[Stencil] A Grande Onda de Kanagawa

Interesse

Não me lembro bem quando foi que essa imagem se fixou tanto no meu imaginário. Mas gosto de pensar que o interesse que tenho em fenômenos da natureza geraram essa fixação. Em 2004, acompanhei atentamente todos os vídeos curtos e de baixa qualidade que circulavam na internet mostrando o tsunami da Indonésia. Tragédia que eu assistia o tempo todo, cada segundo de gravação. Quando entrei no curso de Geografia em 2009, devorava os livros de geologia e de cartografia, minhas áreas preferidas. A primeira e única vez que vi um vulcão foi em 2012, sobrevoando a Cidade do México. Paixão à primeira vista. Vejo vídeos de terremotos em diferentes localidades e fico imaginando como será essa sensação da terra se mexendo. Vi praticamente todos os vídeos do tsunami de Fukushima, 2011, além de ver vários vídeos de erupções vulcânicas, inclusive o canal ao vivo das Ilhas Canárias. Me lembro bem da minha professora Mônica, de geologia, falar sobre vulcões que expeliam lava continuamente na América Central. E até hoje eu tenho o desejo de ver isso ao vivo. Natureza que tudo destrói. Não é um sonho de destruição, mas uma certa admiração da nossa pequenez frente ao mundo.
Esse interesse que eu tenho de vivenciar certos fenômenos que inexistem atualmente nesse pedaço de terra em que vivo são algo que me movem. Imagino que observar a gravura “A Grande Onda de Kanagawa”, do mestre Katsushika Hokusai, talvez me traga um pouco dessa sensação. Não me lembro qual a primeira vez que a vi, mas me lembro bem de analisar cada centímetro desta gravura.

Produção

Foi em 2013 que eu tive a ideia de começar a reproduzir “obras de arte” com a técnica do stencil. Me propus a cumprir o desafio de logo começar com a imagem que circula no meu imaginário. De tanto observar os elementos da gravura, já tinha uma noção de como fazer. O processo não foi nada fácil. Na época, eu não sabia fazer separação de cores no Photoshop, e o processo foi completamente manual. Fiz uma impressão da gravura em tamanho aproximado de A3. Separei uma dúzia de radiografias, papel carbono branco, e fiz o decalque e as separações de cores de forma completamente manual. Não tinha noção de como iria ser o resultado, até porque tinha dúvidas se meu daltonismo me permitiria compreender as diferenças tonais. Mas não perdi muito tempo com a ansiedade e logo já comecei os cortes.
As camadas possuíam diferentes níveis de complexidade. O que era água, seriam três cores, sendo a primeira com muitos detalhes e dando contra forma à parte branca da onda, e outras duas camadas tonais complementares.
O céu, apenas duas camadas, envolvidas em borrifos e degradês para simular os tons da gravura original. As canoas, duas camadas de cores, tom sobre tom. As pessoas, apenas a camada das roupas.
Por último, o mais complexo. Uma camada de linhas finas que estariam em toda a imagem; repleta de pequenos detalhes essenciais para uma boa visualização; e uma última camada com as bolhas brancas saindo das ondas, além do papiro de informações sobre a obra que, nesta imagem, está presente no céu. Ambas camadas apenas funcionariam se todo o encaixe das cores anteriores estivessem perfeitos.

Uma questão que me deixou bastante inseguro no início foi a utilização das cores. E, nesse sentido, me esbarrei em duas questões:
– Em primeiro lugar, cada referência da imagem que eu encontrava nas buscas online me traziam cores distintas para a água e, de forma ainda mais evidentes, para o céu ao fundo. As variações eram enormes.
– Em segundo lugar, eu estava sujeito à disponibilidade das cores em spray que eu encontrava. Não é uma tarefa fácil achar a tonalidade certa, depende da marca e da disponibilidade da loja em ter o que precisamos. Isso, sem contar, que a cor de referência da lata nem sempre é a mesma da tinta quando pintada.

Lágrimas

Em 2015, tive a oportunidade de ver uma impressão da gravura ao vivo, no Metropolitan Museum. Vi tudo com meus próprios olhos e boatos dizem que algumas lágrimas escorreram. Ver a gravura in loco é muito diferente de ver as digitalizações, com suas correções de matiz e contrastes. Ver de perto cada veio da madeira que aparecia na impressão, a utilização das cores e degradês, cada detalhezinho de entalhe. Tudo isso me emocionou bastante.

Acho que essa experiência me trouxe uma sensação de que tudo que eu tinha visto antes era bem diferente, que as imagens de internet são em muito superadas pelas experiência ao vivo. Pra quem curte pensar na técnica, no processo, penso que somente o contato direto dos olhos com a impressão nos permite ver a grandeza e a riqueza dos detalhes, a forma de entalhe e tratamento da madeira, o sangue e o suor que ali foram depositados.
Por incrível que pareça, ver a gravura ao vivo me deixou mais confiante em experimentar outras combinações de cores, tentar criar outras atmosferas, ousar mais.

Acho que a experiência de ter feito esse stencil, todo de forma manual, me trouxe uma sensação das próprias limitações das técnicas, apresentando suas diferenças estéticas e uma sensação de que, cada vez mais, a xilogravura é algo muito mais complexo que uma mera estética.
“A Grande Onda de Kanagawa”, com toda sua fúria e sua beleza, abraçando o Monte Fuji, enquanto navegantes são espectadores e participantes deste momento, é algo que me toca profundamente.

Vídeo curto sobre as etapas de produção

Talvez as pessoas não tenham noção do que foi pensar e produzir essa impressão em stencil. Do trabalho em cortar, do trabalho em imprimir todas as 9 camadas de matrizes, com aproximadamente 14 cores sendo utilizadas. A dimensão disso tudo se perde com o tempo, e apenas o produto é apresentado, com suas falhas de impressão, borrões de tintas, inexatidão de cores. Mas acho que talvez tenha sido um processo tão relevante e significativo para mim que não posso ignorá-lo do meu histórico. O tempo de observação, os cuidados com o corte, a reflexão sobre as cores. O processo de impressão em time-lapse pode ser conferido a seguir. Produção de várias impressões em spray, muitas delas com cores experimentais e muita paciência.

Processo completo de impressão de todas as camadas

Homenagem a Nêgo Bispo

Antônio Bispo dos Santos faleceu dia 3 de Dezembro de 2023. Eu me lembro bem do momento em que fiquei sabendo da triste notícia. Eu estava em Brasília, participando da Feira Gráfica MOTIM, que teve esta edição no Museu Nacional. Eu olhava para minhas gravuras expostas, e com destaque na minha banquinha havia a “Transfluência“, a gravura que fiz a partir de uma entrevista com Nêgo Bispo presente no livro “Mobilidade Antirracista“. Eu me inspirei muito na época ao ler cada palavra de Bispo. Já fazia um tempo que não produzia nada tão significativo e profundo, e esse foi um trabalho de pesquisa conceitual e imagético que me fez gastar muita energia no desenvolvimento. E é curioso porque muitas pessoas se interessam pela gravura, pela postagem que fiz falando sobre o processo de produção dela, mas ela está longe de ser um produto lucrativo pra mim. Acho que até hoje eu vendi apenas 1 cópia dela, para um casal de médicos que haviam parado na minha banquinha numa feira em BH. Mas talvez esse diálogo sobre tentar ~viver de arte~ não seja o mais adequado para este momento. Desde o dia 3 que eu fico pensando no que poderia fazer para prestar essa homenagem à uma pessoa que me tirou um pouco da inércia de ideias, e me fez repensar um pouco sobre a forma como eu produzia algumas coisas, sobre algumas associações que fazia enquanto artista visual. A entrevista dele me fez voltar a pesquisar para produzir. E eu digo que estava em dúvidas se fazia uma homenagem ou não com o receio de cair no oportunismo capitalista de almejar lucro aproveitando o momento do óbito de alguém. E isso não é e nunca será minha intenção aqui. Hoje eu entendo o quanto eu gostaria de agradecê-lo pelas ideias que ele expressou e que ecoaram na minha cabeça. Talvez ele nunca saiba da importância que ele teve na minha vida. Hoje mesmo eu estava pensando se eu tomei conhecimento da existência dele tarde demais… Mas acho que eu o conheci no momento certo em que suas ideias dialogavam as minhas. Tudo vibrou na mesma frequência.

Hoje eu fiz uma ilustração do Nêgo Bispo usando a referência de uma fotografia em que ele apoiava a cabeça nas mãos que se entrecruzavam na nuca. Ele olhava para cima, descansado e tranquilo. Um momento de paz e suavidade. Ao fundo, coloquei a imagem em marca d’água da gravura que fiz baseado nele, Transfluência. Nessa ideia, o conhecimento dele seguirá viagem através de outras matérias, e se recriará em outros povos. Tudo segue conectado.

VIDA LONGA NÊGO BISPO! OBRIGADO POR TUDO!

[xilogravura] Andina

O ano era 2014. Havia pouco tempo que eu havia ingressado, a partir do processo de transferência, ao curso de Artes Visuais da UFMG. Eu andava bem frenético no que referia à produção artística. Em 2012 havíamos vivenciado um cotidiano fronteiriço em Ciudad Juárez, México, e minha energia produtiva andava bem aquecida e estimulada por esta riquíssima experiência.
Eu conheci a linoleogravura enquanto estudante de Artes Visuales, no Taller de Grabado que eu frequentava em Cd. Juárez. Foi amor à primeira vista. No México, o acesso a materiais de gravura, matrizes, ferramentas e referências é muito mais amplo que aqui no Brasil. Inclusive, as ferramentas que comprei lá, e que eram as mais baratas, são as mesmas que uso até hoje.
São técnicas beeeem populares, pois existiram (e ainda existem) várias gráficas populares na região. No Brasil, a gráfica ficou restrita por muito tempo apenas à família real, e as ideias não circulavam tanto quanto na parte do continente colonizada pelos hispânicos (Mas essa história do desenvolvimento e popularização da gráfica talvez seja uma pesquisa para outra postagem).
Na minha tentativa de desenvolver mais a técnica, passava boa parte do meu tempo pesquisando artistas, processos, técnicas e temáticas. Que eu incorporei a cultura da região do México na minha produção não é novidade para ninguém. Basta ver meu portfolio que essa temática fica escancarada. Mas algo que eu incorporei foi esse amor ao processo gráfico artesanal, de pensar, refletir, produzir, e trazer ao público minha produção de maneira acessível.
Por isso me recuso a vender gravuras por valores irreais às condições econômicas de pessoas comuns, ainda que algumas tenham valor mais elevado, mas isso se deve, muito, aos materiais que aqui nos custam muito caros. Não gosto de fechar e limitar edições de gravuras cujas matrizes ainda podem ser reproduzidas, e sempre tento levar meu trabalho para outros suportes, como lambe-lambe e camisetas. Assim, garanto uma forma de acessibilidade visual que foge à lógica de galerias, por exemplo.


Os esboços em meus caderninhos são algo que eu curto fazer enquanto processo produtivo. Acho que é a forma mais sincera de se começar algo. Me lembro bem que eu treinava desenhos a partir de fotografias de pessoas, e eu curtia muito trabalhar os tecidos que apareciam. Gostava de observar e de representá-los de alguma maneira gráfica.

