Lapsos de Tempo #8

Diário

Hoje acordei nesse lugar estranho. Parece uma caixa com uma porta. Tem outros como eu em outras caixas parecidas. Não vejo ninguém com a cara boa dentro destas caixas. Tem algo ligado na minha veia, parece que estão me injetando um líquido transparente. Sinto uma dor abdominal tremenda, parece que falta algo. Não tenho muitas lembranças de como cheguei aqui, ou o que aconteceu nesse tempo. Tem algo enfiado no meu pescoço que me impede ver o que fizeram comigo, mas sinto uma faixa apertando o abdômen. Acho que estou sem forças…
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Vejo o casal que cuida de mim na sala de espera desse lugar horrível. Por mais que eu queira sair correndo em direção à eles, sinto muitas dores, acho que estou meio zonzo. Sinto uma fraqueza no corpo. Eles me pegam no colo e me colocam no carro. No trajeto, olho a paisagem, ainda muito desconfiado do que pode ter acontecido comigo.
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Já fazem alguns dias que sigo a mesma rotina. Me obrigam a tomar vários remédios com hora marcada. Eles são ruins, amargos, e eu sempre recuso esse tipo de tratamento. Essas pessoas que cuidam de mim me colocam deitado de barriga para cima no sofá. Eles limpam o corte fechado com pontos que tem na minha barriga. É um corte grande, e eu sinto um nervoso ao sentir esse produto de limpeza que passam. Nem vou dizer da coceira que dá quando borrifam esse trem marrom no ferimento. Eu sigo sem forças para várias tarefas, mas agora o colchão está direto no chão, eu não preciso me esforçar para dormir no quentinho.
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Hoje tiraram meus pontos. Foi um baita dum alívio. Não preciso mais usar aquele aparato no pescoço que me impede de fazer tudo. Talvez eu esteja melhor.
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Toda semana estou frequentando esse lugar, que parece o das caixas, mas que é diferente. As pessoas se parecem, mas a disposição de tudo é diferente. Entro numa sala, sempre a mesma sala quente, e fico sentado nessa mesa de alumínio. Minha pata é raspada com máquina, colocam uma agulha enfiada na minha veia ligada à esse líquido transparente. Injetam algo nessa mangueirinha e sinto algo queimando se misturando ao meu sangue. É bem desagradável. Toda semana é isso. Ao final, recebo umas agulhadas com medicamentos debaixo da pele nas costas, costuma ser bem dolorido. Eu ainda não sei o que aconteceu comigo.
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Já tem um tempo que não preciso mais ser medicado, já não me sinto mais fraco, minha vida voltou ao normal. Consigo correr, pular, latir e brincar sem sentir dores. Eu engordei alguns quilos, e nem tenho mais a aparência raquítica. Todo dia, antes de dormir, estão me dando um negócio com gosto de peixe, dizem que eu precisarei tomar pra sempre. É gostoso, faço questão de lembrá-los disso antes de deitar.
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Ultimamente tenho tido dificuldades para urinar. Eu faço bastante força, e costuma sair sangue. Eu não sei o que fazer para que as pessoas percebam essa dificuldade. Mas acho que da última vez eu urinei um pouco de sangue. Acho que eles viram o meu esforço para que saísse isso. Talvez eles me levem ao médico, sei lá.
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Que dor de cabeça horrível, odeio acordar assim. Nem acredito que estou dentro da caixa com portas de novo. Os rostos nas caixas são outros, não reconheço ninguém. Estou ligado nesse aparelho que enfia líquido na minha veia de novo. Esse troço desengonçado no meu pescoço voltou. Ainda sinto muitas dores e não consigo me lembrar de como cheguei aqui. Estava fazendo alguns exames, enfiaram umas mangueiras em mim, de repente acordo aqui. Não aguento mais isso.
