram caro.
Mas valeu a pena.
Voltou a memória, voltaram os movimentos. Tudo era novidade, vivenciado sem precedentes.
Uma sensação indescritível tomou conta de Clyar.
Foi a primeira vez que sentiu a liberdade.



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La Idea

um gravador, que faz gravuras; um bicicleteiro que anda de bicicleta; um rugbr que joga rugby.

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