Lapsos de Tempo #8

Diário

Hoje acordei nesse lugar estranho. Parece uma caixa com uma porta. Tem outros como eu em outras caixas parecidas. Não vejo ninguém com a cara boa dentro destas caixas. Tem algo ligado na minha veia, parece que estão me injetando um líquido transparente. Sinto uma dor abdominal tremenda, parece que falta algo. Não tenho muitas lembranças de como cheguei aqui, ou o que aconteceu nesse tempo. Tem algo enfiado no meu pescoço que me impede ver o que fizeram comigo, mas sinto uma faixa apertando o abdômen. Acho que estou sem forças…
***
Vejo o casal que cuida de mim na sala de espera desse lugar horrível. Por mais que eu queira sair correndo em direção à eles, sinto muitas dores, acho que estou meio zonzo. Sinto uma fraqueza no corpo. Eles me pegam no colo e me colocam no carro. No trajeto, olho a paisagem, ainda muito desconfiado do que pode ter acontecido comigo.
***
Já fazem alguns dias que sigo a mesma rotina. Me obrigam a tomar vários remédios com hora marcada. Eles são ruins, amargos, e eu sempre recuso esse tipo de tratamento. Essas pessoas que cuidam de mim me colocam deitado de barriga para cima no sofá. Eles limpam o corte fechado com pontos que tem na minha barriga. É um corte grande, e eu sinto um nervoso ao sentir esse produto de limpeza que passam. Nem vou dizer da coceira que dá quando borrifam esse trem marrom no ferimento. Eu sigo sem forças para várias tarefas, mas agora o colchão está direto no chão, eu não preciso me esforçar para dormir no quentinho.
***
Hoje tiraram meus pontos. Foi um baita dum alívio. Não preciso mais usar aquele aparato no pescoço que me impede de fazer tudo. Talvez eu esteja melhor.
***
Toda semana estou frequentando esse lugar, que parece o das caixas, mas que é diferente. As pessoas se parecem, mas a disposição de tudo é diferente. Entro numa sala, sempre a mesma sala quente, e fico sentado nessa mesa de alumínio. Minha pata é raspada com máquina, colocam uma agulha enfiada na minha veia ligada à esse líquido transparente. Injetam algo nessa mangueirinha e sinto algo queimando se misturando ao meu sangue. É bem desagradável. Toda semana é isso. Ao final, recebo umas agulhadas com medicamentos debaixo da pele nas costas, costuma ser bem dolorido. Eu ainda não sei o que aconteceu comigo.
***
Já tem um tempo que não preciso mais ser medicado, já não me sinto mais fraco, minha vida voltou ao normal. Consigo correr, pular, latir e brincar sem sentir dores. Eu engordei alguns quilos, e nem tenho mais a aparência raquítica. Todo dia, antes de dormir, estão me dando um negócio com gosto de peixe, dizem que eu precisarei tomar pra sempre. É gostoso, faço questão de lembrá-los disso antes de deitar.
***
Ultimamente tenho tido dificuldades para urinar. Eu faço bastante força, e costuma sair sangue. Eu não sei o que fazer para que as pessoas percebam essa dificuldade. Mas acho que da última vez eu urinei um pouco de sangue. Acho que eles viram o meu esforço para que saísse isso. Talvez eles me levem ao médico, sei lá.
***
Que dor de cabeça horrível, odeio acordar assim. Nem acredito que estou dentro da caixa com portas de novo. Os rostos nas caixas são outros, não reconheço ninguém. Estou ligado nesse aparelho que enfia líquido na minha veia de novo. Esse troço desengonçado no meu pescoço voltou. Ainda sinto muitas dores e não consigo me lembrar de como cheguei aqui. Estava fazendo alguns exames, enfiaram umas mangueiras em mim, de repente acordo aqui. Não aguento mais isso.