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Cheguei em casa bem desanimado. Dói bastante para urinar, parece que tem pontos novamente em mim. As pessoas que cuidam de mim limpam a saída do xixi constantemente, talvez os pontos estejam ali. Retomaram com a rotina destes remédios de sabor horrível, são muitos. Me faltam forças para reagir…
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É estranho mijar por esse orifício que abriram em mim. Eu não sei porque fizeram isso, mas imagino que deva ser pela dor que eu sentia quando tentava fazer xixi. Agora não dói, mas ainda é estranho, talvez seja difícil de acostumar.
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Fazem alguns meses que me sinto super bem, ativo como nunca. Não me levam na clínica há tempos, não sinto dores. Talvez sejam novos tempos, o sol até brilha mais forte que o normal.
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Ultimamente tenho me sentido desanimado, o sol está queimando mais que o normal, tenho buscado sombras. As pessoas que cuidam de mim jogam uma bolinha ou um ossinho de corda, mas não sei se tenho muitas energias para interagir agora. Eu olho para esses objetos e fico pensando se vale a pena o esforço. Não vale.
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Hoje aconteceu algo terrível. Fui tentar fazer cocô e senti algo que não devia escapar pelo ânus. Não era cocô, doía bastante e eu fiquei sem saber o que fazer. Corri para uma das pessoas que cuida de mim e fiz um estardalhaço. Ele me pegou no colo e fomos para a clínica. Lá, me deram uma injeção que eliminou a dor, e enfiaram de volta pra dentro o que não devia ter saído. Fizeram alguns pontos para evitar que saísse de novo. Foi horrível.
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Os últimos dias foram complicados. O que não deveria sair pelo ânus saiu mais 3 vezes. Em duas delas, foi feito o mesmo procedimento de injeção e retorno pra dentro com o conteúdo. Na última vez, me sedaram. Acordei na caixa com porta, bem zonzo, tonto, desorientado. Sentia a dor abdominal, só que desta vez era diferente. Eu não aguento mais esse lugar.
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As pessoas que cuidam de mim me buscaram, desta vez eu nem fiz festa, não tinha energias para isso, além de estar de saco cheio desse lugar. Em casa voltou a rotina dos remédios e da limpeza nos pontos. Eu já nem me importava mais com nada. Me sentia muito fraco para qualquer coisa.
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Fazer cocô é uma atividade muito custosa, me traz muitas dores, e não sai nada. Toda vez que faço força, algo que não deveria sair pelo ânus escapa. Eu não aguento mais isso.
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Me abriram de novo, não quero mais acordar nesse lugar… O que está acontecendo? Desta vez me deixaram aqui por uns 10 dias, morando nesta caixa com porta. Eu observava os rostos, muito desanimados, desolados, tristes… Não desejo isso para ninguém.
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Estou em casa, as pessoas que cuidam de mim fazem carinho na minha cabeça. Não sei porque, mas minhas patas traseiras estão dormentes, não consigo levantar. Apenas tenho movimento nas dianteiras e no pescoço. Fico encarando as pessoas para ver se elas estão percebendo isso.
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Minhas patas dianteiras param de funcionar, estão dormentes, não as sinto. Apenas meu pescoço se mexe. Uma das pessoas me carrega para o quarto e me coloca em um pano macio. Ela fica fazendo cafuné na minha cabeça a noite toda.
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É de manhã, eu apenas consigo mexer os olhos. É uma sensação horrível, parece que não há nada no corpo que não sejam os olhos. Eu solto um grito de dor involuntário, e começa a faltar ar. Um das pessoas se senta ao meu lado chorando, fazendo carinho em mim e dizendo algo que não entendo. Apenas enxergo parte de toda a situação. Eu fico cada vez mais ofegante, respirando muito fundo, escutando um choro ao lado.
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O último ar que circulou dentro de mim levou consigo toda minha essência. Já não pertenço mais à este lugar.
Obrigado por tudo,
e nos veremos em breve!

