Lapsos de Tempo #8

Diário

Hoje acordei nesse lugar estranho. Parece uma caixa com uma porta. Tem outros como eu em outras caixas parecidas. Não vejo ninguém com a cara boa dentro destas caixas. Tem algo ligado na minha veia, parece que estão me injetando um líquido transparente. Sinto uma dor abdominal tremenda, parece que falta algo. Não tenho muitas lembranças de como cheguei aqui, ou o que aconteceu nesse tempo. Tem algo enfiado no meu pescoço que me impede ver o que fizeram comigo, mas sinto uma faixa apertando o abdômen. Acho que estou sem forças…
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Vejo o casal que cuida de mim na sala de espera desse lugar horrível. Por mais que eu queira sair correndo em direção à eles, sinto muitas dores, acho que estou meio zonzo. Sinto uma fraqueza no corpo. Eles me pegam no colo e me colocam no carro. No trajeto, olho a paisagem, ainda muito desconfiado do que pode ter acontecido comigo.
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Já fazem alguns dias que sigo a mesma rotina. Me obrigam a tomar vários remédios com hora marcada. Eles são ruins, amargos, e eu sempre recuso esse tipo de tratamento. Essas pessoas que cuidam de mim me colocam deitado de barriga para cima no sofá. Eles limpam o corte fechado com pontos que tem na minha barriga. É um corte grande, e eu sinto um nervoso ao sentir esse produto de limpeza que passam. Nem vou dizer da coceira que dá quando borrifam esse trem marrom no ferimento. Eu sigo sem forças para várias tarefas, mas agora o colchão está direto no chão, eu não preciso me esforçar para dormir no quentinho.
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Hoje tiraram meus pontos. Foi um baita dum alívio. Não preciso mais usar aquele aparato no pescoço que me impede de fazer tudo. Talvez eu esteja melhor.
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Toda semana estou frequentando esse lugar, que parece o das caixas, mas que é diferente. As pessoas se parecem, mas a disposição de tudo é diferente. Entro numa sala, sempre a mesma sala quente, e fico sentado nessa mesa de alumínio. Minha pata é raspada com máquina, colocam uma agulha enfiada na minha veia ligada à esse líquido transparente. Injetam algo nessa mangueirinha e sinto algo queimando se misturando ao meu sangue. É bem desagradável. Toda semana é isso. Ao final, recebo umas agulhadas com medicamentos debaixo da pele nas costas, costuma ser bem dolorido. Eu ainda não sei o que aconteceu comigo.
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Já tem um tempo que não preciso mais ser medicado, já não me sinto mais fraco, minha vida voltou ao normal. Consigo correr, pular, latir e brincar sem sentir dores. Eu engordei alguns quilos, e nem tenho mais a aparência raquítica. Todo dia, antes de dormir, estão me dando um negócio com gosto de peixe, dizem que eu precisarei tomar pra sempre. É gostoso, faço questão de lembrá-los disso antes de deitar.
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Ultimamente tenho tido dificuldades para urinar. Eu faço bastante força, e costuma sair sangue. Eu não sei o que fazer para que as pessoas percebam essa dificuldade. Mas acho que da última vez eu urinei um pouco de sangue. Acho que eles viram o meu esforço para que saísse isso. Talvez eles me levem ao médico, sei lá.
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Que dor de cabeça horrível, odeio acordar assim. Nem acredito que estou dentro da caixa com portas de novo. Os rostos nas caixas são outros, não reconheço ninguém. Estou ligado nesse aparelho que enfia líquido na minha veia de novo. Esse troço desengonçado no meu pescoço voltou. Ainda sinto muitas dores e não consigo me lembrar de como cheguei aqui. Estava fazendo alguns exames, enfiaram umas mangueiras em mim, de repente acordo aqui. Não aguento mais isso.
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Cheguei em casa bem desanimado. Dói bastante para urinar, parece que tem pontos novamente em mim. As pessoas que cuidam de mim limpam a saída do xixi constantemente, talvez os pontos estejam ali. Retomaram com a rotina destes remédios de sabor horrível, são muitos. Me faltam forças para reagir…
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É estranho mijar por esse orifício que abriram em mim. Eu não sei porque fizeram isso, mas imagino que deva ser pela dor que eu sentia quando tentava fazer xixi. Agora não dói, mas ainda é estranho, talvez seja difícil de acostumar.
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Fazem alguns meses que me sinto super bem, ativo como nunca. Não me levam na clínica há tempos, não sinto dores. Talvez sejam novos tempos, o sol até brilha mais forte que o normal.
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Ultimamente tenho me sentido desanimado, o sol está queimando mais que o normal, tenho buscado sombras. As pessoas que cuidam de mim jogam uma bolinha ou um ossinho de corda, mas não sei se tenho muitas energias para interagir agora. Eu olho para esses objetos e fico pensando se vale a pena o esforço. Não vale.
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Hoje aconteceu algo terrível. Fui tentar fazer cocô e senti algo que não devia escapar pelo ânus. Não era cocô, doía bastante e eu fiquei sem saber o que fazer. Corri para uma das pessoas que cuida de mim e fiz um estardalhaço. Ele me pegou no colo e fomos para a clínica. Lá, me deram uma injeção que eliminou a dor, e enfiaram de volta pra dentro o que não devia ter saído. Fizeram alguns pontos para evitar que saísse de novo. Foi horrível.
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Os últimos dias foram complicados. O que não deveria sair pelo ânus saiu mais 3 vezes. Em duas delas, foi feito o mesmo procedimento de injeção e retorno pra dentro com o conteúdo. Na última vez, me sedaram. Acordei na caixa com porta, bem zonzo, tonto, desorientado. Sentia a dor abdominal, só que desta vez era diferente. Eu não aguento mais esse lugar.
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As pessoas que cuidam de mim me buscaram, desta vez eu nem fiz festa, não tinha energias para isso, além de estar de saco cheio desse lugar. Em casa voltou a rotina dos remédios e da limpeza nos pontos. Eu já nem me importava mais com nada. Me sentia muito fraco para qualquer coisa.
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Fazer cocô é uma atividade muito custosa, me traz muitas dores, e não sai nada. Toda vez que faço força, algo que não deveria sair pelo ânus escapa. Eu não aguento mais isso.
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Me abriram de novo, não quero mais acordar nesse lugar… O que está acontecendo? Desta vez me deixaram aqui por uns 10 dias, morando nesta caixa com porta. Eu observava os rostos, muito desanimados, desolados, tristes… Não desejo isso para ninguém.
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Estou em casa, as pessoas que cuidam de mim fazem carinho na minha cabeça. Não sei porque, mas minhas patas traseiras estão dormentes, não consigo levantar. Apenas tenho movimento nas dianteiras e no pescoço. Fico encarando as pessoas para ver se elas estão percebendo isso.
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Minhas patas dianteiras param de funcionar, estão dormentes, não as sinto. Apenas meu pescoço se mexe. Uma das pessoas me carrega para o quarto e me coloca em um pano macio. Ela fica fazendo cafuné na minha cabeça a noite toda.
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É de manhã, eu apenas consigo mexer os olhos. É uma sensação horrível, parece que não há nada no corpo que não sejam os olhos. Eu solto um grito de dor involuntário, e começa a faltar ar. Um das pessoas se senta ao meu lado chorando, fazendo carinho em mim e dizendo algo que não entendo. Apenas enxergo parte de toda a situação. Eu fico cada vez mais ofegante, respirando muito fundo, escutando um choro ao lado.
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O último ar que circulou dentro de mim levou consigo toda minha essência. Já não pertenço mais à este lugar.
Obrigado por tudo,
e nos veremos em breve!