Não sei exatamente como essa fotografia surgiu na minha vida. Mas várias coisas me chamam atenção nela. A quantidade de pano, com muitas tonalidades e texturas; o olhar da mulher; o olhar da criança; a paisagem. É uma fotografia interessante aos meus olhos em vários aspectos. Até porque, nesta época, os temas que envolviam maternidade, mulheres e crianças em processos históricos (sobretudo de lutas) era algo que me chamava muita atenção.
Não pude perder a chance de praticar desenhos e logo abri meu bloquinho A5 para esboçar alguma coisa. As tramas do pano foram algo que me trouxeram a ideia de transformar a imagem em uma xilogravura. Várias linhas paralelas, de diferentes espaçamentos e espessuras, ditavam o ritmo. Essa textura parecia maravilhosa para um gravador iniciante.
O processo foi relativamente simples. Digitalizei a página do bloquinho, ampliei para um formato A3, imprimi. Na folha impressa, trabalhei com marcadores a base de álcool na cor preta, para criar os preenchimentos, volumes, vazios. Criei de forma manual uma imagem com linhas e formais mais rígidas, já pensando em uma estética própria da xilogravura. Após todas as marcações em preto estarem prontas, fiz uma cópia em impressora de toner, e fiz uma transferência pra placa de compensado de pau-marfim com thinner e prensa.
Daí, foi só começar o processo de gravação. Utilizei, majoritariamente, goiva faca para todas as bordas, e goiva em V muuuuito afiada pra fazer os detalhezinhos da textura do pano.
Foram algumas semanas gravando, mas acho que valeu a pena.

Após um longo processo de gravação e de testes, acho que fiquei satisfeito com a matriz que eu havia gravado. Precisava de um papel que estivesse à altura, que fosse tão delicado quanto à suavidade e serenidade da imagem. Optei por um papel de arroz tão fino, que praticamente não aparecia. Dava a impressão de que a impressão ríspida flutuava no ar. A impressão foi feita completamente com colher de pau, sem a utilização de prensa, com todo cuidado para que o papel não rasgasse por conta de sua espessura. Processo delicado, trabalhoso, mas que me trazia muita satisfação.
Logo abaixo seguem os resultados.

A única questão sobre esta gravura, é que eu acabei fazendo poucas cópias dela. Em 2015 ou 2016, não me lembro, houve uma infestação de ratos lá em casa. Eu tinha uma gaveta onde guardava todas as matrizes, bem como algumas impressões e revistas. Quando abri a gaveta, havia fezes e urina de ratos para tudo quanto é lado, tudo estava roído e/ou descascado. Eu preferi não arriscar. Coloquei luvas, juntei tudo em um saco de lixo e descartei. Perdi muitas coisas nesse processo, mas o que foi feito, pelo menos, tem fotos…

Testando marcadores “tons de pele”

Uma das coisas que mais sinto dificuldades quando vou fazer trabalhos que envolvem pessoas é compreender, a partir de cores comuns, como reproduzir tons de pele. Meu daltonismo me impede de ter segurança para fazer essas coisas. Nesses kits de marcadores, tintas ou lápis de cor eu nunca sei exatamente o que estou vendo ou usando. Ultimamente, para conseguir fazer alguns estudos (e eu tenho certeza que meu amigo Daniel de Carvalho iria dizer que eu não precisaria disso, rs) eu tenho adquirido kits que já vem com a denominação “tons de pele”. Foram 2 kits de marcadores e 2 kits de lápis de cor (esses eu faço um post mais adiante falando sobre). Nesse post eu escrevo apenas sobre os marcadores Cis Graff Dual e o Faber-Castell Super Soft.
E o estudo começou com esboços feitos a partir de fotografias retiradas do Pinterest.

Esboços feitos a lápis numa folha de papel A3

Eu curto fazer o esboço de forma bem solta, sem me apegar muito a proporções ou exatidão à imagem original. Coloco poucos detalhes, poucos preenchimentos. Uso mais como uma referência inicial mesmo. Eu curto fazer assim para usar de uma maneira menos pragmática quando estiver preenchendo com os marcadores na mesa de luz. Eu curto essa maneira mais livre de fazer preenchimentos e detalhes, não me apego muito à representação “ideal” do real não.

Para a versão definitiva, utilizei papel Canson Bristol XL 180g A3, que não possui superfície tão porosa e a tinta adere bem, conferindo um resultado bem suave ao aplicar a tinta dos marcadores. Os brushes Faber-Castell Super Soft possuem uma boa transparência, reagindo bem às superposições de tonalidades, porém deixam em seu rastro uma leve textura, não sei se é por causa do papel. Também achei interessante as tonalidades que são bem quentes e terrosas, com o tom mais claro sendo bem contrastante com o tom mais escuro. Achei que os tons escuros são bem parecidos, fizeram pouca diferença ao meu olhar daltônico.
Os marcadores CIS Graff Duo possuem ponta dupla, uma chanfrada e uma fina, que não é brush, e ambas são bem rígidas. Elas possuem um bom grau de transparência também, e a sobreposição das tonalidades dá uma estética bem massa. Elas não deixam tanta textura no papel como as brushes Super Soft, ficam com uma aparência mais suave a meu ver. Achei a cor das tampas bem diferentes das tintas no papel e senti falta de tonalidades mais escuras. As cores são bem quentes, mas acho que caminham um pouco pr’uma coisa mais “pastel”.
Para alguns acabamentos, utilizei Uni-Pin brush preto e Posca branca 1-M. O resultado está a seguir.

São bons marcadores, fiquei com vontade de adquirir uma gama maior de cores e tonalidades, pra testar de outras formas também, mas acho que dá pra fazer umas peles com o que tenho nesses dois kits. Gosto de me divertir bem solto enquanto desenho e faço os testes, e com certeza essa foi uma experiência bem daora. Podem esperar que em breve eu soltarei mais testes desse tipo.

[litografia] Coruja Cholo

No auge da minha monitoria na disciplina de litografia, lá na EBA/UFMG, andei testando técnicas pra poder compartilhar com xs alunxs um pouco do conhecimento que eu desenvolvia no atelier.
Nesta gravura, eu usei tousche (bastão gorduroso para desenho na matriz litográfica) diluído e aplicado com bico de pena na coruja, aplicado com pincel na moldura oval, e criei uns efeitos com tousche queimado com aguarrás pra dar uma estética meio envelhecida, manchas de mofo/umidade.

Caracterizando os elementos representados – CORUJA

A Coruja tem essa representação ligada ao conhecimento, sabedoria. Durante algum tempo eu curtia muito essa ave, tinha pequenas esculturas de coruja, em 2012 até cheguei a tatuar uma coruja no meu antebraço. Também as usava como personagens de meus desenhos, gravuras e pinturas.
Enfim, a imagem da coruja foi algo que permeou minha criatividade durante muito tempo, e tê-las feito dentro de temas específicos foi algo que curti bastante nesse período. Foi minha porta de entrada pra trabalhar diferentes estéticas a partir de um mesmo referencial. Também foi minha porta de entrada para vestir animais a caráter, algo que faço com mais frequência atualmente. Ao lado está o esboço que fiz no meu bloquinho A5, utilizando canetas nanquim, Posca e marcador Sharpie Tank.
Esta ideia foi especial, uma coruja com vibe meio Ron Swanson Chicano.

Identidade CHOLO

CHOLO diz respeito a uma identidade fronteiriça existente, sobretudo, na divisa entre México e Estados Unidos. Ciudad Juárez (México) e El Paso (Estados Unidos) são cidades surgidas a partir da separação do povoado de Paso del Norte (México), que foi separada na Guerra de 1846, quando os Estados Unidos usurpou metade do território mexicano e decidiu-se que o Rio Bravo, que cortava a cidade, fosse a fronteira entre os países. Apesar de serem divididas por limites transnacionais, as cidades estão situadas no meio de uma região desértica, e elas possuem trocas muito fortes entre si. Grande circulação de mercadorias e pessoas cruzam a aduana, e o fechamento da fronteira é um fenômeno relativamente recente.
Atualmente, uma cerca do lado norte do Rio separam os países, mas como as cidades são co-dependentes, famílias, negócios, movimentos pendulares, comunidades indígenas e recursos foram divididos, criando uma situação ainda mais complexa de circulação. É nesse contexto que surgem os Cholos. Ainda que eu tenha usado essas duas cidades como exemplo, o fenômeno é algo comum em várias localidades da fronteira, não se limitando à fronteira Chihuahua/Texas.
Cholos são caracterizados como seres fronteiriços, que utilizam da estética para se diferenciarem dos estadunidenses, portanto, são mexicanos (ou, atualmente, descendentes de famílias mexicanas).
É uma identidade que foi desenvolvida a partir dos Pachucos, e isso sim tem um teor geográfico mais localizado, pois El Paso também é conhecida como “Chuco”, e Pachuco seria um termo derivado do “Para el Chuco” (Pa’Chuco), pois muito mexicanos faziam o movimento pendular de morar em Cd. Juárez e trabalhar em El Paso.
Caracterizando a estética Chola, calças pantalones (derivadas do Zoot Suit Pachuco), camiseta canelada branca, camisa flanelada xadrez com apenas o botão superior abotoado, muitos usavam bigode e cabelo penteado para trás (alguns usavam um tipo de redinha para manter o cabelo no lugar), outros usavam bandana (marca registrada de muitos grupos até os dias de hoje). O uso de tatuagens também era muito comum, bem como associação com gangues e grupos identitários como forma de defesa.


Moldura

Pensando na questão dos elementos que eu propus nessa gravura, a moldura é algo realmente especial. Com um estilo bem rococó, com arabescos volumosos e bem marcados, a moldura traz um ar de algo clássico, envelhecido, mas que mantém sua nobreza estética. A mesma ideia eu tive com os efeitos de envelhecimento da “foto”, conferindo um caráter de algo antigo, mas que se mantém ainda firme, apesar das adversidades.
A memória é algo que se cultiva, para que não desapareça.

La Idea, 2015 – Litografia sobre papel Hahnemühle, 300g, 33×44 cm

A litografia pode ser adquirida clicando aqui.

Serigrafia – Brinque com sua fera

Em 2023 eu fui selecionado, mais uma vez, pra participar da troca de gravuras denominada Escambo Gráfico. É uma iniciativa que o Vitor Pedroso (aka Piruá) e a Ludmila Siviero, de Araraquara, organizam anualmente. Eles fazem uma seleção “por ordem de chegada”, separam as inscrições em diversos grupos, recebem as cópias das gravuras de cada participante, criam as pastinhas de cada grupo, e reenviam para cada participante o combo de gravuras de gente do mundo todo. Mó trampo. Mas é com muita satisfação e orgulho que eu digo que gosto de participar destas trocas, conhecer novxs artistas, novas formas e técnicas de gravar e de imprimir, ver novos estilos, novas temáticas, é muita riqueza envolvida em todo esse processo. O Escambo surgiu durante a pandemia e tem produzido ótimos resultados em compartilhar ideias, técnicas e colocar pra circular conhecimentos. Só tenho a agradecer pela existência dele.

Para este ano, eu tive a ideia de criar uma serigrafia de 4 cores em um processo completamente analógico. Desde a pesquisa de referências, de temáticas, até a gravação e a impressão. A pesquisa imagética foi feita exclusivamente a partir de livros. Os esboços foram feitos a lápis em papel, todo o acabamento do desenho foi feito com caneta nanquim. Os vegetais para gravação das telas foram preparados com caneta Posca e mesa de luz. As telas foram gravadas com emulsão pré-sensibilizada (Agabê Unifilm-WR) em poliéster amarelo, 90 fios. Foram utilizadas tintas a base de água Gênesis Grafcryl e a impressão foi feita em papel Vergê Plus, 220g, cor Ônix. Essas últimas informações foram essenciais para se pensar no que é surpresa em um processo de impressão artesanal.