A passagem de Chiquito

Dia 25 de Julho de 2012 nasce Francisco. Pequeno, leonino, travesso e amável. Rapidamente recebeu vários apelidos que ele correspondia com bastante interesse. Do nome Francisco vieram Chico, Chiquito, Tico, Picles, Picolino, Picochito, Pico, Francis, Francis Bacon, Chiquito Bacana, entre outros… Todos sempre funcionaram muito bem para que ele soubesse que estávamos nos comunicando com ele. Francisco fez parte de uma ninhada de vários irmãos, cujos pais prováveis são Golden e Poodle. Apenas ele não se parecia com Poodle e acabou esquecido no lar adotivo vendo seus irmãos encontrarem suas famílias rapidamente. Francisco não se parecia com algo que chamasse atenção, pelos curtos de cor bege claro, barriga escura cheia de vermes. Uma coisinha apertável e carente, que ficava agitado na presença de outros seres. Sim, ele gostava muito de ter companhias. Quando cresceu ficou parecido com um Golden Retriever, porém com o tamanho de um Poodle. Fofo como Golden, agitado como Poodle (só que sem ser chato).
Foi em 2014 que ele veio viver com a gente no apartamento de área privativa em que morávamos. Chiquito não gostava de subir na cama para dormir, mas sempre tirou seus cochilos ao lado da cama, no chão. Diferentemente do seu comportamento com sofás, poltronas e redes, já que ele sempre subia nestes móveis para apoiar a pata no colo de alguém pedindo carinho. Ele também possuía um hábito curioso de cheirar olhos, era assim que ele conhecia realmente a fundo a pessoa com quem ele estava se relacionando. Ironicamente, ele não gostava que cheirássemos seus olhos.
Chico gostava de fazer suas necessidades sempre em áreas externas, sendo bem metódico com seus lugares favoritos. Exceto quando, por ironia do destino, ele ficava muito tempo sozinho. Nessas ocasiões ele gostava de urinar na quina da parede da sala durante a madrugada, como forma de protesto. Na solidão ele também chegou a destruir dois pares de sapatos.
Nesta época, para que a urina de madrugada parasse, Chico saía às ruas sem coleiras sempre antes de dormir. Ele corria pelas ruas tranquilas do bairro, explorando o espaço citadino de um bairro puramente residencial, sem muita movimentação no turno noturno. Algumas vezes ele, esperto que era ao explorar as ruas, entrava em alguma casa desavisada com portão aberto para conferir se a ração oferecida naquela residência era boa o suficiente para seus amigos do bairro.
Esse hábito da caminhada antes do sono é algo que o acompanhou até 2021, quando tivemos que alterar seus hábitos. Antes disso, Chico gostava muito de ir em praças interagir com outros animais, e sempre foi muito carinhoso com visitas na casa dele, exceto se alguém apresentava medo ou receio em relação à ele, então ele latia para repelir a pessoa de vez. Ele se sentia o maioral com esse tipo de comportamento.
Francis não gostava muito de câmeras, e sempre virava a cara para não aparecer nas lentes. Porém, suas fotografias, apesar disso, sempre ficaram muito boas. Ele saía com expressões faciais muito marcantes, penetradas, constrangidas com a situação.
Chiquito adorava a rua, a observava com quem observa estrelas no céu com uma luneta profissional. Sabia de tudo que acontecia, e fofocava com outros cães que passavam pelo local. Porém ele não era muito fã de gatos e nem de ratos. Foi ele que descobriu uma infestação de ratos que abriu um buraco na parede embaixo do armário da cozinha e ficou latindo para que soubéssemos de onde estavam vindo. Ele também nos avisou quando dois gatos entraram em casa e ficaram presos na área de serviço ou na casinha do gás, pedindo que avisássemos seus donos sobre o que ocorrera.