A passagem de Chiquito

Dia 25 de Julho de 2012 nasce Francisco. Pequeno, leonino, travesso e amável. Rapidamente recebeu vários apelidos que ele correspondia com bastante interesse. Do nome Francisco vieram Chico, Chiquito, Tico, Picles, Picolino, Picochito, Pico, Francis, Francis Bacon, Chiquito Bacana, entre outros… Todos sempre funcionaram muito bem para que ele soubesse que estávamos nos comunicando com ele. Francisco fez parte de uma ninhada de vários irmãos, cujos pais prováveis são Golden e Poodle. Apenas ele não se parecia com Poodle e acabou esquecido no lar adotivo vendo seus irmãos encontrarem suas famílias rapidamente. Francisco não se parecia com algo que chamasse atenção, pelos curtos de cor bege claro, barriga escura cheia de vermes. Uma coisinha apertável e carente, que ficava agitado na presença de outros seres. Sim, ele gostava muito de ter companhias. Quando cresceu ficou parecido com um Golden Retriever, porém com o tamanho de um Poodle. Fofo como Golden, agitado como Poodle (só que sem ser chato).
Foi em 2014 que ele veio viver com a gente no apartamento de área privativa em que morávamos. Chiquito não gostava de subir na cama para dormir, mas sempre tirou seus cochilos ao lado da cama, no chão. Diferentemente do seu comportamento com sofás, poltronas e redes, já que ele sempre subia nestes móveis para apoiar a pata no colo de alguém pedindo carinho. Ele também possuía um hábito curioso de cheirar olhos, era assim que ele conhecia realmente a fundo a pessoa com quem ele estava se relacionando. Ironicamente, ele não gostava que cheirássemos seus olhos.
Chico gostava de fazer suas necessidades sempre em áreas externas, sendo bem metódico com seus lugares favoritos. Exceto quando, por ironia do destino, ele ficava muito tempo sozinho. Nessas ocasiões ele gostava de urinar na quina da parede da sala durante a madrugada, como forma de protesto. Na solidão ele também chegou a destruir dois pares de sapatos.
Nesta época, para que a urina de madrugada parasse, Chico saía às ruas sem coleiras sempre antes de dormir. Ele corria pelas ruas tranquilas do bairro, explorando o espaço citadino de um bairro puramente residencial, sem muita movimentação no turno noturno. Algumas vezes ele, esperto que era ao explorar as ruas, entrava em alguma casa desavisada com portão aberto para conferir se a ração oferecida naquela residência era boa o suficiente para seus amigos do bairro.
Esse hábito da caminhada antes do sono é algo que o acompanhou até 2021, quando tivemos que alterar seus hábitos. Antes disso, Chico gostava muito de ir em praças interagir com outros animais, e sempre foi muito carinhoso com visitas na casa dele, exceto se alguém apresentava medo ou receio em relação à ele, então ele latia para repelir a pessoa de vez. Ele se sentia o maioral com esse tipo de comportamento.
Francis não gostava muito de câmeras, e sempre virava a cara para não aparecer nas lentes. Porém, suas fotografias, apesar disso, sempre ficaram muito boas. Ele saía com expressões faciais muito marcantes, penetradas, constrangidas com a situação.
Chiquito adorava a rua, a observava com quem observa estrelas no céu com uma luneta profissional. Sabia de tudo que acontecia, e fofocava com outros cães que passavam pelo local. Porém ele não era muito fã de gatos e nem de ratos. Foi ele que descobriu uma infestação de ratos que abriu um buraco na parede embaixo do armário da cozinha e ficou latindo para que soubéssemos de onde estavam vindo. Ele também nos avisou quando dois gatos entraram em casa e ficaram presos na área de serviço ou na casinha do gás, pedindo que avisássemos seus donos sobre o que ocorrera.
