Ruim demais para ser mentira #4

Ondas

Quando eu era pequeno eu tinha muita curiosidade em saber como eram feitas as ondas do mar. Me dava muita curiosidade aquela água que se enrolava e subia, quebrava, chegava na areia e voltava. As ondas sempre me impressionaram.
Íamos muito para a Ilha de Guriri, norte do Espírito Santo, durante minha infância nos anos 90. Eu conhecia cada pedaço daquela ilha, caminhava e pedalava muito por lá, e foi exatamente nas praias desse lugar que meu pai me ensinou a pegar jacarezinho acompanhando as ondas. Ele também me ensinou a não tomar caldo toda vez que a onda crescia na minha frente. A ideia era bastante simples: quando a onda subia, você pulava de ponta no meio dela, cortando a água e saindo do outro lado.
Eu gostava muito de ficar no mar. Eu me sentia super corajoso e costumava nadar sozinho quando não conseguia companhia para entrar na água. Inclusive, uma cena comum da minha infância consistia em eu sair da água sem entender o lugar onde eu estava, e eu sempre parava algum adulto pra me dar a mão e me ajudar a achar meus pais na faixa de areia. Sim, a maré sempre me levava, e aparentemente ninguém se dava conta disso (ou não se importavam).
Minha irmã, alguns meses mais velha que eu, costumava me explicar o funcionamento de várias coisas. Para mim ela era como uma “Sábia da Montanha”, sempre aparecia com as respostas que eu precisava. Especificamente nessa época em Guriri, ao ser perguntada sobre a formação das ondas do mar, ela me disse que no mar haviam mulheres deitadas que ficavam se enrolando na água, e assim surgiam as ondas.
Esse foi um imaginário que ficou na minha mente por muito tempo. Sempre que a onda subia, eu pulava de ponta e abria os olhos dentro da água salgada pra tentar encontrar essas mulheres. Eu fazia isso com uma certa frequência, e na minha memória atual consta apenas uma visão turva e escura da vida aquática. Além da lembrança de ter sempre os olhos muito irritados ao voltar da praia.
Nunca encontrei essas mulheres, mas eu seguia imaginando qual seria o tamanho delas naquelas ondas gigantes que os surfistas ousavam surfar no Hawaii. Eu também ficava imaginando quantas mulheres estavam dentro da água para esse tanto de onda ser formada ao mesmo tempo em vários lugares distintos. Como elas respiravam? Na minha cabeça, as mulheres dentro da água seriam como aquelas atletas de nado sincronizado, que se movem coordenadamente dentro da água. Talvez a modalidade olímpica tenha nascido a partir dessa ideia. Mas acontece que meus esforços em encontrar essas mulheres sempre foram em vão. Nunca as encontrei.
***
Recentemente eu questionei minha irmã sobre essa história, se ela se lembrava disso. Para minha surpresa, ela se lembrava sim. De acordo com ela, essa ideia veio de alguma abertura do Fantástico ou da novela Mulheres de Areia, que mostrava umas mulheres se tonando água ou areia, algo do tipo. Ela via essas coisas na televisão e sempre me contava suas descobertas. Eu cresci achando muitas coisas de forma equivocada e fantasiosa. Talvez eu deva ser mais grato à ela por me fazer viver uma fantasia criativa/racional. Toda vez que escrevo uma memória, me traz uma felicidade por ter uma imaginação fértil. Hoje sabemos que Yemanjá e Poseidon se escondiam das minhas buscas, bem como as sereias encantadoras de marinheiros. Essas pessoas achavam que talvez eu fosse me perder no mar, de uma forma que eu não pudesse pedir ajuda pra achar minha família novamente. E, se assim fosse, eu poderia saber como as ondas são formadas.

