[xilogravura] Pula a cerca/Brinca el borde

Imaginário

Eu não me lembro quando meu interesse por algumas questões que aconteciam no México surgiram. Eu escutava música mexicana, a maior parte ligada ao punk, e bandas de outros lugares que também dialogavam sobre as questões do México. Desobediencia Civil, Molotov, Los Crudos, Brujería e Vieja Guardia são alguns exemplos. Eu gostava de ler as letras que falavam sobre os zapatistas, sobre o narcotráfico, sobre história da região, revoluções, guerras, sobre corrupção, sobre estilo de vida e sobre a migração. Era uma forma de ter certa sensação de curiosidade poder imaginar as diferenças desta região para onde vivo aqui no Brasil, fazer assimilações, também estudar o idioma espanhol. Eu curtia muito escutar punk que cantava em espanhol, eu tinha a sensação de que as letras eram mais complexas, mais diretas e tratavam sobre mais temas que as bandas daqui. Ainda que essa tenha sido uma suposição equivocada da minha parte, escutar bandas como Los Muertos de Cristo, @patia No, Fun People e Sin Dios (uma música desta última gerou o nome que uso desde 2008: La Idea) me davam uma noção do quanto eu poderia aprender e imaginar sobre as diferentes questões do mundo.
Em 2008, eu assinava o jornal Le Monde Diplomatique. Era uma jornal legal, porém muito acadêmico e muito denso, e eu acabava ficando de saco cheio de algumas matérias cuja escrita era técnica demais pra minha compreensão na época. Em abril daquele ano, a edição que chegou trazia uma matéria sobre algumas questões que a região da fronteira estava passando por conta da implantação do NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) que entrou em vigor no primeiro dia de 1994, e 14 anos depois os agricultores mexicanos estavam passando aperto com a industrialização forçada e com as isenções tributárias impostas pelos Estados Unidos ao México.
A matéria dizia respeito a um lugar muito específico: Ciudad Juárez. Cd. Juárez é uma cidade que fica no extremo centro/norte do país, no meio do deserto, bem na divisa com o Texas (Estados Unidos). A cidade do lado de lá da fronteira, El Paso, era considerada a cidade mais segura dos Estados Unidos, e a do lado de cá, Cd. Juárez, a mais violenta do mundo. As cidades antes se chamavam apenas Paso del Norte, e com a guerra entre Estados Unidos e México em 1844, onde os Estados Unidos usurparam, através de um acordo, metade das terras mexicanas, o Rio Bravo que cortava Paso del Norte ao meio foi eleito como o demarcador da fronteira, separando a mesma cidade entre dois países distintos. Pelo fato da localidade se encontrar no meio de uma região desértica, as duas cidades se desenvolveram de maneira conjunta e dependente, até o fechamento das fronteiras.

A fotografia que acompanhava a matéria me chamou atenção: Um homem pulava a cerca que divide as duas cidades. Sim, é uma cerca, não um muro. Na real, são várias cercas em sequência, logo após da borda do Rio Bravo, hoje canalizado, com pistas para carros de vigilância. O acesso entre os dois países se dão por pontes, onde tem a Aduana de ambos países, sendo que para entrar no México é super rápido, mas para entrar nos Estados Unidos costumam ter muitas filas e fiscalizações. Em Cd. Juárez se encontram 4 pontes para veículos e 1 para trem de carga, e as pontes são a principal simbologia entre essa confusão que significa ser um cidadão fronteiriço, cheio de aberturas culturais, sociais, identitárias e de fechamentos comerciais e de fluxos de pessoas ao mesmo tempo.
Em 2012, eu deixei de imaginar o que seria essa região e morei em Juárez por 6 meses. Eu e minha companheira fomos estudar na Universidad Autónoma de Ciudad Juárez (UACJ) e pudemos vivenciar um pouco essas contradições e ambiguidades presentes na vida fronteiriça. Sobre a vida em Juárez, talvez seja tema para outra postagem, mas quero deixar registrado essa fotografia que eu tirei de dentro do ônibus quando ia para o campus das Ciências Humanas e Exatas. Era um viaduto que acessava a avenida que corre rente ao Rio Bravo, margeando ele. Na foto, vemos a borda do Rio canalizado, a pista por onde passa “La Migra” (viaturas de controle de migração e de passagens não-autorizadas), a série de cercas que separam os dois países e El Paso ao fundo.

Viver na fronteira é algo muito diferente do tudo que eu pudesse, um dia, ter imaginado. São muitas influências dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que se conserva um identitarismo que se diferencia de quem está do outro lado. Juárez não possui edifícios altos, possui muitas construções antigas, muitas casas abandonadas por conta da violência, pouca vida nos espaços públicos. Mas as pessoas que vivem em Juárez fazem acontecer todos os tipos de corres para que a cidade não morra. Conhecemos vários coletivos de arte, gente que intervém nas ruas o tempo todo trazendo essa memória, agitando a cultura e criando espaços e possibilidades para que qualquer um tenha orgulho de tudo que é produzido ali (não estou falando da indústrias/das maquiladoras!).