Francisco gostava muito de carinho e de companhia. Gostava que fizéssemos cafuné em sua cabeça, em seu pescoço, em seu peito, na sua barriga e no seu cóccix, onde ele tinha efeitos secundários que o faziam mexer as pernas involuntariamente. Às vezes ele mesmo empurrava nossas mãos para que soubéssemos onde ele queria carinho. Quando estávamos nos alongando ele sempre aparecia embaixo de nossas mãos aproveitando o momento para receber mais carinho. Ele também achava que qualquer pedaço de pano no chão era um convite para que ele deitasse em cima, fixando espaço, inclusive, sobre pés de chinelos e panos de chão. Chico também gostava de deitar em lugares estranhos nos móveis ou de enfiar a cabeça em algum lugar aleatório como se fosse um tamanduá. Ele adorava acompanhar o cochilo de quem quer que fosse, se deitando ao lado, nas pernas ou nos braços da pessoa para aproveitar aquele momento de descanso.
Chico foi um cãozinho muito ativo, feliz, brincalhão e afetuoso. Brincava de bola, mas ficava de saco cheio muito rápido. Gostava mesmo é de brincar com um brinquedo de osso feito de pano, jogando para cima e para baixo, buscando onde quer que fosse. Da mesma forma, adorava brincar com potes e garrafas de plástico vazias, mordendo e fazendo barulho por onde quer que fosse.
Em fevereiro de 2021, caminhando pela rua de madrugada, Chico achou um osso e mastigou, dando uma engasgada que nos deixou preocupados. No dia seguinte o levamos à veterinária e ela nos disse que aparentemente ele estava bem, e indicou um ultrassom abdominal para conferir se o osso ainda constava no sistema digestivo dele. Não foram encontrados vestígios de osso, mas foi descoberto um tumor em seu baço já em estado crítico. Chico fez a cirurgia de remoção do baço, teve hemorragia e precisou de transfusão sanguínea. Se recuperou bem, fez quimioterapia e com a imunidade baixa acabou tendo que lidar com outras questões: problemas renais, bactéria no tártaro do dente, dermatites, cálculos na uretra, infecções nos ouvidos… Essas questões o impediam de sair à rua para evitar pegar outras doenças.
Chiquito viveu o melhor que pôde nesse tempo, mesmo com tantas debilidades. Foi em sítios, em fazendas, viajou, interagiu com muitas pessoas, foi em parques, praças, diferentes casas de familiares e de amigos. Tomou bastante sol enquanto vigiava a rua aguardando seus amigos passarem para que as fofocas pudessem ser espalhadas.
Pouco antes do carnaval de 2024, Chiquito teve de lidar com uma prolapsia retal, que foi bem insistente em sua ocorrência, fazendo com que ele tivesse que passar por seis procedimentos cirúrgicos e duas cirurgias mais complexas até descobrir um novo tumor que se desenvolveu rapidamente e desordenadamente no seu intestino, bem próximo do ânus. Foram várias internações que ajudavam nos sintomas, mas que não eram eficazes contra a causa do problema. Nenhum tratamento mais seria possível.
Foi na manhã de 30 de Março de 2024 que Chiquito, já sem conseguir movimentar as patas traseiras e nem as dianteiras, deu seus últimos suspiros, recebendo muito carinho e amor, deitado no chão ao lado da cama, lugar que ele tanto gostava de deitar. Ele sabia que estava de partida, e só aguardava a autorização de embarque de seus tutores que tanto o amam, e que fizeram de tudo para que ele tivesse a melhor vida possível.
Chiquito deixou muitas memórias agradáveis, um verdadeiro Cãopanheiro, momentos inesquecíveis, uma massa de pessoas que o amavam, indo viver no paraíso dos animais, onde se encontra tantos outros seres que fizeram da vida algo que valesse a pena de ser vivida. Lugar onde apenas bons humanos conseguem ir, pois estar rodeado de bichanos incríveis é o melhor pós-morte que alguém poderá ter.
Vá em paz Chico, você fará muita falta em nossas vidas.