Ruim demais para ser mentira #3

Piscina do hotel

Quando eu era pequeno costumávamos viajar para a cidade de Aparecida do Norte, em São Paulo. Eu digo “costumávamos” porque na minha cabeça parece que foram diversas vezes, mas a memória sempre me engana e pode ser que tenham sido 2 ou 3 vezes no máximo. Minha avó paterna faleceu de câncer quando eu tinha uns 3 anos de idade, e eu tenho quase certeza de que essa viagem era feita para prestar as devidas homenagens cristãs à ela. Mal sabiam que a minha relação com as religiões seria destruída alguns anos depois, mas talvez isso não venha ao caso agora.
Lembro de uma viagem bem específica, que saímos de carro eu, meu pai, minha irmã, minha tia e meu avô, e fomos pipocando nessas cidades turísticas do sul de Minas, onde não há muito o que fazer e para todos os lados têm pessoas idosas caminhando com seus suéteres de cores pálidas em busca de águas termais que prometem trazer a juventude de volta. Na frente do veículo sentava meu pai, que dirigia o carro do meu avô, e meu avô sentava no banco do carona. Atrás, eu, minha irmã e minha tia. Eu sempre tinha que ir na janela, pois viajar me dava enjoos e eu sempre vomitava pela janela do carro. Pensando agora, nem sei porque me levavam nestas viagens se eu só sabia ‘dar trabalho’.
Não lembro se ainda iríamos para Aparecida do Norte ou se já estávamos retornando pra Belo Horizonte quando nos hospedamos em um hotel chique no Sul de Minas. Pode ser que tenha sido São Lourenço, Lambari ou Caxambu, não me lembro. Mas a minha família inventou de andar de charrete pra dar uma volta pela cidade. A égua que nos guiava, de nome Malvina, fez questão de cagar o caminho todo, nos deixando bem desconfortáveis durante o passeio. Minha tia, que adorava uma zueirinha leve, logo passou o resto da viagem dizendo que eu namorava a Malvina. O cheiro era horrível e eu me lembro do terror que foi tudo isso apenas de escrever essas memórias. Terror não apenas do cheiro, mas de alguém achar que eu realmente estivesse namorando com uma égua de diarréia chamada Malvina.
Mas talvez esse não tenha sido o fato mais marcante desta viagem. O hotel, com todas suas chiquerezas possíveis, tinha uma piscina gigante, com aquele bares que você pode ficar sentado em bancos dentro da água enquanto toma seus bons drinks e se diverte de montão. A piscina tinha uma rampa em uma das extremidades, era super acessível a qualquer pessoa.
Enquanto eu nadava, uma forte dor de barriga me pegou de jeito, e eu saí correndo da piscina para ir ao banheiro. Saí perguntando onde havia um banheiro por ali e me disseram que no saguão havia. No saguão do hotel, o banheiro estava ocupado e seu ocupante tardava demais para sair. Eu tive a ideia de voltar na família e pedir a chave do quarto em que estávamos hospedados para utilizar o banheiro do quarto sem passar por constrangimentos em público. Eles disseram que estava na recepção, que eu poderia pegar lá. Fui correndo na recepção e me disseram que a chave estava com a funcionária da limpeza, pois ela estava organizando as acomodações. Subi as escadas correndo e cheguei ao quarto, a porta estava aberta. Entrei com uma felicidade imensa já pensando no banheiro limpinho que eu usaria, mas, para o meu azar, o banheiro estava sendo limpo naquele exato momento. Eu fiquei desorientado, sem saber o que fazer naquela situação. A moça disse que ainda iria demorar um pouco, e enquanto isso minha dor de barriga só aumentava.
Eu voltei desesperado pra família que estava na piscina, mas a dor de barriga era tanta que eu me contive na rampa de acesso. Não deu tempo de mais nada, sentei na beiradinha da rampa e fiz o que devia dentro da sunguinha. Ao terminar, ajustei a folga da sunga e liberei os sólidos na piscina enquanto já saía correndo. Não falei nada com ninguém, apenas voltei para o quarto para ver se o banheiro já se encontrava limpo para que eu pudesse tomar banho. Não disse nada, não citei nada, omiti tudo que aconteceu nesse dia. Fui uma criança feliz, e isso seguiu pela juventude toda e até pela fase adulta. Nunca me importei.
***
Há alguns anos atrás, estávamos em um evento de família e minha irmã, inocentemente, perguntou “vocês se lembram de quando a gente estava em um hotel e apareceu um cocô boiando na piscina? Foi o caos, todo mundo saiu correndo, tiveram que desinfetar tudo!” e eu somente consegui rir discretamente enquanto escutava isso. Sim, ela ficou chocada quando ficou sabendo que tinha sido eu o autor desta proeza, ainda mais depois de todos esses anos de segredo absoluto. Foi a única notícia que tive do meu feito infantil. Eu implantei o caos na piscina de um hotel chique do Sul de Minas. Malvina deve ter ficado orgulhosa de mim.