O esboço foi feito em um papel branco utilizando nanquim preto. Já a impressão foi feita em papel preto e o desafio maior foi pensar em como ficariam as cores na impressão, já que eu não usei nenhum tipo de recurso digital para fazer esse teste antes. Todas as sombras, luzes e detalhes foram somente imaginados em como poderiam resultar ou funcionar. Foi um verdadeiro achômetro, ainda mais partindo de alguém que é daltônico. Muita ousadia de minha parte. O resultado foi esse, um caos de linhas, ora luzes, ora sombras, ora pinturas corporais. Uma cena, talvez noturna ou aquática, de duas crianças indígenas brincando com sua fera, enquanto esta utiliza uma máscara de dragão e se emaranha com as sutilezas das crianças.

Não aprisionar, não maltratar, não ter medo. Brinque com a fera.
Esta gravura está disponível para venda clicando aqui.

O Escambo Gráfico é um projeto cuja participação é 100% gratuita. Porém, possui custos elevados de logística. Todos os participantes que podem, doam alguma quantia de qualquer valor para ajudar nos gastos, mas ainda assim há muitos artistas que não podem doar. Se você quer ajudar o projeto, compre a gravura na minha loja virtual que eu repasso parte do valor da venda para ajudar o projeto, ou faça uma doação de PIX de qualquer valor para a chave graficoescambo@gmail.com
Obrigado.

Brinque com a Fera – Serigrafia em papel Vergê Plus 220g – Tiragem: 48 cópias – La Idea 2023
Veja o processo de produção neste vídeo

Transfluência

O trabalho de pesquisa e produção de arte perpassa algumas atividades que precisam nos afetar de alguma maneira, mexer com o sensível, uma faísca que será o disparador de algo mais forte. Eu tive isso enquanto lia “Mobilidade Antirracista”, obra organizada por Daniel Santini, Paíque Santarém e Rafaela Albergaria e que foi publicada pela Autonomia Literária e pela Fundação Rosa Luxemburgo em 2021. O livro todo, em si, é um espetáculo de ativismo pela mobilidade universal e acessível, mas um capítulo me tocou de maneira mais forte: Capítulo 4.1 – Entrevista com Nego Bispo.

Sobre Nego Bispo e as formas de resistência

Logo no início da entrevista, Nego Bispo se apresenta. Eu não sabia nada sobre ele. Nasceu em uma comunidade onde a linguagem escrita não exista, somente a oralidade, e pela facilidade com que ele apropriou-se das diferentes linguagens ao ingressar na escola, foi escolhido para ser tradutor da linguagem escrita para a linguagem oral, evitando, assim, que a comunidade fosse “passada pra trás” nos contratos com o colonizador. Assim, foi forçado a compreender o pensamento colonialista para se defender dos ataques, e compreender o pensamentos dos seus iguais para fortalecer o campo de defesa. Nego Bispo diz que sua vida está na fronteira do pensamento, lidando com as escrituras e com a oralidade o tempo todo.
Nego Bispo usa muitas analogias para fazer uma relação em como os animais são ou podem ser domesticados, e a forma bruta e violenta com que os colonos tentavam domesticar seus escravos. Enquanto pessoas negras transitavam nos mares nos fundos de caravelas, sendo sujeitos à vários tipos de torturas e desumanidades, outro tipo de deslocamento não previsto pelos colonos também exercia sua força: transfluência.
Transfluência é um conceito desenvolvido por Nego Bispo para tratar sobre as relações cósmicas que carregam, simultaneamente ao transporte físico nos navios negreiros, uma memória ancestral. Povos negros que chegavam no continente se comunicavam com povos indígenas (que possuíam cosmologias parecidas) para resgatar esses saberes e dar início ao processo de resistência contra a colonização.

O que houve com Palmares e todos os Quilombos foi exatamente essa relação de transfluência.
Mesmo os quilombos que não se visitavam fisicamente transfluíam através da cosmologia.
A relação com o mar, com o vento, as estrelas, as plantas.

Nego Bispo, página 211

A questão que Nego Bispo coloca é a forma de saberes que foi desenvolvida tanto do lado de cá do Atlântico, quanto do lado de lá. Como esses conhecimentos eram compartilhados, desde muito antes das navegações acontecerem. “Como era possível a comunicação do Rio São Francisco com o Rio Nilo, se tem um oceano no meio?”

Pelos Rios do Céu, pelas nuvens, pela evaporação.
A imagem que mais me convence sobre a transfluência é esse movimento das águas doces, pois elas evaporam aqui no Brasil e vão chover na África transfluindo pelo oceano sem precisar passar por ele.
Dessa forma que a nossa memória ancestral está aqui, ela vem pelo cosmos.
Esta é, de ponto de vista cósmico e físico, a imagem que tenho da transfluência.

Nego Bispo – página 213

Pensando, refletindo e gravando

Depois de muito tempo sem produzir algo significativo derivado de alguma pesquisa mais intensa, finalmente apresento minha última produção em gravura denominada TRANSFLUÊNCIA.
Esse conceito colocado à mesa por Nego Bispo chegou a mim em um momento de baixíssima criatividade de minha parte. Estava envolvido com outros tipos de trabalho, sobretudo não artísticos, e ter lido esse capítulo reacendeu em minha mente uma chama que parecia estar quase apagada. As palavras de Nego Bispo ressoaram na minha cabeça, enquanto pensava o que poderia fazer com um termo tão potente.
Meus esboços inicias começaram bem objetivos, funcionou quase que como uma nuvem de palavras, um brainstorming do óbvio. Cabeça, mente, chuva, rios, pensamento, ser humano, ciclo. E logo comecei a expandir um pouco essa ideia de comunicação.
Nego Bispo coloca a evaporação e a precipitação como uma analogia dos saberes que são compartilhados nas duas margens do Oceano Atlântico. Minha ideia foi ir um pouco além.
E se todos os conhecimentos forem compartilhados/transmitidos/ensinados através dos mais diversos fenômenos naturais, climáticos e geológicos?
E se a gênese dos saberes está todo na concepção de mundo, e os povos precisassem de todos os elementos do planeta para compreenderem a si e ao outro?

E se as formas de organização, luta e resistência fossem auxiliadas e indicadas por todos esses fenômenos?
Essas indagações que faço a partir da leitura de transfluência talvez sejam o comum, se pensarmos a partir de cosmovisões tradicionais, mas pra mim foi um ponto de partida para pensar uma concepção de mundo bem diferente. Começar a expandir um pensamento, uma ideia, a partir deste conceito colocado por Nego Bispo me possibilitou retornar a criar, pensar em uma imagem que pudesse traduzir um pouco minhas pesquisas e reflexões.
O esboço foi feito de maneira digital; a matriz foi gravada manualmente numa placa de microduro (~linóleo); as impressões foram feitas manualmente com tinta preta em papel de arroz (industrial e artesanal); o tamanho gira em torno de um A2.
Essa gravura será lançada na Feira MOTIM, dias 6 e 7/05, em Brasília. Depois desta data poderá ser adquirida pela loja virtual.