Corpo utópico

Hoje escreverei sobre utopia. Mas não sobre política, nem horizontes, nem fábulas, não vou trazer autores, mas talvez eu traga. E talvez eu fale sobre tudo, e sobre nada. Hoje tentarei ser espontâneo. A utopia a que me refiro hoje, é o lugar inexistente que passamos a saber da existência. Topia, vem de topos, lugar. A letra U que antecede a palavra sugere uma negação à esse lugar. Utopia se define, então, como um lugar sem lugar, um não-lugar, um lugar inexistente. Um lugar idealizado, fantasiado, perfeito, uma quimera.
Trago esse preâmbulo confuso para pensarmos nos nossos corpos, organismos físicos que não compreendemos muito bem como funciona. O corpo quando é dissecado em vida, possui um complexo de órgãos, músculos, tecidos, células, líquidos e outras matérias que trabalham em conjunto fitando manter a vitalidade dos seres humanos.
Nós raramente pensamos no lugar que nosso corpo e suas complexidades habitam. Porque comemos o que comemos, porque nos movimentamos, porque pensamos, nos relacionamos, porque nos excitamos e nos empolgamos com alguma coisa?
Há algo que reside no subjetivo de nossa existência que não possui um lugar concreto. E agora, enquanto escrevo, me pergunto se o corpo é uma utopia ou uma heterotopia, lugar utópico com posicionamento em um lugar real. Mas penso no que compõe o corpo, que sabemos que existe, que está lá, e que não nos damos conta da importância ou da existência.
No primeiro semestre do ano passado li o texto “O Corpo Utópico” de Michel Foucault, lançado pela N-1 Edições. Entre os exemplos que o filósofo cita no decorrer de suas linhas, algumas definições me chamaram a atenção. E me impressiona o fato de eu guardar esta ideia por tanto tempo antes de escrever sobre.
– O primeiro exemplo passa pela forma como descobrimos a existência de nosso corpo. Um bebê recém nascido, que passa seus dias com um universo muito limitado em relação ao corpo, aprende aos poucos que existe algo além de sua cabeça, e vai descobrindo seus membros e como controlá-los. Cada descoberta traz uma imensidão de possibilidades, e aqui cabe a analogia com criar um lugar para o que antes era inexistente, ou se desconhecia a existência;
– O segundo exemplo perpassa toda uma questão relacionada à ordem do sensível. São corpos que, apesar de se situarem na ordem material, nos são invisíveis. Nesse sentido, a exploração através do tato, do olfato, da audição, do paladar e da visão nos fazem conhecer, de outras formas, outros tipos de interação com diferentes matérias. Sentir e fazer sentir nos possibilita localizar algo que não conseguíamos imaginar ou prever. Olhar para a pele arrepiada é uma experiência diferente de sentir arrepios, ou de causar arrepios em alguém. A sensação se localiza na interação, e logo se torna utopia novamente;
– Por último, o desaparecimento de um lugar físico, de uma matéria, de um corpo. A transformação de algo localizado em uma utopia. O corpo não se deixa reduzir tão facilmente, ele quer existir em algum lugar. O corpo possui as próprias fontes de utopia, de imaginação, de sensibilidades, de localização ou perda de qualquer coisa. O que nos constitui como sujeitos, que nos faz pensar, refletir, nos movimentar, nos relacionar e desenvolver novos espaços, reais ou virtuais. O corpo é atuante e resistente ao esquecimento, até que é acometido por alguma doença ou debilidade em suas diferentes funções. Foucault escreve que em situações de enfermidade o corpo deixa de atuar, de sonhar ou de imaginar, e passa apenas a tentar sobreviver, resistindo ao que lhe destrói. O lugar real do corpo se torna um lugar desconhecido, talvez esquecido. O corpo perde suas subjetividades e funções para tornar-se apenas uma coisa, uma carcaça de anticorpos que busca sentido para a vida.
Todas as coisas existentes e inexistentes estão dispostas em relação ao corpo. Porém para cada corpo, uma disposição diferente de topias e utopias. O corpo é o marco zero onde desenvolvemos nossos significados, onde localizamos as utopias, de onde irradiam todos os lugares possíveis e impossíveis.