Francisco gostava muito de carinho e de companhia. Gostava que fizéssemos cafuné em sua cabeça, em seu pescoço, em seu peito, na sua barriga e no seu cóccix, onde ele tinha efeitos secundários que o faziam mexer as pernas involuntariamente. Às vezes ele mesmo empurrava nossas mãos para que soubéssemos onde ele queria carinho. Quando estávamos nos alongando ele sempre aparecia embaixo de nossas mãos aproveitando o momento para receber mais carinho. Ele também achava que qualquer pedaço de pano no chão era um convite para que ele deitasse em cima, fixando espaço, inclusive, sobre pés de chinelos e panos de chão. Chico também gostava de deitar em lugares estranhos nos móveis ou de enfiar a cabeça em algum lugar aleatório como se fosse um tamanduá. Ele adorava acompanhar o cochilo de quem quer que fosse, se deitando ao lado, nas pernas ou nos braços da pessoa para aproveitar aquele momento de descanso.
Chico foi um cãozinho muito ativo, feliz, brincalhão e afetuoso. Brincava de bola, mas ficava de saco cheio muito rápido. Gostava mesmo é de brincar com um brinquedo de osso feito de pano, jogando para cima e para baixo, buscando onde quer que fosse. Da mesma forma, adorava brincar com potes e garrafas de plástico vazias, mordendo e fazendo barulho por onde quer que fosse.
Em fevereiro de 2021, caminhando pela rua de madrugada, Chico achou um osso e mastigou, dando uma engasgada que nos deixou preocupados. No dia seguinte o levamos à veterinária e ela nos disse que aparentemente ele estava bem, e indicou um ultrassom abdominal para conferir se o osso ainda constava no sistema digestivo dele. Não foram encontrados vestígios de osso, mas foi descoberto um tumor em seu baço já em estado crítico. Chico fez a cirurgia de remoção do baço, teve hemorragia e precisou de transfusão sanguínea. Se recuperou bem, fez quimioterapia e com a imunidade baixa acabou tendo que lidar com outras questões: problemas renais, bactéria no tártaro do dente, dermatites, cálculos na uretra, infecções nos ouvidos… Essas questões o impediam de sair à rua para evitar pegar outras doenças.
Chiquito viveu o melhor que pôde nesse tempo, mesmo com tantas debilidades. Foi em sítios, em fazendas, viajou, interagiu com muitas pessoas, foi em parques, praças, diferentes casas de familiares e de amigos. Tomou bastante sol enquanto vigiava a rua aguardando seus amigos passarem para que as fofocas pudessem ser espalhadas.
Pouco antes do carnaval de 2024, Chiquito teve de lidar com uma prolapsia retal, que foi bem insistente em sua ocorrência, fazendo com que ele tivesse que passar por seis procedimentos cirúrgicos e duas cirurgias mais complexas até descobrir um novo tumor que se desenvolveu rapidamente e desordenadamente no seu intestino, bem próximo do ânus. Foram várias internações que ajudavam nos sintomas, mas que não eram eficazes contra a causa do problema. Nenhum tratamento mais seria possível.
Foi na manhã de 30 de Março de 2024 que Chiquito, já sem conseguir movimentar as patas traseiras e nem as dianteiras, deu seus últimos suspiros, recebendo muito carinho e amor, deitado no chão ao lado da cama, lugar que ele tanto gostava de deitar. Ele sabia que estava de partida, e só aguardava a autorização de embarque de seus tutores que tanto o amam, e que fizeram de tudo para que ele tivesse a melhor vida possível.
Chiquito deixou muitas memórias agradáveis, um verdadeiro Cãopanheiro, momentos inesquecíveis, uma massa de pessoas que o amavam, indo viver no paraíso dos animais, onde se encontra tantos outros seres que fizeram da vida algo que valesse a pena de ser vivida. Lugar onde apenas bons humanos conseguem ir, pois estar rodeado de bichanos incríveis é o melhor pós-morte que alguém poderá ter.
Vá em paz Chico, você fará muita falta em nossas vidas.