***
Cheguei em casa bem desanimado. Dói bastante para urinar, parece que tem pontos novamente em mim. As pessoas que cuidam de mim limpam a saída do xixi constantemente, talvez os pontos estejam ali. Retomaram com a rotina destes remédios de sabor horrível, são muitos. Me faltam forças para reagir…
***
É estranho mijar por esse orifício que abriram em mim. Eu não sei porque fizeram isso, mas imagino que deva ser pela dor que eu sentia quando tentava fazer xixi. Agora não dói, mas ainda é estranho, talvez seja difícil de acostumar.
***
Fazem alguns meses que me sinto super bem, ativo como nunca. Não me levam na clínica há tempos, não sinto dores. Talvez sejam novos tempos, o sol até brilha mais forte que o normal.
***
Ultimamente tenho me sentido desanimado, o sol está queimando mais que o normal, tenho buscado sombras. As pessoas que cuidam de mim jogam uma bolinha ou um ossinho de corda, mas não sei se tenho muitas energias para interagir agora. Eu olho para esses objetos e fico pensando se vale a pena o esforço. Não vale.
***
Hoje aconteceu algo terrível. Fui tentar fazer cocô e senti algo que não devia escapar pelo ânus. Não era cocô, doía bastante e eu fiquei sem saber o que fazer. Corri para uma das pessoas que cuida de mim e fiz um estardalhaço. Ele me pegou no colo e fomos para a clínica. Lá, me deram uma injeção que eliminou a dor, e enfiaram de volta pra dentro o que não devia ter saído. Fizeram alguns pontos para evitar que saísse de novo. Foi horrível.
***
Os últimos dias foram complicados. O que não deveria sair pelo ânus saiu mais 3 vezes. Em duas delas, foi feito o mesmo procedimento de injeção e retorno pra dentro com o conteúdo. Na última vez, me sedaram. Acordei na caixa com porta, bem zonzo, tonto, desorientado. Sentia a dor abdominal, só que desta vez era diferente. Eu não aguento mais esse lugar.
***
As pessoas que cuidam de mim me buscaram, desta vez eu nem fiz festa, não tinha energias para isso, além de estar de saco cheio desse lugar. Em casa voltou a rotina dos remédios e da limpeza nos pontos. Eu já nem me importava mais com nada. Me sentia muito fraco para qualquer coisa.
***
Fazer cocô é uma atividade muito custosa, me traz muitas dores, e não sai nada. Toda vez que faço força, algo que não deveria sair pelo ânus escapa. Eu não aguento mais isso.
***
Me abriram de novo, não quero mais acordar nesse lugar… O que está acontecendo? Desta vez me deixaram aqui por uns 10 dias, morando nesta caixa com porta. Eu observava os rostos, muito desanimados, desolados, tristes… Não desejo isso para ninguém.
***
Estou em casa, as pessoas que cuidam de mim fazem carinho na minha cabeça. Não sei porque, mas minhas patas traseiras estão dormentes, não consigo levantar. Apenas tenho movimento nas dianteiras e no pescoço. Fico encarando as pessoas para ver se elas estão percebendo isso.
***
Minhas patas dianteiras param de funcionar, estão dormentes, não as sinto. Apenas meu pescoço se mexe. Uma das pessoas me carrega para o quarto e me coloca em um pano macio. Ela fica fazendo cafuné na minha cabeça a noite toda.
***
É de manhã, eu apenas consigo mexer os olhos. É uma sensação horrível, parece que não há nada no corpo que não sejam os olhos. Eu solto um grito de dor involuntário, e começa a faltar ar. Um das pessoas se senta ao meu lado chorando, fazendo carinho em mim e dizendo algo que não entendo. Apenas enxergo parte de toda a situação. Eu fico cada vez mais ofegante, respirando muito fundo, escutando um choro ao lado.
***
O último ar que circulou dentro de mim levou consigo toda minha essência. Já não pertenço mais à este lugar.
Obrigado por tudo,
e nos veremos em breve!