Processo completo, do esboço à impressão final

Fragmentos #2

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Capítulo 2

Foi em uma terça-feira que combinamos o primeiro dia de oficina. Eu já havia ido à sede para assinar o contrato com a empresa responsável pela gestão da Casa e já estava liberado para iniciar os trabalhos. Passaram-se duas semanas desde a oficina de teste. Era um misto de expectativa com ansiedade, mas não pelo trabalho que eu iria fazer, e sim pela forma como eu me apresentaria para aqueles jovens.
Nunca me entendi como uma autoridade, e ser colocado neste papel me incomoda bastante. A autoridade nunca funcionou comigo durante o meu desenvolvimento e, pelo contrário, o medo e a punição que existe nesta forma de relação me traziam muito mais ódio e rancor que vontade de fazer algo. O conceito de autoridade parece que se mistura com o de ser autoritário, e sempre se torna uma relação violenta de poder, nunca de respeito.
Com tudo isso em mente eu entrei em contato com a Terapeuta Ocupacional para marcarmos o primeiro dia de oficina. Agendamos para a terça-feira seguinte, pois daria tempo de planejar as atividades e me organizar com os horários. A oficina deveria iniciar às 14 horas, um horário não muito bom para mim. Considerando que a distância entre minha residência e o local de trabalho era grande, e eu iria de bike, precisaria pedalar bastante debaixo do sol, logo após o almoço. Mas não havia outro horário disponível e ficou decidido que às 14h das terças eu deveria ministrar as oficinas.
No dia combinado eu antecipei o almoço e saí de casa logo após comer. Minha ideia era chegar cedo e ver os materiais que estavam disponíveis para trabalhar. A Terapeuta havia dito que lá haviam vários materiais de outras oficinas e de outros oficineiros e que eu poderia utilizar em minhas oficinas. Eu precisava verificar o que teria disponível para saber com o que poderia trabalhar. Minha ideia inicial era começar com as formas básicas, quadrados, linhas, círculos, triângulos, trapézios, e moldar a imagem a partir destas referências.
É uma técnica interessante, pois simplificamos as imagens complexas em formas simples, e daí conseguimos compreender as proporções de cada objeto, ou de cada parte do objeto. É como se conseguíssemos sintetizar uma imagem ao máximo, quase um abstracionismo, para logo depois reconstruir a imagem.
Minha ideia era utilizar os próprios elementos clássicos das tatuagens para construir essa imagem, pois percebi que a tatuagem é um elemento em comum entre eles. Portanto eu imaginei que crânios, rosas e adagas seriam elementos presentes. Treinei um pouco a desconstrução destas imagens, pensando nas formas básicas que poderiam dar origem ao desenho final. Na minha cabeça e nos meus planos estava tudo certo.
O trajeto foi tranquilo, não estava muito quente, mas o almoço já estava pesando. Fico pensando que seria interessante comer menos no almoço, e levar uma refeição complementar para comer quando chegar à Casa. Acho que assim pesaria menos. Durante o trajeto fiquei observando o que estava em meu caminho, no asfalto. Desde pequeno eu caminho olhando para o chão, buscando moedas perdidas. Hoje eu pedalo tentando compreender as coisas que estão no meu caminho e que podem me oferecer risco. Pregos, arames, cacos de vidro, tachinhas, pedras, buracos, poças de óleo automotivo. Nunca achei dinheiro pedalando, mas já achei vários animais mortos. Já vi pombos, ratos, gatos e cachorros. Uma vez eu vi um gambá. Outro dia vi um morcego. 
É impressionante a quantidade de coisas que se fazem presentes nas vias, enquanto os automóveis passam dominantes ofuscando qualquer outra presença naquele espaço. Parece que nada mais importa para os motoristas. As vias não são locais onde poderiam haver reflexões interessantes. É só um caminho, e pronto.
Cheguei na Casa com um pouco de cansaço, mas sem maiores problemas no trajeto. Toquei a campainha e aguardei alguns minutos até ser atendido. Novamente quem abriu a porta foi um funcionário que solicitou meus documentos e me deixou esperando lá fora mais alguns minutos. Após ter a entrada permitida, a Terapeuta me recebeu e me apresentou ao restante da equipe técnica que se encontrava no local. Um Advogado, duas Pedagogas, uma Psicóloga, e mais duas funcionárias que eu não me lembro qual função exerciam. Após breves saudações, a Terapeuta me levou ao quarto de materiais, aquele com a mesa redonda, estantes e uma janela grande que dava para o pátio.
Ela me mostrou que haviam muitos materiais ali que poderiam ser utilizados e abriu várias gavetas de uma estante de madeira. Ali haviam vários papéis de diferentes qualidades, um rolo enorme de papel kraft mais espesso, vários potes de tinta guache escolar, um estojo com vários lápis de grafite, um estojo com vários lápis de cor, um estojo de canetinhas hidrográficas com pontas finas e grossas, uma sacola plástica com vários pincéis dentro, borrachas, apontadores, estiletes e 3 latas de spray para uso genérico.
A Terapeuta me disse que eu poderia fazer uma lista de materiais para as oficinas, que ela faria um orçamento em vários locais para solicitar a compra, mas que poderia demorar. Eu disse que dava para trabalhar com o que tinha ali, mas que seria bom ter mais materiais disponíveis no futuro.
Ali na sala eu separei o estojo de lápis e de borracha, uma resma com vários papéis e já me preparava para descer, quando um Agente me abordou dizendo que não era para descer com todo esse material, que era para ser apenas um lápis e uma folha para cada jovem, dois apontadores e duas borrachas. Nada mais que isso. Ele me disse que haviam 15 jovens no pátio e que o material deveria ser a conta. Ele me disse que era uma medida para não haver furtos de materiais e nem brigas. Eu retornei para a sala e separei exatamente o material que ele me disse, além de um lápis e um papel para mim. O Agente conta tudo e anota em um bloquinho de papel. Ele abre o portão e eu desço para o pátio onde alguns jovens me aguardavam na mesa grande, outros estavam em seus leitos e havia um que ainda almoçava. Apenas três dos jovens que estavam ali participaram da primeira oficina há duas semanas atrás.
Eu me apresentei novamente, disse quais atividades faríamos e comecei a distribuir os materiais. Um Agente recolheu os apontadores e me disse que os jovens deveriam ir até a sala dele para apontar seus lápis. Ele me disse que as lâminas dos apontadores poderiam ser armas em caso de conflitos.
Enquanto iniciava algumas explicações sobre as formas básicas e como poderíamos utilizar isso na nossa composição, um dos jovens se lembrou de mim, me chamou de Boy de novo. Ele olhou a minha tatuagem no braço, uma coruja cega pousada em cima de um crânio, e disse que seria legal aprender a desenhar caveiras, para ele virar tatuador. Percebi que muitos dos jovens não estavam compreendendo o exercício, fiquei pensando se a minha explicação foi confusa. Pedi para que prestassem atenção ao meu papel, pois iria demonstrar na prática como poderíamos trabalhar, e que o esboço do papel poderia se tornar um passo a passo para pintar murais nas ruas. Comecei fazendo círculos para demarcar algumas áreas e aos poucos meu desenho de linhas básicas foi se transformando em um crânio. Usei o comentário do jovem para exemplificar a minha ideia de exercício. Disse que a construção do desenho deveria ser uma prática constante, e que nós ficávamos cada vez melhor a cada desenho que fazíamos.
Neste momento a Terapeuta desceu para acompanhar a oficina. Dois jovens começaram a indagar a ela quando poderiam utilizar o telefone. Outros jovens diziam que não queriam fazer a oficina e que preferiam descansar no leito. Ela falou com eles que a participação na oficina é obrigatória, que eles não tinham escolhas.
Um dos jovens começou a escrever letras de rap e funk no papel, outro começou a desenhar uma pomba, três jovens apenas observavam tudo, e alguns se mostraram interessados nas minhas explicações. Estes mais atentos fizeram desenhos muito similares aos meus, como se eu estivesse ensinando um passo a passo de como fazer um crânio. Eu dizia que eles deveriam tentar fazer seus próprios desenhos também, de algo que eles gostem ou se interessem, que não era interessante apenas a cópia.
Um jovem falou que seu desenho estava horrível, amassou o papel e jogou na lixeira. Ele solicitou outro papel e eu disse que não havia, era apenas um papel para cada. Eu dei meu pedaço de papel para ele e disse para ele usar a borracha quando precisasse desmanchar.
Haviam apenas duas borrachas para aproximadamente 15 jovens, em uma mesa retangular extensa isso foi um grande problema. Eles passaram a querer desmanchar tudo o tempo todo. Começaram a jogar borrachas de um lado para o outro. Um dos jovens viu que a borracha estava disputada e segurou uma borracha em sua mão enquanto desenhava. Outros jovens começaram a discutir sobre uma borracha lançada que atingiu o braço de um deles. Os ânimos esquentaram e os jovens passaram a se ofender. Eu disse que haviam duas borrachas e que elas poderiam ficar sempre na mesa, mas que o erro não era uma coisa ruim e que poderia ser usado a nosso favor enquanto desenvolvíamos nossos desenhos. Nós aprendemos com o erro e o utilizamos como comparação para chegar mais próximo ao acerto, ou ao objetivo que almejamos.
Não sei se os jovens compreenderam muito bem essa ideia, mas seguiram com seus desenhos de uma maneira mais calma. Logo após a retomada da atividade, percebi que havia fila na sala do Agente para poder apontar o lápis. Um jovem estava apontando seu lápis e a ponta quebrava dentro do apontador. Com isso, os jovens que estavam aguardando começaram a reclamar que ele estava fazendo hora pra não participar da oficina. O Agente tinha liberado apenas um apontador, e isso gerou um conflito pela utilização da ferramenta. 
O jovem que desenhava pombos fez uma marca de dois tiros no peito da ave e disse que a pomba branca tem dois tiros no peito, fazendo alusão à música do Facção Central. O jovem que escrevia letras desistiu de escrever e passou a apenas conversar com os outros jovens. O que ainda almoçava se integrou ao grupo e reclamou que não havia material para ele. Como ele trabalhava no período da manhã, ele almoçou apenas mais tarde e não foi contabilizado pelo funcionário que fez a contagem dos materiais para mim.
Os jovens me perguntam o que significam as minhas tatuagens e eu pergunto o que significam as deles. Eles não me respondem e eu não respondo à eles. Eu disse que tatuagens não precisam de ter significados e um deles diz que toda tatuagem tem significados. Na Quebrada tudo tem um significado.
A oficina começa a chegar em seus minutos finais e os jovens começam a me devolver seus desenhos e os materiais. Dois jovens queriam ficar com seus desenhos e a Terapeuta disse que não poderiam. Eles apontaram o desejo de terminar o desenho na próxima oficina e eu disse que os traria para eles terminarem. Todos precisam assinar o seu desenho, independente do que fizeram. O Agente contou o material devolvido e me autorizou a subir. 
A Terapeuta começa a folhear os desenhos na sala de materiais e vai me dizendo tudo que é considerado apologias para o Sistema. Talvez seja melhor evitar a temática do crânio, pois isso teria a ver com a morte e que poderia gerar um simbolismo diferente para aqueles jovens. A letra de rap e funk que um dos jovens escreveu estava repleta de ofensas que poderiam ser apologias. A pomba branca com dois tiros no peito era uma apologia direta e objetiva. 
Eu deveria fazer um relatório no Livro de Registros assinalando todos esses fatos, inclusive os conflitos no pátio, os nomes de quem estava presente, quem se destacou e quem deveria ser punido. Eu guardo todo o material na estante, e na hora de preencher eu me recuso a identificar os jovens desta forma. Folheio os papéis, escrevo o nome daqueles que estavam mais interessados e digo que a oficina ocorreu sem maiores problemas. Guardo os papéis com os desenhos em uma pasta destinada para isso na estante.
Na saída eu falo com a Terapeuta que essa tática de limitar a quantidade de materiais poderia gerar mais conflitos, além de barrar o fluxo da atividade e fazer com que o trabalho não renda tanto quanto o esperado. Ela me disse que era algo com que eu deveria lidar melhor, porque os materiais ali sempre seriam limitados. Perguntei também sobre a questão dos jovens que não queriam participar, se eles poderiam fazer outras atividades, e ela me disse que eles não tinham escolhas. Todas as atividades eram obrigatórias, e nos primeiros 45 dias de cada jovem, eles eram obrigados a se manterem reclusos e participativos. Esses 45 dias iniciais serviriam como um período de avaliação e que seriam enviados ao Juiz. Era um período determinante para a pena, para saber se poderia ser mais branda ou mais restritiva e punitiva.
Apesar de saber do período de 45 dias, optei por não alterar o meu relatório. Eu não sabia há quanto tempo cada um daqueles jovens estava ali. Nem me interessava saber por quais crimes eles foram enquadrados. Me dava uma pena o fato de eles serem obrigados a fazer algo que não queriam, e depender disso para saber sobre o futuro naquela Instituição ou no Sistema Penal.
Me despedi dos demais funcionários e saí da Casa. Enquanto pedalava pensava sobre o caos que foi a oficina, como ela não rendeu de acordo com o esperado. Me deu uma agonia saber que os jovens não poderiam ficar com seus desenhos após a oficina, e que não havia a possibilidade deles trabalharem nas práticas artísticas quando eu não estivesse ali. De que então adianta eu falar sobre praticar, sobre o exercício diário de se propor ao treino, ao desenvolvimento de um desenho, de uma ideia, de uma observação, se até disso eles seriam privados?
Acho que a sensação de frustração me distraiu em meu trajeto e quando eu pensava nessas questões, um carro me fechou para virar a próxima esquina. Não me atropelou por pouco. Um xingamento saiu de minha boca, com um ódio que veio do fundo do pulmão, sendo expelido da maneira mais agressiva possível.
O motorista parou o automóvel e disse que ele estava atrás de mim e tinha buzinado avisando que iria passar. Eu disse que se ele iria virar a rua, poderia ter esperado que eu passasse em segurança. Ele argumentou que tinha buzinado antes de fazer isso. Eu disse que a buzina dele não me faria desaparecer da frente do carro e que ele deveria ter esperado para não colocar minha vida em risco. Ele proferiu alguns xingamentos e arrancou o carro. 
Eu nunca vou entender um automóvel que está atrás de um ciclista e buzina. Eu não sei o que esta buzina significa. Buzinas talvez sejam a forma de comunicação menos efetiva que existe. Ela pode significar várias coisas, mas pode também significar nada. 
Nesse caso, eu estava tão distraído com minhas frustrações que eu nem tinha escutado a buzina. De qualquer forma, um som proferido do volante do carro não me diz nada, não me salva, não me alerta. O sujeito escolheu me ultrapassar e virar a esquina a apenas alguns centímetros da minha bicicleta. Ele escolheu colocar minha vida em risco a troco de alguns segundos.
Esse desrespeito me frustra mais ainda. Chego em casa, cansado e com a cabeça quente. O dia foi cheio e eu precisava repensar a oficina durante a semana. Agora com noção de várias limitações em relação ao material disponível e já entendendo um pouco o comportamento daqueles jovens. A próxima oficina teria que ser mais proveitosa que essa. Não poderia repetir isso de novo.