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Ruim demais pra ser mentira #2

Fantasma

Quando eu era pequeno costumávamos ir em família para um sítio que meu avô tinha aqui na região metropolitana. Eu achava super distante, e era um lugar que não havia muita estrutura. Dois clubes, uma lagoa, casas de fim de semana, bares e pequenos comércios. Boa parte da minha família paterna se encontrava aos finais de semana neste sítio, e era sempre muito legal aquela renca de tios/as e primos/as brincando, correndo pra lá e pra cá e praticando diversas atividades. Entre futebóis, piscinas, pedalinhos, buracos e churrascos, eu gostava mesmo é quando saímos em bando para caminhar pela região.
Algum tio animado sempre nos guiava e éramos várias crianças correndo e inventando brincadeiras pelo caminho de rochas gnaisses encrustadas em gramíneas por onde passavam os automóveis, carroças e bicicletas.
Um local na região que gostávamos de ir caminhando nesta época era um hotel que foi abandonado durante sua construção. No meio do nada as estruturas foram erguidas, vários andares, amplos espaços. Quando íamos, só haviam as colunas que formavam o esqueleto da edificação, bem como seus respectivos pisos e tetos. Tudo muito deteriorado, sujo e entulhado. Nós subíamos e descíamos, brincando de qualquer coisa que achássemos esperando-nos no chão. Meus tios falavam, na época, que as pessoas começaram a furtar as paredes do hotel abandonado para construírem suas casas, enquanto apontavam para moradias precárias que eram avistadas na paisagem. Eu imaginava pessoas, literalmente, levando paredes de tijolos montadas até o local onde seria suas residências.
Me lembro bem de um dia que estávamos eu, minha irmã, meus dois primos e meu tio (pai destes primos) caminhando em direção ao hotel. Subimos as ruas que levavam ao fundo de um dos clubes da região, adentramos em um caminho de mato, e lá vimos a majestosa estrutura abandonada.
Logo, eu e meus primos decidimos apostar corrida para ver quem chegava lá em cima primeiro. Largamos a uma velocidade absurda e deixamos para trás meu tio e minha irmã. Nós três acessamos o que poderia ser um saguão, passamos pelo vão que seria de um elevador, chegamos à rampa externa que fazia uma curva em espiral e findava no segundo andar. Subimos correndo, agitados. No segundo andar, avistamos a escadaria e a subimos correndo, demonstrando a incrível habilidade de subir pulando um degrau para ir mais rápido.
Nós três estávamos exaustos, cansados e suados quando chegamos ao último andar, um zuando a cara do outro pela velocidade, pelos tropicões e pelo jeito desengonçado de correr. Quando nos demos conta, percebemos que meu tio e minha irmã já se encontravam naquele andar. Nós nos entreolhamos e fomos perguntar como que eles haviam chegado antes da gente, já que fomos correndo e havíamos deixado eles para trás.
Meu tio virou para a gente e disse:
– Um fantasma trouxe a gente!
***
Na minha cabeça eu associei a figura do fantasma à imagem do Caronte, barqueiro de Hades, presente no filme Fúria de Titãs de 1981. Neste filme, Perseu é levado ao mundo dos mortos pelo Caronte, aquela figura esquelética silenciosa, que coleta suas moedas para transportar pessoas por essas águas neblinadas. Essa é a figura que eu pensava que meu tio e minha irmã haviam topado no trajeto. Inclusive, cheguei a cogitar um elevador fantasma imaginário que subiu pelo vão antes da gente.
A memória desse filme não é a toa. No sítio havia uma VHS desse filme e nós sempre assistíamos quando estávamos lá. Eu adorava. O imaginário e simbolismos das cenas do filme seguem gravados nesta caixa que chamamos de cérebro.
***
Esse mito ficou martelando na minha cabeça por anos. Eu nunca entendi como eles subiram o hotel abandonado antes de três crianças com muita energia pra gastar. Afinal, eu havia crescido e, finalmente, compreendido que mitologia grega tem esse nome por uma razão bem óbvia. No mais puro espírito investigativo, há pouco decidi questionar minha irmã e meu tio sobre esse fato. Me perguntava se eles lembrariam deste episódio, e, se lembram, como foi que aconteceu.
Ao serem questionados em uma reunião de família, minha irmã disse:
– Não me lembro, mas pode ser que tenha acontecido.
Meu tio disse:
– Foi o fantasma que subiu a gente.