Gravando

Alguns anos depois, provavelmente 2018 ou 2019, comecei a trabalhar em uma xilogravura que pudesse trazer um pouco dessa memória que eu tenho, e que me gerou tanta inquietação na época. Eu não quis intervir em absolutamente nada. Todos os elementos da fotografia eu tentei trabalhar de uma maneira simples, porém detalhada.

Fotografia original /// Meu desenho com marcador Sharpie que originou a xilogravura

O processo de gravação foi lento. Várias semanas cavucando a madeira, sobretudo na parte da cerca/grade. Foi um processo desafiador. Eu gosto muito da estética da xilogravura, bem marcada, contrastada, com traços mais expressivos. Ainda que no linóleo eu também consiga efeito similar, a textura que a madeira deixa como se fosse um rastro de destruição é algo que soa bem aos meus olhos.

Acho que a memória sempre traz coisas legais interessantes quando pensamos em produzir algo. Eu gosto de trabalhar com fotografias muito por conta disso também. Elas possuem uma história que, de alguma forma, se entrelaça com minhas experiências. Nunca achei que algum dia eu iria sair do país, nunca tive condições econômicas para tal façanha. E ~de repente~ consigo uma bolsa de estudos para vivenciar algo que eu só imaginava enquanto escutava músicas ou lia reportagens. Acho que esses significados que a gente dá é o que vale a pena todo o processo de se produzir alguma coisa na áreas das artes visuais.
Pula a Cerca pode ser traduzido como Brinca el Borde, nome que dei para esta produção. Mas vou parafrasear uma banda punk muito massa, Propagandhi, e já deixar um “FUCK THE BORDER” bem grande aqui. Por um mundo sem fronteiras!
Abaixo, seguem algumas fotos da gravura impressa, o resultado final, seguida de um vídeo da gravação da matriz que contém imagens de como eu fiz alguns destes detalhes. A gravura pode ser adquirida na LOJA VIRTUAL.
Obrigado pela atenção,
Até.

[litografia] Coruja Cholo

No auge da minha monitoria na disciplina de litografia, lá na EBA/UFMG, andei testando técnicas pra poder compartilhar com xs alunxs um pouco do conhecimento que eu desenvolvia no atelier.
Nesta gravura, eu usei tousche (bastão gorduroso para desenho na matriz litográfica) diluído e aplicado com bico de pena na coruja, aplicado com pincel na moldura oval, e criei uns efeitos com tousche queimado com aguarrás pra dar uma estética meio envelhecida, manchas de mofo/umidade.

Caracterizando os elementos representados – CORUJA

A Coruja tem essa representação ligada ao conhecimento, sabedoria. Durante algum tempo eu curtia muito essa ave, tinha pequenas esculturas de coruja, em 2012 até cheguei a tatuar uma coruja no meu antebraço. Também as usava como personagens de meus desenhos, gravuras e pinturas.
Enfim, a imagem da coruja foi algo que permeou minha criatividade durante muito tempo, e tê-las feito dentro de temas específicos foi algo que curti bastante nesse período. Foi minha porta de entrada pra trabalhar diferentes estéticas a partir de um mesmo referencial. Também foi minha porta de entrada para vestir animais a caráter, algo que faço com mais frequência atualmente. Ao lado está o esboço que fiz no meu bloquinho A5, utilizando canetas nanquim, Posca e marcador Sharpie Tank.
Esta ideia foi especial, uma coruja com vibe meio Ron Swanson Chicano.

Identidade CHOLO

CHOLO diz respeito a uma identidade fronteiriça existente, sobretudo, na divisa entre México e Estados Unidos. Ciudad Juárez (México) e El Paso (Estados Unidos) são cidades surgidas a partir da separação do povoado de Paso del Norte (México), que foi separada na Guerra de 1846, quando os Estados Unidos usurpou metade do território mexicano e decidiu-se que o Rio Bravo, que cortava a cidade, fosse a fronteira entre os países. Apesar de serem divididas por limites transnacionais, as cidades estão situadas no meio de uma região desértica, e elas possuem trocas muito fortes entre si. Grande circulação de mercadorias e pessoas cruzam a aduana, e o fechamento da fronteira é um fenômeno relativamente recente.
Atualmente, uma cerca do lado norte do Rio separam os países, mas como as cidades são co-dependentes, famílias, negócios, movimentos pendulares, comunidades indígenas e recursos foram divididos, criando uma situação ainda mais complexa de circulação. É nesse contexto que surgem os Cholos. Ainda que eu tenha usado essas duas cidades como exemplo, o fenômeno é algo comum em várias localidades da fronteira, não se limitando à fronteira Chihuahua/Texas.
Cholos são caracterizados como seres fronteiriços, que utilizam da estética para se diferenciarem dos estadunidenses, portanto, são mexicanos (ou, atualmente, descendentes de famílias mexicanas).
É uma identidade que foi desenvolvida a partir dos Pachucos, e isso sim tem um teor geográfico mais localizado, pois El Paso também é conhecida como “Chuco”, e Pachuco seria um termo derivado do “Para el Chuco” (Pa’Chuco), pois muito mexicanos faziam o movimento pendular de morar em Cd. Juárez e trabalhar em El Paso.
Caracterizando a estética Chola, calças pantalones (derivadas do Zoot Suit Pachuco), camiseta canelada branca, camisa flanelada xadrez com apenas o botão superior abotoado, muitos usavam bigode e cabelo penteado para trás (alguns usavam um tipo de redinha para manter o cabelo no lugar), outros usavam bandana (marca registrada de muitos grupos até os dias de hoje). O uso de tatuagens também era muito comum, bem como associação com gangues e grupos identitários como forma de defesa.