O Silêncio é Inútil

Fever 333 é uma banda bem daora, que consegue manter as letras altamente politizadas ainda que estejam no mainstream da indústria musical. Lembra algo de Rage Against The Machine, político e popular, requisitados para serem absorvidos pelo capitalismo e se tornarem mais um produto. São sons violentos, de ataque pesado ao sistema. Estão no sistema, mas não se curvam à ele.
Jason Butler, vocalista do Fever 333, é um sujeito bem relacionado, tira fotos e interage com vários ícones da música pop e do cinema estadunidense. Ainda assim, suas letras, desde a época em que cantava no Letlive., são carregadas de conteúdos políticos, de ataque ao capital, à opressão, à autoridade, e fortalecendo a atuação dos movimentos de lutas identitárias, sobretudo ligadas ao levante da população negra.
O grupo iniciou sua carreira tocando em um estacionamento, com pouquíssimos recursos, instrumentos e caixas de som no baú de um caminhão, e uma demonstração de energia intensa em cada movimento que os 3 membros da banda faziam. Uma presença de palco (se é que o chão do estacionamento possa ser chamado de palco) impressionante, inclusive do baterista. De fato, conhecer a banda foi praticamente interesse à primeira escutada. Som cru e direto do jeito que gosto.
O segundo disco da banda, Strenght In Numb333rs (2019), chegou com um desenvolvimento musical impressionante, mais pesado e mais bem trabalhado, e ainda com letras bem profundas e críticas. Duas músicas me chamaram mais atenção: Inglewood (que trata da questão da gentrificação na cidade de Inglewood, CA, que também é um dos temas trabalhados na série Insecure, da HBO) e The Innocent (que eu irei desenvolver um pouco mais sobre essa música nos próximos parágrafos.)

The Innocent

Essa música, particularmente, me tocou muito. Ela fala sobre violência policial, sobre essa política de identificação visual do corpo negro como merecedor de diversos tipos de violências, inclusive a morte. Essa letra não existe por acaso, os diversos vídeos existentes na internet mostram as atrocidades cometidas por agentes de segurança que enforcam, torturam, atiram e matam corpos negros diariamente. Essa prática racista, genocida e eugenista não é exclusiva dos Estados Unidos. No Brasil, por exemplo, ocorrem situações bem similares e com o aval do Estado. A Ponte Jornalismo é uma mídia que divulga a maior parte dos casos, e muitos deles nem aparecem na grande mídia. Se não fossem essas pessoas corajosas para ir atrás dos fatos e divulgar, seguiríamos alienados em relação à violência sofrida pelo povo negro, pobre e/ou periférico.
A letra desta música me tocou muito nesse sentido. “Sem mais desculpas, nós temos que recusar isto, o silêncio é inútil, vida longa aos inocentes. Eles nos contam histórias, das mais belas glórias, este é o seu aviso, vida longa aos inocentes.”. Ela me traz um pouco da questão da história oral/oralidade, do conhecimento que é transmitido por gerações, de histórias das pessoas que lutaram antes de nós, das pessoas que perderam suas vidas para que as verdades sejam mostradas. Das vidas que as pessoas vivem, e daquelas que possuem o direito institucional de violentar e matar pela cor da pele e classe social.

Produção de gravura baseada nesta letra

Na minha produção enquanto artista visual busco, na maioria das vezes, aliar minhas vivências, leituras, músicas e interesses políticos nas imagens que crio. Gosto de ter esses itens como ponto inicial de pensar o processo criativo. Por causa dessa letra do parágrafo anterior (e agora completando 5 anos do assassinato de Marielle e Anderson), me deu vontade de falar um pouco sobre essa arte que fiz em 2020 eu acho, ainda numa pandemia restritiva. Eu não consegui, ainda, materializar em gravura essa imagem. Na época eu já andava criando umas xilogravuras aliando imagens centrais e escritos com muitos contrastes para xilogravura, e acabei criando essa a partir da letra de The Innocent. Ao centro e com mais destaque, Jason Butler gritando no microfone. Abaixo, faixas e cartazes com dizerem de protesto contra o genocídio da população negra, contra a violência policial, símbolo antifa, punhos negros em riste, Dandara, Zumbi e Marielle Franco. Acima, a frase “O SILÊNCIO É INÚTIL“, parte do refrão da música. Foi a forma que consegui de aliar essa música à uma história regional, desde a resistência na época da colonização até os dias atuais. O sistema violenta e tenta calar à todo custo as vozes oprimidas. Mas os movimentos de resistência seguem lutando, se defendendo, contando suas histórias e memórias para que não cesse a luta. Agora, mais que nunca, tenho vontade de colocar essa arte para circular. Vida longa à resistência e aos inocentes.

You gon get this now

You think, I know
Wide eyes got a narrow scope
You’d think that they’d know
Not to shoot a man while he’s on the floor
That’s why these youngins they run before talkin to police because they know the deal
See young Trayvon Martin has just left the market with candy and got his ass killed

No more excuses we must refuse this Silence is useless
LONG LIVE THE INNOCENT
They tell us stories of star spangled glory this is your warning
LONG LIVE THE INNOCENT

Eyes of the law do not look anything like my own
I can see clearly now that the arraignment is gone
Yes I did go head up with that cop tryina do me like radio Rahim
I looked at the judge said ‘I feared for my life and I pray that you’ll do the right thing’

No more excuses we must refuse this Silence is useless
LONG LIVE THE INNOCENT
They tell us stories of star spangled glory this is your warning
LONG LIVE THE INNOCENT

It ain’t what you are it’s what you can be
And I see you, my brotha
All they know is what you show them

No more excuses we must refuse this Silence is useless
LONG LIVE THE INNOCENT
They tell us stories of star spangled glory this is your warning
LONG LIVE THE INNOCENT

The Innocent

Revisitando obras antigas mais uma vez

Me lembro de um dia, por volta de 2012, em que eu tinha um pedaço de papel preto e tinta nanquim colorida. Queria fazer alguma coisa que desse um contraste no fundo preto, algo tão iluminado que me fizesse compreender aquilo ali como algo especial e não como uma prática qualquer.
Talvez fosse tarde demais para que eu pudesse compreender que o processo de produzir arte não tem um ponto final, muito menos um ponto inicial. Talvez por isso fosse chamado de processo. É algo que é desenvolvido no fluxo de ideias e de pr´áticas, e que pode ou não ter um desfecho. Muitas vezes o desfecho é justamente começar outro projeto a partir de reflexões no decorrer do processo. Algo como a construção de algo a partir do que já existe, desenvolver ideias e conceitos utilizando o passado ou o presente (ou as ruínas do velho) como ponto de partida.
Tudo pode ser melhorado ou piorado, pode agradar ou desagradar, pode gerar uma reflexão profunda ou um mero desdém. Pode afetar e ser afetado. O universo artístico tem muito disso de lidar com a sensibilidade do observador, que nem sempre é um mero espectador, mas pode atuar junto de determinada obra, como se fosse uma intervenção eterna.
Talvez a busca por um desfecho perfeito de fato não exista. Ela não termina quando colocamos um ponto final. Nós que produzimos, finalizamos nossas obras com vírgulas, ponto-vírgulas ou reticências. Nós significamos algo em nossa produção que pode ter outros significados a depender de quem vê, de todo um contexto, e talvez nem tenha significados para muitos. Então porque buscar o ideal individual, se a produção só faz sentido se compartilhada, só serve como potência se sai de nossos espaços de trabalho, de nossas reflexões, de nossos cadernos.
Escutando música me sinto conectado com quem canta, com quem toca. Isso me afeta de forma muito profunda. Muitas das minhas produções são em diálogos com as músicas que escuto. Nem sempre concordo, nem sempre discordo. Mas isso me tira do lugar de inércia e me faz refletir sobre várias das questões que permeiam a minha existência. Nós que buscamos sempre as mesmas referências para produzir, não estamos colocando quem somos, não estamos nos abrindo. Nos fechamos em nossa bolha estética/ideológica. Quando nos abrimos à novas experiências, ao diferente, nós comunicamos com algo que conhecemos, ainda que em outros níveis, e com o que desconhecemos. Por isso que gosto de produzir arte, me faz pensar, planejar, refletir, agir. Me faz perder um pouco do medo que tenho em conhecer quem sou de verdade.
Parece um disco arranhado quando escrevo sobre isso, mas o processo é cheio de falhas, linhas tortas, erros, tentativas mal sucedidas e frustrações. Talvez a perfeição que buscamos nos impede de compreender o processo como algo belo, como algo natural e saudável.
Por uma sanidade produtiva livre de julgamento morais. Por uma arte que transpasse a superfície do óbvio. Por uma produção que não seja covarde.

Porque continuar a viver sob moldes de santos e heróis?
Somos desgraçados seres condenados à morte. Pedaços de carne que pensam e sentem prazer.
O melhor a fazer é encarar nossos medos.
O melhor a fazer é encarar que vitoriosos estão longe demais.
A perfeição é um instrumento de tortura.
Negamos nossa humanidade acreditando que é possível não errar, não sofrer, não sangrar.
Quebre os túmulos de seres vivos. Fale sobre seus sentimentos, sobre sentimentos reais.
Cada um traz dentro de si um inferno. Lâmina fria, em sua carne. A imagem na escuridão.
Criados sob o signo do medo e autocondenação.
Criamos a pureza para ter o que buscar por toda nossa existência.
Algo para temer (pecado, castigo, aberração, diferença).

Colligere – Fuga do Vale das Lágrimas
Desenho de 2012 – bico de pena e nanquim sobre papel preto

Pensando em limites, bordas, fronteiras e essa tarefa de ser humano

Começar um processo de compreensão do conceito de “fronteiras” foi algo que vivenciei em 2012, quando morava na fronteira entre México e Estados Unidos. Ciudad Juárez, na época, era um dos grandes centros urbanos do país nortenho. Uma cidade com uma história bem curiosa, fundada no meio do deserto com o nome de Paso Del Norte, a região foi palco de diversas guerras e conflitos, e em 1888 foi decretado que a nova fronteira entre México e Estados Unidos seria o Rio Bravo, que cortava a cidade de Paso del Norte. Com isso, fez-se a divisão da cidade em duas, Ciudad Juárez, ao sul do rio Bravo, e El Paso, ao norte. Imagina só uma cidade, no meio do deserto, divida em duas e pertencentes à nações distintas. Viver em uma região fronteiriça me fez compreender que as relações entre os dois países são muito diferentes e especiais nestas cidades, com características bem singulares. As duas cidades tinham relações próximas, tinham trocas econômicas, tinham passagens, eram fluidas. Estávamos falando de uma cidade considerada a mais violenta do mundo na época, e de outra considerada a mais segura dos Estados Unidos. Talvez a imagem da cerca patrulhada na borda de lá no rio Bravo era uma imagem muito mais significativa nas tensões fronteiriças do que as relações econômicas, políticas e sociais da região. Uma cidade dependia da outra.

Esse reflexão sobre a vida fronteiriça me desperta muita curiosidade, e as analogias e referências com o que conhecemos como “limites” fornece pistas de algo que podemos vivenciar de forma mais intensa. Outro dia em uma conversa, o assunto era sobre colocar limites, ou ter dificuldades em saber/conhecer nosso próprios limites. Até onde conseguimos lidar com barreiras que são rompidas, seja por um comportamento abusivo, seja por dificuldade em dizer “não” e sustentar esta posição. Eu tenho dificuldades em compreender vários desses limites. Em questão de trabalho, por exemplo, eu assumo muito mais compromissos do que eu realmente dou conta. E fico pensando se essa busca por dinheiro não me faz ser assim. Talvez se minha vida fosse tranquila financeiramente eu recusaria trabalhos com mais facilidade e naturalidade, mas enfim, as contas estão aí e eu me esforço muito pra tentar manter tudo em dia.