3 anos

Hoje se completam 3 anos do falecimento do meu pai. Eu gosto de sentar na frente do computador e escrever algo em sua homenagem sempre que chega o dia 25 de Janeiro. Esse dia é dedicado à escrita sobre a morte, sobre a vida, sobre as relações e sobre várias coisas que me lembram dele, ou dos momentos que pudemos vivenciar juntos. É uma forma de localizar a memória guardada em alguma utopia do meu cérebro e transformar em algo real.
Trago este tema da utopia porque penso na linha da vida em que meu pai nasceu, viveu, e teve o funcionamento de seu corpo interrompido por conta de um tumor. Fico aqui pensando em tudo que ele descobriu e vivenciou durante sua existência no plano terrestre. Tudo que ele pôde significar em relação ao que o afetava e interagia com ele. E eu me incluo nesse espectro luminoso de sentidos. Muitas dessas descobertas foram feitas junto à mim, ou em relação à mim, e muitas outras apenas me foram transmitidas.
Durante muito tempo, eu ficava me perguntando sobre o sentido da morte, porque morremos, e essas coisas. Mas acho que da mesma forma que nós topificamos o que está ao nosso redor na medida em que nos desenvolvemos, nos transformamos em utopias quando precisamos lidar com tudo que ainda nos é desconhecido. Não sabemos nada sobre doenças, até que precisamos lidar com alguma. E lidamos com nossas próprias doenças e com doenças das pessoas com quem nos relacionamos, com quem temos afetos. Tentamos localizar o corpo em algum lugar na esfera da vida, como se fosse um alfinete em um mapa-mundi, e nossos esforços de conter uma possível utopia dos corpos é incansável.
O corpo doente é apenas uma coisa que será mantida viva por profissionais da saúde, por fármacos ou por máquinas, e aí já não importam mais as subjetividades. Importa apenas o esforço em adiar a utopia da matéria por mais algum tempo.
E eu fico pensando aqui em todo o processo que meu pai passou. Foram apenas 3 meses da descoberta de um tumor até seu falecimento. E o corpo dele foi, praticamente, reduzido a algo que necessitava um esforço em ser mantido vivo, não importa qual procedimento cirúrgico, laboratorial, robótico ou químico seria utilizado para isso. Todos nos esforçamos com essa finalidade.
Talvez eu escreva isso sendo cruel demais com todo o processo, ou talvez não. Na hora tudo parece ser o melhor método, e mesmo depois nós ainda não sabemos muito bem o que foi tudo isso. No calor do momento eu escrevi sobre o processo de morte, e como significávamos tudo o que acontecia. Foi tudo muito tenso, e corrido, e exaustivo, e cansativo, e triste. Celebrávamos cada melhora como se ganhássemos um campeonato, e nos abatíamos a cada notícia desfavorável que chegava. Sempre achamos que algo mais poderia ser feito, ao mesmo tempo em que temos a certeza de que tudo que era possível de ser feito, foi feito. É um sentimento muito ambíguo e contraditório em relação à tudo que aconteceu.
Mas, enfim, prefiro ainda acreditar que meu pai foi descansar de tudo que ele vivenciou e descobriu. De todas as relações que ele significou e que já era hora de fazer o corpo descansar da luta contra o surgimento da utopia.
E ainda que o corpo do meu pai tenha se tornado novamente uma utopia, o lugar que ele ocupa em minha vida segue muito bem localizado na minha memória, nos meus afetos, as minhas topias utópicas.
Cuidem de seus corpos.

Cinzas sendo depositadas no rio. Meu pai adorava nadar. A água será a última topia do corpo dele.




Pensando alto sobre o Livro dos Vivos, de Binho Barreto.