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Ruim demais pra ser mentira #1

Censura

Quando eu era pequeno, gostava de escutar o disco dos Mamonas Assassinas. Na época era a melhor coisa que podíamos escutar. Me lembro bem de me fantasiar com peças de roupas aleatórias, adereços incomuns e fingir que eu cantava as músicas enquanto corria pela pequena sala, do pequeno apê em que morávamos. Ia da cozinha para os quartos, pulava de cabeça no sofá, rolava no chão. Eu sabia todas as letras de cor e salteadas, e esse momento sempre era o ápice de minha apresentação para um público insano, enlouquecido, fanático, porém imaginário.
Mas uma coisa que eu sempre quis saber é o que significavam as letras das músicas. Eu perguntava para adultos o que significava, e ninguém me explicava. Eu cantava em voz alta com uma alegria imensa, versos que continham analogias que eu não fazia ideia, e na minha cabeça tudo soava bem literal.
Eu tenho um tio que exerceu um papel importante na minha vida de descobertas. Ele me explicava o que significavam as palavras que eu dizia, seja em xingamentos, seja cantando. Uma vez eu disse que ia “arregaçar” alguém na rua. Ele me disse que “arregaçar” significava “dobrar”, e que eu não tinha condições de dobrar ninguém, afinal eu era apenas uma criança, por isso deveria parar de falar isso. Desde então, eu apenas arregaço as mangas, mas não arregaço pessoas, pois não tenho capacidade de dobrá-las.
Certa vez estávamos reunidos em família e começamos a cantar Mamonas Assassinas na sala. Aquela meninada toda berrando os versos “Roda roda vira, solta a roda e vem, me passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém…”. Curiosamente, meu tio começava a falar um som de “pi” horrível, estridente, enquanto cantávamos algumas partes da música: “Roda roda vira, solta a roda e vem, me passaram a mão na PIIII, e ainda não PIIII ninguém…”. De acordo com ele, essas palavras não poderiam ser ditas por crianças. Nós, como crianças responsáveis, passamos a cantar tudo com “pi” estridente, até que os adultos nos proibiram de cantar essa música, pois seus ouvidos já não aguentavam mais esse som horrível proferido pelas crianças.
Eu, como uma criança que investigava o fato, fui atrás do porque das palavras não poderem ser ditas por crianças. A palavra “COMI” eu até entendia a proibição, pois crianças ainda não conseguiam comer outras pessoas, faltavam alguns anos para que virássemos canibais. Logo, se não podemos comer outras pessoas, não podemos falar que comíamos. Mas eu até hoje nunca entendi o porque de não poder falar bunda.
Meu tio nunca explicou.


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