Em um diálogo na terapia, conversamos sobre os limites surgidos de forma natural, sem intervenção do ser humano, tais quais cordilheiras, fendas, matas fechadas, rios/oceanos. Esses biomas naturais são barreiras à locomoção por exemplo, e muitos povos nômades criavam o percurso baseado nas regiões por onde poderiam se locomover de forma mais natural. Inclusive, pensar na gravidade como um limite também, pois é ela que nos mantém com os pés no chão. Dito isso, fiquei pensando na obstinação do ser humano em romper com esses limites. Nós construimos botes, barcos, navios, caravelas, aviões, foguetes, helicópteros, automóveis, estradas, pontes e viadutos. Nós desejamos sempre romper com os limites impostos. Inclusive, essas barreiras naturais são construções que dizem respeito ao tempo, e talvez as nossas soluções são apenas formas de romper com o tempo geológico, quase imperceptível para nós humanos.

O professor Silvio Gallo diz sobre o processo educativo em um artigo intitulado “As múltiplas dimensões do aprender” que nós aprendemos quando precisamos lidar com um problema, pois isso nos faz pensar e maquinar possíveis soluções para lidar com as questões postas. Assim se dá o aprendizado: em ter que lidar com diferentes questões e querer/precisar resolvê-las. Trago essa reflexão de Gallo sobre o processo educacional para pensar também se nós nos educamos a cada vez que precisamos romper com esses limites, com essas bordas. Nós construímos aparatos para romper com o que nos impede de seguir adiante. Chegar à borda, ao limite, à fronteira, nos faz correr atrás de conhecimentos, de tecnologias, de soluções.

E se os olhos começassem a fechar? Cada parte do seu corpo morrendo… Perceber os limites é sentir a existência. Experimentar é a única maneira de estar vivo, ou tudo se resumirá a respirar e ver tudo passar. Quero arranhar sua pele e faze-lo sangrar. Faze-lo sangrar! Você sente no ar a tempestade que se aproxima e a eletricidade lhe traz uma sensação agradável. Alguma coisa vai acontecer. Mas e se tudo acabasse por aqui? Viver é encontrar maneiras diferentes de não morrer – e morrer também é aceitar as condições que não nos deixam viver. O problema é não ter escapado vezes o bastante, como se já estivesse enterrado desde o começo. Sem vontade, seu corpo se torna um instrumento, um objeto que não tem razão para existir além do que vem do sentido dado pela vontade exterior. Sem vontade, seu corpo se torna um instrumento. Todo bem e todo mal residem nas sensações. Nas sensações o espírito se realiza. – experimentando a morte, é a única maneira de viver. – Porque um objeto não deseja.

Colligere – Glória é um momento silencioso

Essa letra da banda curitibana Colligere também me traz uma ideia interessante, sobre o que sentimos e a forma como lidamos com isso. “Perceber os limites é sentir a existência”, a cada vez que refletimos sobre a gente, e nossas vivências, e experiências, sentimos um pouco dessa borda que nos define fisicamente. Nós temos sentimentos, afinal não somos objetos inanimados, e tudo que sentimos aparecem em maior ou menor intensidade, a depender da situação. Essa é uma das características que nos faz humanos. Sentir e ser sentido. Sentir e levar todas as sensações ao extremo: sorrir, chorar, alegrar, entristecer, doer, gozar, arrepiar e vários outros verbos que nos fornecem vitalidade. Longe de mim querer incentivar que testemos ou coloquemos a prova os nossos limites, mas sentir a borda nos faz experimentar sensações novas.

Eu, ideologicamente mais próximo do anarquismo, sempre justifiquei a minha falta de reconhecimento dos limites porque sempre associava os limites a fronteiras. E sem fronteiras não haveriam limites. E sim, há muitos limites e bordas que devemos reconhecer e respeitar. Os limites de outra pessoas, os limites éticos, os limites físicos e psicológicos. O que seria de nós, seres humanos, sem alguns desses limites. Talvez o que eu esteja pensando com esse texto, é compreender e destrinchar um pouco esses conceitos que eu coloco no corpo destes parágrafos. Fronteiras, limites e bordas existem, e eu acredito na fluidez e na permeabilidade de todas elas. Acho que essas coisas não são tão rígidas como pensamos ser. A questão, talvez, seja compreender formas saudáveis e respeitosas dessas maleabilidades. Assim como a fronteira entre Juárez e El Paso. Ela existe e impede várias trocas, mas também é fluida e maleável.

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Todo conhecimento pertence a uma rede

Esse título ficou estranho, mas eu realmente não sei como resumir meus próximos parágrafos em uma manchete. Eu só gostaria mesmo de tentar escrever, um pouco, sobre como as áreas do conhecimento nunca devem ser analisadas de forma isolada. Meu pavor da “instituição escola” vem justamente dessa separação em relação às temáticas que são trabalhadas, a forma como são colocadas em caixinhas de conhecimento, como se tudo fosse fragmentado e fosse dever exclusivo dx alunx reunir e associar tudo isso a fim de criar algum sentido lógico.

Já faz algum tempo que eu estou estudando e me aprofundando mais em algum tipo de educação que busque autonomia dxs sujeitxs, e xs autorxs anarquistas e libertárixs são xs que tem iluminado melhor meu caminho nesse sentido. Elxs entendem o processo educacional através de atividades, práticas e teóricas, sempre coletivas, associando as diversas áreas de conhecimento através de vários pontos de vista, de experimentações, de pesquisas, de diálogos. Pensando assim, uma pessoa que gostaria de cortar uma tora de madeira, fazer lenha e colocar em um fogão para fazer a comida, estará estudando biologia, química, matemática, física, artes, engenharia, educação física, história, geografia, etc. Isso tudo em uma simples ação de colher e cortar madeira. Eu sei que esse exemplo é bem superficial (e estou aberto a discussões), mas ele demonstra um pouco onde quero chegar com as minhas pesquisas.

Acho que esse tipo de ensino traz uma capacidade de associação muito interessante, e me dá até uma frustração em saber que o mais próximo dessa realidade seriam as escolas construtivistas, tão elitistas e inacessíveis. Imagina o tipo de conhecimento que poderia circular se essas práticas e metodologias de ensino fossem em outros ambientes, mais populares?

A minha ideia, então, é contar três curtos casos que aconteceram recentemente, que são desdobramentos de uma mesma coincidência e que me fizeram conhecer um pouco mais da história do próprio estado onde vivo, Minas Gerais.

SITUAÇÃO 1 = Na porta da oficina de bikes. Outro dia eu estava na porta da Canuto Cycles, trocando ideia sobre bikes e aguardando um serviço que estava sendo feito na minha bicicleta. Em algum momento, outro ciclista chegou por lá, e enquanto ele aguardava nós começamos a trocar ideia. Ele disse que morou em Lisboa por um tempo, e contava algumas histórias de lá. Ele citou um caso de que a pessoa com quem ele dividia a casa com ele quase incendiou o imóvel em duas oportunidades. Ele usava drogas injetáveis, e no momento em que desmaiava e adormecia fora de si, todo o aparato usado para preparar a substância seguia aceso, inclusive o fogo. As chamas cresciam muito e o risco de incêndio era real. Seguindo neste mesmo tema, ele disse que em Lisboa tem muitos imóveis que são feitos de madeira, pois depois do terremoto e tsunami de 1755, as casas começaram a ser construídas ou reformadas com estrutura de madeira, uma política do Marquês de Pombal, e era exatamente isso que ajudava a aumentar os focos de incêndio causados por moradores na Lisboa contemporânea. Olha que loucura.

SITUAÇÃO 2 = Ouvindo PodCast. Certo dia eu estava escutando um podcast enquanto lavava vasilhas, e dei play no episódio do Fronteiras Invisíveis do Futebol em que os locutores falavam sobre Minas Gerais. Esse podcast é interessante, une história e esporte, trazendo os aspectos sociais, políticos e culturais na história de algum lugar, seja estado, país, região. Em determinado momento, e claro que não poderia faltar, a Inconfidência Mineira vem à tona. E por mais que eu tenha estudado sobre essa temática na escola, eu nunca tinha associado esse episódio desta forma. De acordo com meu conhecimento prévio, a revolta se iniciou por causa da insatisfação com a tributação da Coroa Portuguesa em relação ao ouro na cidade de Vila Rica (atual Ouro Preto). E meu conhecimento sobre a motivação terminava aí. Sim, sou um péssimo mineiro. De acordo com a pesquisa dos locutores do Podcast, o aumento da tributação que ocasionou essa revolta foi justamente devido aos altos gastos da Coroa Portuguesa com a reconstrução de Lisboa após a destruição causada pelo terremoto e tsunami. A Coroa queria mais ouro para poder financiar a reconstrução, e a fonte de recursos estava justamente na exploração da Colônia.

SITUAÇÃO 3 = Escutando músicas. Um dia desses eu estava reorganizando minhas mp3, renovando a playlist que está no celular, e decidi colocar vários discos que eu escutava há 15, 16 anos atrás. Tem uma banda em específico, oriunda da Venezuela, chamada Los Dolares, que eu conheci através de um amigo que passou sua infância naquele país. Lembro de escutar muito no início dos anos 2000, talvez 2003 ou 2004, porque era um som anarcopunk que soava muito bom para mim. Acho que na época eu devia ser muito novo (e também não entendia muito bem o idioma espanhol/castelhano) e as letras não eram assim uma coisa tããão importantes e sensacionais. Hoje eu tenho muito mais maturidade e conhecimento para escutar as coisas e compreender do que estão dizendo as letras, seja em português, espanhol ou inglês. Talvez seja até por isso que tenho voltado a escutar vários sons que eu escutava quando jovem (afinal, tem pouca coisa boa surgindo na cena punk, e estou cansada destas bandas novas, de ideias políticas isentonas, que só faz as coisas pra chocar o mundo virtual). Enfim, enquanto escutava Los Dolares, uma música começou a tocar. Se chamava “La fiebre del oro”, e possui boa parte dela uma narrativa calma sobre como a história acaba sendo uma arma dos poderosos para vangloriar e registrar seus feitos, ignorando e esquecendo das lutas dos de baixo. Os colonizadores chegaram nestas terras, exploraram tudo o que tinham direito, promoveram verdadeiros massacres, e a história que escutamos e aprendemos é a que os vitoriosos e poderosos nos contam. A letra desta música cita Ouro Preto, em Minas Gerais, como um exemplo disso. Toda riqueza foi explorada e saqueada para manter os padrões de luxo da Coroa Portuguesa, e ainda assim e história que escutamos é a versão dos poderosos. E digo isso incluindo as próprias vozes dessa revolta da Inconfidência Mineira, um movimento de caráter elitista, onde um sujeito foi morto como bode expiatório, onde criou-se falsos heróis, e a elite participante simplesmente o largou lá. Onde estava o povo? Quem essa elite explorava? A quem pertencia as riquezas da terra? Há outros olhares e reflexões sobre o episódio que não tenha sido escrito pelos de cima?