O Livro dos Vivos me chamou atenção pelo nome. Me ofereceu um contraponto instantâneo ao Livro dos Mortos, e eu queria entender o que há nesse livro que possa celebrar a vida como celebramos a morte. Namoro este livro já há algum tempo, desde que vi um exemplar em uma promoção no site da Editora Impressões de Minas, mas não tinha recursos para comprar na e´poca. Hoje escrevo isso e parece bobo, mas quando se está desempregado, comprar livros talvez não seja uma necessidade. Consegui comprar o livro nas mãos do próprio Binho Barreto durante a Feira Urucum. Ele estava expondo seus materiais ao lado da minha banquinha, e foi a chance que tive de trocar uma breve ideia com ele sobre a impressão que o livro dele poderia me fornecer. Desde o falecimento do meu pai, em 2021, que as reflexões sobre vida e morte vagam na minha cabeça. Refletir sobre esses processos me traz uma dor boa, dessas de me sentir vivo e saudosista, de rememorar situações em cada lágrima que escorre. Mas, principalmente, me traz uma vontade de vivenciar coisas diferentes, de correr atrás de sonhos e desejos, de não cair na apatia da sociedade consumista e sem sentido que o kapitalismo impôs.
Não faz nem uma semana que adquiri o exemplar, e agora já tentarei escrever sobre essa obra devorada em poucas horas. É uma escrita tranquila, fluida, em que a todo tempo nos questionamos sobre a veracidade das cenas descritas com uma quantidade de detalhes impressionante. É como se durante a leitura você se colocasse no lugar do autor, e observasse com seus próprios olhos cada elemento da cena que foi narrada. A narrativa tem um cuidado enorme com a memória. Sabemos que a memória nos prega peças, e é bem possível que tudo que Binho Barreto experimentou através de seus olhos não seja exatamente assim. Mas são muitos detalhes que ficaram marcados na pressa cotidiana e que são descritos como um observador nato.
São cenas do cotidiano, efêmeras, captadas somente por quem está atento à tudo que acontece ao seu redor. São segundos que te fazem esquecer do mundo para se concentrar somente nesta cena curiosa. De memória ou in loco cada capítulo traz pessoas vivendo, sendo afetadas por uma situação, por uma discussão, por uma vontade, por um problema, por uma curiosidade. São pessoas que se afetam e são afetadas por diferentes estímulos, e tudo isso é registrado por quem está presente. Lendo estas páginas me senti em um espaço-tempo onde só a observação da cena me importava. Fiquei preso na imaginação, e retornei ao fluxo de leitura.
Belo Horizonte é uma cidade jovem, que se desenvolveu com uma mistura de referências artísticas e arquitetônicas, uma atropelando a outra, que criou avenidas como se fossem muros, que vivencia suas contradições desde sua gênese. Binho parece transitar por estes espaços para descrever o que há de interessante nessas passagens, nesta história que é escrita a cada dia, longe dos holofotes da grande mídia ou do turismo. Cenas comuns, banais e efêmeras (utilizando as palavras da Elza Silveira no posfácio do livro) se tornam situações carregadas de significados, sobretudo pra quem, assim como eu, é de BH, e que todo dia tenta entender qual é a proposta desta cidade fincada no alto das serras entre ecossistemas distintos.
Nós que nos interessamos pela lógica das cidades, das vivências e das relações, percebemos as cenas, mas a correria nos impede de registrar esses momentos. Este livro talvez seja um convite à aguçar a percepção, a exercitar o registro, a viver. Parece cliché falar desta forma, mas a morte é a única certeza que temos. Iremos chegar lá algum dia. Até lá, nós viveremos.

O Livros dos Vivos – Binho Barreto – Selo Leme/Impressões de Minas

1 ano

Toda vez que eu leio sobre óbitos causados por câncer eu lembro do meu pai. Talvez tenha sido a temática que mais me abalou desde seu falecimento. Vários outros temas me lembram do meu pai. Alguns me lembram de fatos muito específicos da vida dele, outros me remetem única e exclusivamente minha relação com ele depois de descobrir o tumor. É impressionante como as memórias chegam trazendo lágrimas, emoções e uma dor que ainda será difícil de lidar.
Assistindo o seriado Modern Family, eu chorei muito com a falecimento do pai do personagem Phil. Era uma comédia, e comédias deveriam ser feitas para rir. Mas talvez personagens cativantes tragam esse misto de risos e lágrimas por nos deixar mais próximos à ideia da morte. Dizem que é a única certeza que temos durante nossas vidas. E a morte também pode ser compreendida de uma forma leve.
Lendo O Sol Mais Brilhante, de Adrienne Benson, não pude conter as lágrimas com a personagem que narra, a partir de seus olhos infantis, o processo de câncer de sua mãe. Como surge, como debilita, como cria hábitos comuns nos pacientes terminais. Eu via meu pai em cada linha. Não a vida toda dele, mas os seus últimos 3 meses de vida. As semelhanças narradas eram impressionantes, com a diferença que a personagem narra sobre memórias da infância, e eu presenciei tudo como adulto.
Lendo sobre o poeta Limonov, na passagem em que ele mora e trabalha em uma mansão em Nova York, me deparo com sua fala sobre uma criança com leucemia, em que o câncer, talvez, seja a única coisa que faz com que sua classe social não sirva de nada. No livro é uma criança bilionária que passa por esse processo, na minha realidade penso que meu pai teve o mesmo tipo de câncer que causou a morte de Steve Jobs, Aretha Franklin, Pavarotti, Patrick Swayze, Raul Cortez… personalidades que são ícones e referências em diversas áreas (tecnologia, música, cinema…). Meu pai, um ícone e referência para mim, partiu da mesma forma.
No seriado After Life, do brilhante Ricky Gervais, acompanho a vida do Tony após o falecimento da esposa, também paciente oncológica. Nesta série entram várias reflexões sobre como adaptar a vida, as lembranças geradas, como as pessoas lidam com suas perdas, com suas frustrações e como nos relacionamos com outras pessoas. A série é interessante porque mostra um personagem que simplesmente desiste de viver, nada mais importa, e nenhum problema será pior que a sua perda. E talvez a terceira, e provavelmente última, temporada me fez compreender que esse sentimento horrível de perda vai passar em algum momento.