Lapsos de Tempo #7

Em casa

Escuto um barulho que me acorda. Abro os olhos, ainda estou deitado nesse objeto macio. Gosto de dormir nele porque meu corpo se encaixa muito bem e minha cabeça fica apoiada nessa parte lateral. Daqui eu consigo ver esses dois gigantes que roncam muito alto. Um deles se levantou para tomar líquido transparente e acabou trombando em algum objeto de madeira no caminho. Foi esse barulho que deve ter me acordado. Não tá na hora de levantar ainda, aquele aparelho eletrônico ainda não tocou a música horrível. Eu adquiri esse péssimo hábito de não conseguir mais dormir depois que a música horrível toca. Para me vingar, eu subo no quadrado macio que os gigantes dormem e faço questão de raspar minha língua na cara deles. Se eu não posso dormir, eles também não poderão. Raspar a língua na cara também vai fazer com que eles desliguem a música horrível, essa aberração tonal que toca todo dia de manhã…
Sigo deitado, apenas observando a horário que a música horrível vai tocar. A partir daí eu posso seguir com minha rotina. Os gigantes são muito frágeis no bueiro gigante, e eu faço questão de acompanhá-los quando eles estão lá. Eles vão todos os dias no mesmo horário. Não sei como aguentam essa rotina. Não sei como eu aguento essa rotina. Eles também possuem um aparato fino para usar após se levantarem do bueiro gigante, eu ainda não sei para que serve. Gosto apenas de desenrolar ele todo pra tentar entender os porquês da existência disso. Sigo sem saber.
Na cozinha o líquido transparente é colocado num objeto de metal, depois começa a pegar fogo por fora enquanto borbulha por dentro. Enquanto isso vou para a sala aproveitar o sol da manhã. Me disseram que é a melhor vitamina D que existe. Gosto de sentir os raios solares adentrando meus pelos enquanto sinto o cheiro agradável do líquido transparente se tornando líquido preto. Nunca me deram isso para beber, só me dão líquido transparente. Talvez seja uma coisa de gigantes.
Começou a ficar quente demais, me levanto e vou para a sombra. Faço isso enquanto observo os gigantes bebendo líquido preto e comendo algo que eles não me deixam comer. Eles proferem sons em concordância, até parece que se entendem. Um emite um som enquanto o outro não emite som. Às vezes eles emitem esses sons se direcionando a mim, como se eu soubesse do que eles estão proferindo sons.
Ambos saem desse local, fico aqui pensando no que devo fazer em todo esse tempo que ficarei sozinho. Tem vários objetos macios onde posso deitar, mas não sei se quero dormir agora. Tem um buraco no local ao lado, parece que tem algo acontecendo ali. Acho que será um bom passatempo observar dentro do buraco. Fico de saco cheio, deito um pouco em cima de um objeto de madeira, só que ao lado da vegetação. Vou na cozinha ver o que está de fácil acesso e que mate minha fome. Não há nada. Até tento saltar na borda do objeto de madeira, mas não há migalhas desta vez.
Olho pra sala e algo brilha, chama minha atenção. Vou para lá correndo e me deparo com um objeto de plástico no chão. Ele possui algum líquido dentro, mas tem uma coisa de plástico que parece impedir que o líquido saia. Me coloco a missão de retirar esse plástico que impede o líquido de sair. Isso ocupa boa parte do meu tempo sozinho. Meus dentes são fortes, mas acho que tiveram dificuldades com esse objeto. Quando eu consigo remover o plástico, o líquido escorre no chão. Eu não sei o que fazer, como que se limpa uma sujeira? Devo raspar a língua? Os gigantes devem voltar e eu não sei como esconder isso. Deito em cima como se a sujeira fosse um objeto macio. Mas logo me levanto por me sentir incomodado com a sensação do líquido na pele. Tento raspar a língua, mas o gosto não é legal e eu acabo desistindo.
A tensão me deixa imóvel e eu não sei o que fazer. Olho para a sujeira que o líquido fez e a fico encarando, maquinando possibilidades. Adormeço sem ver.
Escuto um barulho na rua e desperto rapidamente. É o barulho do objeto de metal que protege o buraco que entra o equipamento mecânico. Os gigantes estão chegando. Me lembro da sujeira e começo a correr e latir, sem saber o que fazer. Não encontro a sujeira, talvez alguém tenha limpado.
Tô aliviado. Corro para o buraco por onde os gigantes entram no local. Estou feliz, eles não perceberão que fiz sujeira e eu não fico mais sozinho.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Double-X PB 200