Eu coloquei essas três situações pra conversar um pouco sobre os diálogos que são criados a partir de diferentes mídias. Aqui, os diferentes sujeitos trazem cargas de conhecimentos e de experiências que podem não ter ligação nenhuma aparente, mas que me fizeram criar uma rede de conhecimentos que envolvem vários aspectos históricos, sociais e culturais. E é mais ou menos isso que me interessa nas minhas pesquisas sobre educação. As vivências e experiências fazem todo sentido quando são compartilhadas, quando geram diálogos. Parece bobo trazer essas situações e forçar um tipo de estudo em cima disso, mas é justamente sobre isso que se trata um processo educacional que seja mais inclusivo. Ele é coletivo, transpassa as barreiras de um simples encontro, é um processo contínuo de associações que acontecem em todas as nossas atividades. TODAS.

Por isso que me dá um certo desespero saber como foram as aulas que eu recebi durante a minha formação e como são as aulas que eu acompanhei durante meus estágios. As duas foram horríveis, fragmentadas, completamente sem sentido. As disciplinas, encaixotadas, não conversam entre si. Me lembro de um episódio enquanto fazia o estágio obrigatório, e dei uma aula sobre processos de impressão manual, mais especificamente a serigrafia e os recursos gráficos que enganam nossos olhar. A ideia era simples, utilizando um sistema CMYK (o mesmo que usa sua impressora a cores), ou seja, com apenas 4 cores (ciano, magenta, amarelo e preto), nós conseguimos reproduzir uma gama de milhões de cores, que enganam nossos olhos e nos fazem enxergar imagens fotográficas em um cartaz ou capa de livro, por exemplo. Essas cores, quando próximas ou sobrepostas umas às outras, criam tonalidades que só existem no nosso cérebro, não existem na impressão. A aula foi ótima, xs alunxs se mostraram interessados, fizeram perguntas, e me parece que correu tudo bem. Na semana seguinte, fiquei sabendo que o professor de física daquela mesma turma, começou um conflito com a professora de artes, justificando que “ela estava atropelando a matéria dele, porque COR é assunto de física, não de artes”. Eu achei isso um absurdo, pois na minha cabeça COR é assunto de várias áreas do conhecimento, cada uma tem seu modo de analisar as cores, em diferentes aspectos. Teoria da cor se encaixa em uma área mais voltada para as artes, a formação das cores, ótica e luz se encaixam na área de física. E as dezenas de tons de branco que os esquimós enxergam? E os diferentes verdes da flora e da botânica? E a nomenclatura das cores em cada região? E a diferenciação entre frutos “verdes” e frutos maduros? Isso tudo seria trabalhado exclusivamente na física? É isso que não faz sentido nesse tipo de saber que é “transmitido” e “absorvido” na escola. Ele é fragmentado e impede que a gente consiga associar as coisas, nos atrapalha a construir um conhecimento mais amplo. Ele nos limita.

Mais uma xilogravura na área

Desde 2019 que eu estou trabalhando em uma matriz de xilogravura com a temática de imigração. Eu vi essa imagem de um cara pulando a cerca que separa Chiuhuahua do Texas nos idos de 2009, quando ainda assinada Le Monde Diplomatique. 3 anos depois eu fui morar nesse mesmo local, Ciudad Juárez, Chiuhuahua, México. É uma relação de cidade bifronteiriças e binacionais. Nunca tinha ouvido falar de relações deste tipo. Os habitantes passam e voltam a fronteira todos os dias, pois moram no México, trabalham nos estados Unidos, compram coisas nas duas cidades, se divertem nas duas cidades. É bizarro. É uma questão bem diferente se pensar nesse muro/cerca vergonhosos que foi construído ao longo do Rio Bravo, que divide os dois países.

Tardou muito tempo até que eu conseguisse concluir essa gravação. Ela tem detalhes precisos em apenas parte dela, mas a questão é que eu sempre deixava outras tarefas para serem feitas antes e sempre adiava a conclusão desta matriz.

A madeira utilizada foi um compensado de pau marfim, no tamanho um pouco maior que um A4. Utilizei basicamente goivas tipo faca, e usei goivas em V e em U para fazer pequenas incisões ou remover o fundo.

Movimentos migratórios sempre existiram e sempre existirão e não será um muro que irá eliminar esse processo. Mx/US, Ceuta, Palestina/Israel, Grande Muralha, Muro de Berlim, construções que trazem vergonha à humanidade.

Os vídeos com os processos de gravação e de impressão podem ser conferidos no canal de Youtube ou no IGTV do Instagram.

Primeira Live no Insta

Hoje fiz minha primeira Live. Foi interessante, foi 1 hora com um processo de impressão de uma xilogravura, cuja matriz foi gravada já há algum tempo mas nunca foi impressa. Algumas pessoas assistiram, trocaram uma ideia, perguntaram sobre o processo, sobre dúvidas e foi bem interessante. Como foi a primeira, acho que algumas coisas ainda podem melhorar, hahahaha, mas foi um processo importante nesse tédio chamado isolamento social, hahaha.
A Live completa está disponível no IGTV do meu Instagram ou a seguir:

Pinturona com cenas de filmes

Pouco antes de iniciar o isolamento social em BH, minha querida amiga Fabi me encomendou um trabalho que seria um presente para o marido dela. Ela me passou algumas referências de cenas de filmes, e queria fazer um mosaico, ou algo parecido, com as cenas. Eu dei a ideia de pegar essas cenas e colocar todas no mesmo cenário, como se tudo estivesse acontecendo ao mesmo tempo. Eu tinha uma ideia de uma coisa meio “Onde está o Wally” em que cada cena seria descoberta em cada local do cenário. Pensei em fazer tudo digital, afinal sairia mais rápido e mais barato, mas conversando com ela chegamos a conclusão de que uma pintura seria bem melhor, mais personalizado, mais exclusivo, mais chique. Tudo combinado para iniciar o trabalho e tivemos que adiar a produção, porque faltava comprar tintas, pincéis novos e um painel, e as lojas todas estavam fechadas.

Depois de algum tempo, e com as lojas voltando a funcionar com sistema de entregas, decidi reabrir meu atelier e retomar meu trabalho. Consegui encomendar o painel no tamanho que eu precisava e consegui também algumas tintas (não consegui todas que eu queria porque a distribuidora não tava conseguindo entregar pras lojas). Dei início à pintura. Fiz várias marcações com lápis HB, iniciando com um gradeado de leve, e depois marcando as linhas que funcionariam como guia de perspectiva. Logo após, fiz aguadas de preto bem clarinho, bem diluído, para marcar onde iria cada elemento arquitetônico que eu tinha colocado no esboço. Também aproveitei para fazer uma aguada de azul no local onde ficaria o céu.

Depois de ter as marcações de aguada completamente secas, comecei a trabalhar com a tinta acrílica menos diluída ou pura, aplicando efeitos de pincéis em diversos lugares. Eu gastei muito tempo, talvez mais do que eu deveria gastar, trabalhando o fundo e o cenário. Dei uma caprichada em vários detalhes e tentei colocar várias habilidades em prática. Já faziam alguns meses que eu não pintava, e estava um pouco sem prática.

No meio do processo eu tive algumas questões com algumas limitações que eu tenho em relação à cor. Para mim, é muito difícil clarear/escurecer ou fazer uma passagem entre duas cores de forma suave. Eu consigo pensar o que pretendo fazer, mas quando tento materializar, sai de forma diferente e acaba ficando meio grosseiro. O uso do preto e do branco para criar alguns efeitos de luz e sombra não deu certo nesta pintura, sobretudo em detalhes minuciosos de rostos. No decorrer da pintura, minha esposa Natália me ajudou com algumas questões e chegamos a conclusão de que não fazer os rostos ficaria melhor. Como artista, é difícil compreender as limitações técnicas, pois sempre achamos que tudo é possível de alguma forma. Mas foi importante saber colocar um fim ao processo de pintura, abrir mão de algumas questões para ter outras. Neste caso, eu abri mão dos detalhes dos rostos para ter uma pintura mais delicada, menos grosseira.

Enfim, foi uma pintura cansativa, mas que me deu muito orgulho de fazer. Por ser daltônico, as pessoas dizem que eu costumo ser mais ousado na utilização das cores, e essa é uma característica que eu gosto. Ousadia. O processo foi paralisado em diversas ocasiões, tive que conciliar com outros trabalhos que estavam pendentes também e eu não poderia estar mais feliz.

Pintura finalizada

Acho que eu só tenho a agradecer à Fabi (e Fábio) pela confiança e pela paciência, à Nat, minha companheira, pelo diálogo e sugestões, e à todos que me apoiam de algum forma. O vídeo com o processo de produção pode ser conferido logo a seguir.

Conversando sobre processos e seus tempos

Eu sou uma pessoa lenta para a maioria dos projetos que eu começo a produzir. Conseguir terminar um quadro é um custo, e eu exerço toda a paciência do mundo para conseguir lidar com a tinta acrílica, espero secar, crio efeitos, e esse processo às vezes se alastra por meses, sobretudo se for uma pintura grande. Neste exato momento estou trabalhando com um painel de 110×70 cm, e enquanto esperava as aguadas secarem, pintei 3 quadros menores, de 20×20 cm.

Com gravura é a mesma coisa. Tardo muitos dias/semanas/meses para conseguir terminar uma gravação de uma matriz na madeira. O processo xilográfico para mim é bem lento, com muita concentração. Já demorei quase 1 ano para fazer uma única gravação, pois ficava dias sem dar continuação ao processo da cavucada.

Agora, me impressiona o o quanto sou rápido com gravação em linóleo e com pintura em aquarela. Não sei se são boas habilidades ou falta de paciência, rs, talvez uma mistura dos dois. Para o linóleo eu penso que é um material mais tranquilo de se trabalhar, que dá possibilidades mais objetivas. Para a aquarela, penso que é um conhecimento muito superficial que ainda tenho sobre a técnica, e talvez uma falta de paciência também. Minha migs Prisca Paes sempre diz que devemos ter paciência com a aquarela, seu tempo de secagem, sua forma de trabalho, e eu fico pensando porque eu insisto em tentar fazer rápido.

Coisas da vida de um artista, difícil explicar esses métodos. Mais fácil tentar exercitar novos hábitos de produção. Dar mais tempo ao tempo (muito clichê, mas tudo a ver).

Sobre ter uma péssima sensação

Não sei se isso é uma coisa comum de acontecer ou se já aconteceu com algum de vocês. Às vezes me dá um pouco de frustração quanto à minha produção artística. Eu sei que acabo agradando um nicho muito específico com o tipo de coisas que faço, e eu fico feliz quando rola um certo reconhecimento pelo meu trabalho. E eu realmente curto quando as pessoas valorizam todas as etapas do processo, não apenas o resultado. Mas me magoa um pouco quando eu começo a compreender que de nada vale o processo.

Falo de valores monetários mesmo, pois tem muita coisa que produzo e que possui uma ótima receptividade por parte do público que eu alcanço, mas não vende, fica empacado aqui no meu estoque e isso me impede, até, de ter verba para produzir materiais novos. Antes eu pensava que isso acontecia porque os produtos tinham um valor de venda alto e inacessível, mas essa teoria foi por água abaixo quando eu entendi que o preço do produto não importa muito tendo em vista o quanto as pessoas gastam com outras coisas similares e não essenciais.

Repare que não estou aqui reclamando o fato de que eu não consigo vender muitas coisas, mas do fato de que as pessoas não creditam o devido valor em um produto. Como assim? Outro dia estava percebendo que algumas pessoas que vendem produtos similares aos meus, e mais caros, conseguem rapidamente comercializar esse estoque, e esse tipo de coisa me faz pensar algumas razões para tal.