Pai, o time que você torce ganhou 3 torneios em 2021. Foi uma euforia intensa, riscos de covid, estádios lotados, jogos bem jogados, goleadas, etc. Algo que você gostaria de ter visto. A família também se reuniu bastante, em diversas ocasiões. Falamos de você, lembrando sua história, seus momentos. Seu primo até chegou a falar que teve uma visão de uma caixa de medalhas guardadas dentro de uma gaveta. Ele é espírita e diz ter umas visões, mas de fato as suas medalhas de natação estavam em uma caixa dentro de uma gaveta. Nós realizamos seu desejo de ser cremado, foi um funeral bem cheio há 1 ano atrás, nunca vi tanta gente indo prestar uma última homenagem para você. Fiquei sabendo até que a Federação Mineira de Natação publicou uma nota sobre seu falecimento. As suas cinzas foram despejadas em um rio, lugar em que você sempre gostou de estar para se divertir, para competir, para passar o tempo. Cada um de nós, filhos, esposa, primos e tios despejamos um pouco, foi um dia bem triste e bem alegre, e muito importante para fechar esse ciclo. Nosso amigo Biel nos ajudou com os trâmites burocráticos de inventário e essas coisas, ele adiantou muito nossas vidas nesse sentido. Você chegou a vir pouco aqui em casa, ela está bem arrumadinha agora, e acho que você iria gostar de ficar aqui também, tomando cerveja, vendo o movimento da rua, batendo papo. Eu não consigo ter noção do tanto de sacrifícios que você fez para nos visitar aqui, era penoso, mas sou muito grato por isso, de verdade. No final do ano passado eu voltei a dar aulas e a tentar produzir alguma coisa. Você sempre me apoiou nessas doideras que eu fazia, e acho até curioso o quanto você gostava de adquirir minhas produções. Depois de tanto tempo em luto, conseguir voltar a produzir talvez seja uma notícia também relevante para colocar aqui.

Enfim, não consigo descrever o quanto de saudades eu sinto do meu pai. Entre altos e baixos emocionais, a vida vai seguindo seu curso. Toda hora algo me lembra dele, ora com momentos felizes, ora com situações mais tristes e tensas. Mas talvez seja a ausência o que mais marca, o que mais traz lágrimas. Agora são esses fragmentos de memórias dos momentos que passamos juntos nesses 33,5 anos de convivência. Sou feliz por aproveitar cada segundo em que estivemos juntos, e ainda pesa um pouco as vezes em que não estivemos juntos, ou que não soubemos lidar com nossas questões de uma maneira mais adulta. E agora é tarde demais para discutir sobre nossa relação, mas ainda é tempo para refletir sobre tudo que pudemos e que ainda podemos passar juntos, pela história e pela memória. Só queria finalizar dizendo que te amo, sou extremamente grato por tudo. E ainda que esse post fique confuso, não me importo. Só precisava escrever um pouco mesmo.

Experiência com a morte

Foi a primeira vez que ouvi falar dessa experiência. Poucas pessoas tiveram a chance de presenciá-la. Não estou dizendo que é algo belo ou confortável, e que todos precisam passar por isso. Só quero narrar um pouco do que foram esses momentos que, seguramente, me marcarão por toda a vida.

Ano passado, 2020, no princípio da pandemia, minha avó materna faleceu. Ela estava internada em um hospital, e vários de seus filhos e uma de suas netas (minha irmã) estavam no revezamento para acompanhá-la. Ela deixou esse mundo enquanto minha irmã segurava suas mãos. Ela morreu de morte natural, já tinha bastante idade e muita experiência de vida. Minha irmã acompanhou todo o processo e me disse que é um momento muito diferente, que nos muda. Presenciar uma morte natural talvez seja comparado ao momento do nascimento. Os dois opostos deste tempo em que uma vida existe.

No decorrer de 2020, meu pai desenvolveu um tumor maligno na cabeça do pâncreas. Ele perdeu muito peso, e os primeiros sintomas, icterícia principalmente, apareceram por volta de outubro. Em novembro veio a primeira internação. Os médicos ainda não tinham muita certeza, ou não nos falavam muito bem o que estava acontecendo. Pesquei algumas conversas entre eles enquanto acompanhava meu pai, e o termo “neoplasia periampular” começou a surgir. Pesquisando na internet, descobrimos que o o termo diz respeito ao câncer de pâncreas, cujos sintomas aparecem já em estágio avançado e a maioria dos pacientes possuem uma sobrevida média de 6 meses depois do diagnóstico. Há aqueles casos de pessoas que vivem 10 anos, mas é raro.

Com isso em mente, o desespero e a tristeza fizeram parte de nossas vidas durante esse tempo. Foram várias consultas e exames, algumas endoscopias e a colocação de duas próteses para manter o sistema digestivo tentando funcionar. Os médicos chamavam isso de “dar qualidade de vida” ao paciente. Talvez esse termo fale sobre ter os familiares por perto, porque desde o diagnóstico até seu falecimento, meu pai não teve descanso e nem paz. Começou com o estômago acumulando alimentos e líquidos, expandindo e pressionando outros órgãos. O duodeno, que estava com uma prótese para desobstruir a passagem de alimentos, não funcionou muito bem, e começou a vazar líquidos para fora do sistema. O pâncreas começou a atrofiar. Dores na lombar o incomodavam a ponto dele não achar posição para ficar, nem em pé, nem sentado e nem deitado.