Na rua

Escuto alguém me chamar lá fora. Vou correndo para entender melhor o que está acontecendo. Me aproximo da grade e vejo a Pequetita passando pelo lado de lá da rua. Ela anda meio pomposa, empinando o bumbum pro pequeno rabo ficar mais aparente. Mas esse hábito faz com que ela caminhe dando alguns pequenos saltos. Seus pelos são de cor clara, contrasta com a calçada escura. Pequetita me avista e, sem cumprimentar, grita em minha direção que a árvore da rua foi contaminada. No meu tempo de reação eu só consigo perguntar de volta quem foi o autor da contaminação. Ela grita que não sabe, mas foi alguém novo. O perfume que estava na árvore era diferente de qualquer outro lugar da região. Eu agradeço e aproveito o dia claro para me deter no sol por alguns minutos. Logo após a Pequetita, o Caquito passou pela rua. Ele me viu, mas fingiu que eu não estava ali. Prefiro contar sobre a contaminação para quem quer saber, Caquito me esnobou, não gostei. Sigo olhando para a rua, Suzi passa e eu aviso que a árvore está contaminada. Ela me responde, diz que a Pequetita já avisou a ela, mas que ela precisava ir na árvore conferir a nova fragrância. Eu digo que só irei de noite, mas que gostaria de saber as atualizações no decorrer da tarde. Suzi segue caminho e se detém na árvore da rua. Eu fico observando. Ela sente o cheiro e olha para mim, confirmando que é alguém diferente. Isso me deixa mais curioso. Tinoco vem descendo a rua. Ele é mais parrudo, curte subir numas árvores. Já fiquei sabendo que ele até já subiu muro. Da rua, eu acho que ele é o mais ágil. Mas eu o vejo pouco, ele vive um pouco mais distante, mas sempre cumprimenta quando passa por aqui. Uma vez ele disse que me traria um pedaço de osso e deixaria aqui na minha porta, eu agradeci, mas recusei a oferta. Ossos não me fazem bem. Tinoco parou na árvore, trocou algumas palavras incompreensíveis com Suzi, e me olhou. Será que a Suzi falou de mim? Tinoco desceu mais e parou aqui em frente, perguntou o que eu já sabia do caso da árvore. Eu disse que havia uma nova fragrância que contaminou a árvore e que era de alguém desconhecido. Ele me confirmou a informação, disse que eu deveria ser mais enxerido pra coletar informações. Eu disse que tentaria, mas nem sempre dá tempo. Tinoco fingiu que estava caçando lugar para defecar enquanto conversávamos. Depois de um tempo despistando, ele seguiu viagem. Ver ele despistando me deu vontade de mijar. Aqui neste espaço tem plantas, e eu posso liberar o xixi aqui sem perder as atualizações sobre a contaminação da árvore da rua. Fiquei algum tempo olhando para a árvore da rua, o que poderia ter contaminado ela? Preto e Branco estão subindo a rua. Eu acho que eles são irmãos, mas não tenho certeza. Eles são parecidos, exceto pela cor curiosa de seus pelos, um é claro e o outro é escuro. Eu nunca sei quem é quem. Quando os vejo subindo eu só os chamo de Zé. É muito mais fácil e ambos atendem. Eu aviso que a árvore da rua foi contaminada por alguém desconhecido. Eles apenas acenam, não dizem nada de volta. Acho que eles têm medo de gritar muito alto e serem punidos por isso. Pelo menos fiz minha parte em avisar. Eu apoio a cabeça na grade e me concentro na árvore da rua. Quero sabe em primeira mão a origem da fragrância que contaminou a árvore da rua. Mas depois de tanto tempo, não avisto nada de anormal. Pingolino mora em frente à árvore, em breve tá na hora dele sair pra dar uma volta. Talvez ele tenha mais informações sobre o caso. Roger passa antes, avisando que talvez não seja bom verificar o odor, pois se contaminou a árvore, sabe-se lá o que pode fazer com a gente. Margarete diz que é uma fragrância meio doce, estranha, que deixa a gente enjoado. E se todos adoecermos por causa dessa contaminação? Avisto o portão abrindo e Pingolino está dando as caras, finalmente. Ele sai, analisa a árvore, e começa a buscar possíveis ouvintes pro seu caso a solucionar. Ele me avista e vem na minha direção. Ele me diz que viu algo preto sair de um negócio vermelho, cair na árvore da rua e começar a borbulhar. Foi isso que contaminou a árvore. Não foi um desconhecido, porque não foi um de nós. Eu tento ficar mais tranquilo em saber que não tem desconhecidos contaminando a árvore da rua, mas me preocupa esse líquido preto borbulhante e adocicado que contamina tudo…

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Fomapan BW 100

Gostou da publicação? Anima pagar um cafezinho?

Faça um PIX de qualquer valor para a chave pix@cycoidea.com

Ou considere fazer uma doação voluntária via PayPal:

R$1,00
R$2,00
R$5,00

Ou insira uma quantia personalizada:

R$

La Idea Cyco Punx agradece sua contribuição. Me dá ânimo para seguir em movimentos, sonhando…

Faça uma doação