Um exemplo muito claro é um designer que cria uma estampa de camisas, por exemplo, e contrata uma empresa especializada para realizar essa produção. O designer pode fazer qualquer coisa que a empresa vai se virar com seu equipamento e seus funcionários para conseguir produzir. Para a empresa é de boa conseguir vender esse trabalho por um preço baixo, pois paga o mesmo valor para o funcionário fazer 50 ou 50.000 camisas em um período de um mês. Acho que isso se encaixa no conceito de mais valia. O designer não terá trabalho algum de produzir essas camisas. Ele cria a estampa virtualmente e depois se dá ao trabalho de anunciar. Ele sabe que terá um trabalho de qualidade, e garantia de que todas as unidades impressas seguirão um rigoroso padrão de produção.

Muito diferente, por exemplo, são os produtos que eu faço. Além da parte virtual e da venda/envio, eu também preciso imprimir as lâminas, gravar telas, comprar camisas, preparar as tintas e fazer a impressão de cada uma das camisas. Eu preciso lidar com a perda de material, com as camisas que dão errado e preciso adaptar tudo o que produzo à estrutura que eu tenho disponível. Eu sei que uma arte com detalhes muito finos e com mais de três cores eu não dou conta de fazer, além de entender que quanto mais cores, maior é a chance de alguma coisa não encaixar bem. Eu preciso dispor de alguns dias, quiçá uma semana completa para conseguir produzir os produtos que eu planejei.

Após tudo isso, preciso colocar um valor de venda que seja acessível, que cubra o custo de produção e ainda me dê algum lucro para além de pagar as contas básicas (água, luz, internet, telefone, MEI).

Acho que a sensação mais frustrante que existe, que é ruim, que é péssima, é saber de alguém que comparou o seu trabalho com o de um designer como descrito acima, criticando a qualidade da estampa, o fato dela não ser tão complexa e chamativa, o preço dela, e a pessoa preferir pagar mais caro em uma coisa de “melhor qualidade”. Isso é muito ruim, e acho que a minha ideia de colocar os vídeos dos processos de produção disponíveis online tem muito a ver com isso, de mostrar que tudo é complicado, dispendioso, difícil e que gasta muuuito tempo e material para poder fazer.

Eu não abro mão de participar de todas as etapas do processo de produção das coisas que eu faço. Eu produzo com a estrutura que eu tenho disponível, e que desde 2011 eu tento investir para melhorar. Eu não sou rico, minha produção não é lucrativa e eu sobrevivo, principalmente, prestando serviços para outros artistas e dando aulas e oficinas. Estou longe de conseguir um público que sustente a minha produção, e as coisas pioram quando acontecem situações deste tipo, de completa desvalorização pelo processo de produção.

Minha coluna reclama muito o custo que tem produzir tudo de forma manual e artesanal e, ainda assim, não ter uma recompensa monetária que valha a pena. E disso temos que ficar naquela questão que me dói muito: manter um preço justo e um produto empacado ou baratear o produto e não dar conta de arcar com os gastos de produção e de sobrevivência?

Criando a estampa da bolsa para guardar e transportar livros

Já faz um tempo que eu, juntamente com migs, temos um Clube do Livro. Não é que a gente siga os moldes tradicionais de todes lerem os mesmos livros pra gente discutir em um encontro, mas é uma justificativa para trocarmos e indicarmos leituras uns aos outros, encontrar para comer e beber, trocar ideias e se rolar da galera ler o mesmo livro, aí fica um encontro mais daora ainda. Apenas conseguimos realizar essa façanha do todes lerem o mesmo livro agora no isolamento, pois fizemos votação de pdf’s, onde cada um indicou um livro que existe em pdf, ebook, etc, e todos votavam no que acharam a melhor opção, sendo que você não podia votar na sua própria opção. Deu certo!! O encontro virtual tem rolado sempre no segundo sábado de cada mês, e para comemorar, decidi escrever um pouco sobre o processo de produção da bolsa de guardar e transportar livros. Já tínhamos conhecimento da existência desse objeto, vimos vários modelos, treinamos a costura e decidimos criar o nosso próprio.

No meu primeiro esboço, pensei em colocar elementos que fazem parte dos nossos encontros. Livros, vinho e pão, pois representam parte da essência do encontro pois, como disse no primeiro parágrafo, é um local de trocar e indicar livros, conversar sobre, comer e beber. Também adicionei uma faixa descrevendo o nome do encontro, e acima de tudo a indicação de propriedade “Ex Libris”, fazendo a associação com o motivo do encontro.

Depois de medir os tamanhos, de forma que coubesse um livro pequeno, um kindle ou até um livro maior e mais grosso, conseguimos chegar a um tamanho satisfatório. Minha esposa fez os moldes e cortou o pano Americano Cru para que fizéssemos as bolsas.

Arte final pronta para gravação

Depois de discutir com todo o grupo alguns elementos que iriam para a imagem, adicionamos as folhagens da parte inferior, o vaso de cactus e a parreira, deixando a imagem com um ar mais fluido, clássico, chique e refinado. Finalizei a imagem com caneta Posca, marcando as linhas, as hachuras e os contrastes, deixando a arte final pronta para gravar a tela de serigrafia.

Tela gravada e tudo pronto para a impressão. O Americano Cru enruga um pouco após cada impressão, e eu ainda fiquei meio bolado se a impressão, ao secar, ficaria meio torta. Acabou que não ficou, e depois eu também descobri que é sempre bom lavar o Americano Cru antes de silkar, para as tramas se ajustarem. Depois vou fazer um teste assim pra saber se fica melhor ou não.

Trabalho de silk finalizado, hora de fechar a costura e dar o acabamento que falta. Deixamos um túnel na borda para passar um cordão e poder fechar a bolsa. Resultado bem satisfatório. Livros protegidos para transporte, com direito a personalização do nosso Clube.

Mais planos

Chegando na reta final de apresentação do TCC, prestes a me formar em Licenciatura em Artes Visuais, o planejamento para os próximos meses começa a maquinar na minha cabeça. Eu já estava pensando em algumas mudanças na estrutura e mobiliário do meu atelier, com a finalidade de liberar espaço para adquirir novos equipamentos e aproveitar melhor o espaço ocioso em alguns lugares.

Começando pela cozinha, necessito urgentemente de um armário ou despensa para guardar utensílios domésticos e mantimentos. Já estamos olhando isso e é capaz da gente adquirir algo barato, para quebrar o galho até conseguirmos uma estrutura melhor. Também é necessário equipar o espaço para a produção de chocolates e bombons, comprar um aparador mais alto para a coluna agradecer no final do dia.

A sala de serigrafia também será alterada. Preciso contratar um serralheiro para criar uma estrutura de apoio para as telas de serigrafia ficarem guardadas suspensas. Também uma estrutura para apoiar as telas de maneira horizontal para secar emulsão no escuro. A ideia é, também, investir em uma mesa de luz a vácuo para gravar as telas, eliminando a utilização de livros como peso, e até para gerar uma gravação mais precisa também. Além disso, adquirir mais dois berços de impressão de estampas e uma mesa mais extensa, para colocar as telas descansando enquanto imprime outras cores. Talvez essas mudanças serão o investimento mais alto no atelier, mas que, no final, vai valer muito a pena.

Na sala principal, a ideia é adquirir mais módulos de estantes para guardar o restante dos livros e mais algumas outras miudezas que estão sem espaço. O móvel da sala também será eliminado, pois não aguentou o peso dos discos de vinil e da televisão e cedeu em diversas partes. Ainda precisamos estudar as possibilidades nesse local.

No quarto de produção, preciso de mais módulos para guardar materiais, ou alguma estrutura tipo mapoteca de gavetas que suporte papéis e matrizes. Atualmente eu uso uma cômoda, que está comigo há mais de 15 anos, e recentemente ela também não aguentou o peso dos papéis, cedendo em diversas partes. A ideia da mapoteca é justamente comprar uma que suporte o peso, e que suporte papéis de grandes formatos, tipo A2, pois eu não tenho onde guardá-los. Também é necessário colocar uma mesa de vidro ou tábua de corte em cima da mesa de trabalho, para esticar tinta de gravura e cortar stencil. Também há a possibilidade de cortar stencil em algum suporte portátil, mas este precisa ser grande, pois estou com projetos megalomaníacos para produzir. Também é necessário a compra de cadeiras e bancos, preferencialmente dobráveis, que possam ser guardados. Há a necessidade, também, de pendurar os quadros nas paredes que não possuem infiltrações (tomando todo cuidado para não mofar os quadros), e construir suportes para os rolinhos de borracha e, assim, liberar os cabideiros para roupas, bolsas e aventais.

Na parte externa, necessito pintar o muro, e já estou olhando isso com alguns amigs para fazer um mural coletivo. Também, colocar plantas para aproveitar a área externa, bem como bancos , caso alguém queira situar-se por lá. Na área externa, também colocarei um tanque para lavar telas, já estou vendo isso com um amigo, e quando instalado, poderei limpar o chão, que anda encardido de tinta, emulsão e químico de serigrafia.

Para finalizar essa parte de reformas, preciso terminar a pintura das portas e janelas, iniciadas ano passado, e que foram descontinuadas. Também, pintar com stencil a parte interna para decorar o espaço, alguns padrões de tom sobre tom, estou estudando ainda como farei, mas acho que vai rolar.

Tudo isso, porque estou com muitos planos de produção e de aulas e quanto mais eu puder investir no espaço, mais eu boto fé que trabalharei. Eu gosto de fazer o que faço, e acho que isso tudo vai ajudar a dar um gás nas minhas ideias.

A Loja Online anda um pouco parada, mas em breve eu volto a colocar novidades.

Oficina de Baren

Ontem rolou a primeira oficina de produção de baren tipo japonês. Apesar das 130 pessoas que acessaram o site de compra e inscrição, apenas duas realizaram o pagamento, e apenas uma compareceu.

Foi basicamente uma aula particular, e bem interessante no ponto em que eu fiquei muito mais próximo da aluna, que eu já conhecia, mas ainda com uma certa distância até então.

O programa foi bem simples. Apresentar os diversos tipos de barens e formas de impressão manual, iniciar a produção fazendo um bilhão de nós na linha; medir e cortar a fôrma da base; colar a linha nodulada; medir e cortar o pano do acabamento do baren.

Nesse ponto, paramos a produção para assistir a um vídeo em que um Mestre ensina a trabalhar com a folha de bambu para fazer o acabamento, e a forma como ele dá o nó final na folha para que ela fique firme. Houve uma breve conversa sobre as diferenças de materiais entre os barens, e logo retomamos com o processo de acabar e concluir o baren.

 

 

Como sempre acontece, houve uma pausa para o lanche, e logo colocamos a mão na massa para entintar matrizes e imprimir utilizando o Baren. Como a pressão da ferramenta e do braço atuam de forma diferente, é interessante compensar colocando uma quantidade maior de tinta na matriz, para que se consiga uma cor mais chapada/escura, sem fazer tanto esforço. Os orientais utilizam tinta a base de água no processo, e isso facilita o processo de impressão com baren. No caso da tinta gráfica, tudo deve ser adaptado.

Esse ano ainda acontecerão outras oficinas similares, espero que ainda em fevereiro eu consiga fechar as datas.