Foram meses sem dormir, sem comer, sem beber, com muitas dores, sem conseguir se locomover direito. No princípio de janeiro, já raquítico, sem musculaturas, sua audição e fala foram comprometidas. Seus olhos já aparentavam estar afundados no crânio, seus ossos estavam muito salientes. Em janeiro, houveram mais duas internações. Acompanhamos todo o processo de perto. Eu o visitava todos os dias, ainda que ele dormisse a maior parte do tempo. Eu tinha muito medo dele não acordar. Estávamos cientes de que esse dia poderia chegar a qualquer momento. Eu abri mão do meu trabalho, e apenas produzi o que estava ao meu alcance. Havia algo mais importante acontecendo.

Na terceira internação ele já estava muito debilitado. Ficava confuso e disperso, ficou com a locomoção completamente dependente de terceiros. Ele não achava posição, e mudava a cada cinco minutos. Levávamos ele da cama pro sofá, do sofá pra poltrona, de volta pra cama. Ele dizia que não sabia o que queria, mas o ajudávamos mesmo assim. Houve pequenos conflitos entre a gente, normais nestas situações. Já andávamos desgastados dessa maratona de cuidados e dedicações.

A cada momento surgia uma nova questão. Desde outubro ele desenvolveu anemia, diabete tipo 2, infecção abdominal, princípio de trombose, inflamações diversas, embolia pulmonar, enfisema pulmonar. Nós entendemos que isso é o corpo parando de funcionar aos poucos. O médico nos disse que a situação dele era gravíssima. T4N2M1 no primeiro diagnóstico. Essa classificação piorou com o tempo.

Na noite do dia 24/01 o colocamos para deitar. Estávamos eu, minha irmã e minha mãe no quarto. Meu pai era um paciente em estado terminal e nos foi autorizado ficar com ele. O primeiro turno acordado era o meu. A madrugada chegou, e por volta das 2h já do dia 25, meu pai levantou a mão. Ele não conseguia falar muito bem, e muitas coisas eram feitas por gestos. Eu fui até ele e ele me disse que queria “dormir”. Falou duas vezes e foi isso que eu entendi. Ele queria levantar, ele queria sentar, ele queria ficar de pé. Ele queria descansar. Tanto tempo privado do sono, e ele precisava desse descanso. Minha irmã acordou e eu fui deitar. Ele estava com algumas sondas entrando pelo nariz, mais o acesso de soro e medicamentos nas mãos. O acesso que teve que ser feito e refeito várias vezes, pois as veias estavam muito finas e não corriam mais sangue. Minha irmã falou com ele que não iria levá-lo pro sofá porque estava inviável. Todas as vezes era muito sacrifício para ele, ser carregado, a gente sem jeito, muitos equipamentos para levar junto.

Ela subiu o encosto da cama e ele se sentou. Sua respiração estava ofegante. Dava para perceber que o ar não estava chegando onde deveria. Eu estava deitado em uma poltrona reclinável que o enfermeiro trouxe. Eu estava de frente para ele. Ele estava olhando a janela, e sua respiração estava forte, como quem fazia muito esforço para conseguir puxar o ar. Ele ficou imóvel das 2:30 às 7:30. Durante esse tempo eu o observei por cada segundo. A frequência da respiração foi ficando menor, cada vez mais. O enfermeiro disse que esse estado chama “estado agonizante”. Não sabemos muito bem se ele ainda estava consciente, ou se já tinha ido. De qualquer forma, o enfermeiro aplicou mais uma dose de morfina, para ele não sentir dores. Esse é o estágio final antes de ter o óbito declarado.

Meu pai faleceu na manhã de segunda, dia 25/01. Ele estava olhando para a janela e viu o sol nascer. Essa simbologia foi muito forte para mim. O nascer do sol tem algo de “um novo mundo”, de uma renovação das experiências, das ideias, das lutas. Ali no horizonte onde ele surge, iluminando cada parte da paisagem, indicando o novo dia.

Os simbolismos ficaram muito presentes no decorrer destes dias. Até os astros se mostraram simbólicos para mim, mas não irei prolongar sobre isso. Presenciar uma morte foi algo muito forte, cada cena está marcada na minha memória. Fico satisfeito de ter conseguido despedir dele, e dizer o quanto eu o amava. Cada dia do processo foi doloroso para nós, e aqui neste texto não é possível descrever com precisão tudo o que passamos. Não acredito em vida antes ou depois da morte, acredito neste tempo em que vivemos e em como aproveitamos nossa estadia. Fora disso são outros quinhentos. Me apego a ideia de que meu pai descansou e teve paz de todo os meses de sofrimento e dores e internações. Talvez as dores maiores são as de quem fica, pois não teremos mais a sua presença física, apenas as memórias. E nesse momento é importante ressaltar a presença da família, de amigos e de pessoas próximas. Fazem muita diferença.

Presenciar um processo de morte, experiência marcante. Escrever sobre o processo me traz lágrimas e lembranças, boas e ruins. Faz parte da vida também.