Moldura

Pensando na questão dos elementos que eu propus nessa gravura, a moldura é algo realmente especial. Com um estilo bem rococó, com arabescos volumosos e bem marcados, a moldura traz um ar de algo clássico, envelhecido, mas que mantém sua nobreza estética. A mesma ideia eu tive com os efeitos de envelhecimento da “foto”, conferindo um caráter de algo antigo, mas que se mantém ainda firme, apesar das adversidades.
A memória é algo que se cultiva, para que não desapareça.

La Idea, 2015 – Litografia sobre papel Hahnemühle, 300g, 33×44 cm

A litografia pode ser adquirida clicando aqui.

Mais uma xilogravura na área

Desde 2019 que eu estou trabalhando em uma matriz de xilogravura com a temática de imigração. Eu vi essa imagem de um cara pulando a cerca que separa Chiuhuahua do Texas nos idos de 2009, quando ainda assinada Le Monde Diplomatique. 3 anos depois eu fui morar nesse mesmo local, Ciudad Juárez, Chiuhuahua, México. É uma relação de cidade bifronteiriças e binacionais. Nunca tinha ouvido falar de relações deste tipo. Os habitantes passam e voltam a fronteira todos os dias, pois moram no México, trabalham nos estados Unidos, compram coisas nas duas cidades, se divertem nas duas cidades. É bizarro. É uma questão bem diferente se pensar nesse muro/cerca vergonhosos que foi construído ao longo do Rio Bravo, que divide os dois países.

Tardou muito tempo até que eu conseguisse concluir essa gravação. Ela tem detalhes precisos em apenas parte dela, mas a questão é que eu sempre deixava outras tarefas para serem feitas antes e sempre adiava a conclusão desta matriz.

A madeira utilizada foi um compensado de pau marfim, no tamanho um pouco maior que um A4. Utilizei basicamente goivas tipo faca, e usei goivas em V e em U para fazer pequenas incisões ou remover o fundo.

Movimentos migratórios sempre existiram e sempre existirão e não será um muro que irá eliminar esse processo. Mx/US, Ceuta, Palestina/Israel, Grande Muralha, Muro de Berlim, construções que trazem vergonha à humanidade.

Os vídeos com os processos de gravação e de impressão podem ser conferidos no canal de Youtube ou no IGTV do Instagram.

Encontrei mais fotos do km 27

Depois de haver escrito o post anterior, fiquei buscando mais fotos destes dias de pintura. Consegui encontrar mais algumas fotos. Lembrando que o Centro Comunitário do km 27 ficava bem próximo de uma Casa, religiosa, que cuidava de várias crianças abandonadas e órfãs. Foi outro local que pintei. Apesar de não ser nada religioso, não me importei em pitar um Jesus Cristo e um escrito “Jesus” no muro externo da Casa. Ao que parecia, e não me lembro muito bem, o trabalho que eles faziam era bem daora.

O representante do projeto Jóvenes en Acción, Adán, foi o contato pra fazer essas pinturas. Foi por causa dele que eu participei do concurso, e foi por causa dele que fomos pintar esses murais nesse bairro longínquo.

Em Ciudad Juárez tive contato com muitas experiências interessantes, projetos incríveis, que tenta correr atrás do tempo perdido nessa onda de violência. Imagina que há muuuitos anos atrás existia uma cidade mexicana chama Paso del Norte, que ficava no meio do deserto e era um local de passagem e pousada para quem viajava ao norte ou ao Pacífico. Nos meados do século XIX os Estados Unidos tomou grande parte do território mexicano, e a cidade foi, literalmente, divida em duas, tendo o Rio Bravo, que antes cortava a cidade, como novo marco delimitador de fronteira internacional. Hoje, temos de um lado Ciudad Juárez (que durante muitos anos ganhou o título de cidade mais violenta do mundo fora de zona de guerra), e do outro lado do rio temos El Paso (a cidade mais segura dos estados Unidos). Grande contradição, não é?