Fragmentos #3

Leia os capítulos anteriores na seção Fragmentos do Menu

Capítulo 3

A semana passou voando. Muitas reflexões de como conseguir ministrar uma oficina nestas condições e pensando em como minimizar os efeitos dos conflitos que poderiam ser gerados ali. Fiquei pensando que seria interessante se os jovens pudessem continuar o desenho que começaram na última oficina, dando um acabamento ao desenho que talvez pudesse conferir à atividade um sentimento de que o processo funciona e que é importante, e o acabamento é o último que fazemos. É o ponto final que damos à imagem depois de esboçar todas as partes necessárias. 
Pareceu-me uma ótima ideia, ao mesmo tempo em que uma insegurança voltou a tomar conta de mim. E se houvesse jovens que não estavam ali no dia da última oficina? E se os jovens que não se interessaram pela oficina seguissem apáticos sentados à mesa, completamente desinteressados? E se os jovens da última semana fossem escalados para a atividade externa e eu tivesse que lidar com jovens ainda desconhecidos por mim?
Tive que me sentar novamente e repensar todas essas possibilidades. Se fossem jovens novos eu ministraria a mesma atividade da semana passada. Se fossem os mesmos, eu falaria para eles darem acabamento ao desenho que iniciaram na última semana. Se fossem jovens mistos, eu mesclaria as atividades. Sim, agora estava mais seguro. Mas e aqueles jovens que fizeram desenhos que foram considerados apologias? Eles deveriam começar outros desenhos? E os que escreveram ao invés de desenhar, como proceder com estes? Por mais que eu planejasse cada passo dentro da Casa, na hora da oficina provavelmente eu teria que lidar com várias questões espontâneas. Precisaria lidar com várias angústias ao retornar pra casa também. Tudo que acontece nesse espaço-tempo chamado trabalho, reflete no meu descanso, nas minhas horas vagas. Estamos sempre trabalhando a cabeça, maquinando formas de fazer diferente, de melhorar, de desenvolver algo mais interessante.
Depois do almoço, pego minha mochila, subo na bicicleta rumo à Zona Norte. A sensação de distância durante o trajeto já começa a parecer mais curta. Aprendo novas rotas e ruas para cortar caminhos. Mas quando chega na lagoa não tem jeito. Talvez seja a parte mais longa e plana do trajeto, de onde não há escapatórias ou atalhos. Ali é um misto de brisa úmida com sol a pino. Ingresso no bairro por uma avenida larga, com ciclofaixa no canteiro central. Me mantenho na avenida por um tempo tão curto que não vale a pena o risco de atravessar a via para alcançar a ciclofaixa. Desço rápido pela direita, satisfeito com o espaço da pista ocupado por mim. Morros vêm e vão, e chega a descida íngreme antes do ribeirão. Desacelero e vou com cuidado já sabendo dos riscos iminentes. Mais uma subida e chego à Casa.
Novamente aperto a campainha, um funcionário pega meus documentos e me deixa na rua esperando por alguns minutos. Isso me irrita um pouco, não era minha primeira vez ali. Após um tempo eu entro, cumprimento todos que estão presentes na sala principal trabalhando e vou direto pra sala ao fundo. A Terapeuta vem conversar comigo. Ela diz que hoje tem menos jovens. Houveram algumas situações na Casa no decorrer da última semana, e que hoje a oficina seria para apenas cinco jovens. Houve evasão de vários deles, que saíram para suas atividades rotineiras, como trabalho e escola, e não retornaram. Os juízes responsáveis emitiram mandados para buscar esses jovens, mas ainda não sabem seus paradeiros. 
Eu separo material suficiente para cinco jovens, praticamente os mesmos utilizados na semana passada, mas adiciono materiais como caneta esferográfica, hidrográfica e marcador permanente. Agora iremos trabalhar com contraste, com acabamento também. Separo vários papéis virgens e também os desenhos inacabados da semana passada. Pode ser que tenham jovens ali que queiram finalizar seus desenhos. O Agente não me aguarda descer para fazer a contagem e conferência do material. Ele sobe até a sala onde eu estava com os materiais. Enquanto ele conta e anota, me faz várias perguntas pessoais, onde moro, de onde sou, porque venho de bicicleta? Eu respondo, não tenho nenhuma questão com isso. Ele afirmou que eu era louco de pedalar isso tudo. Ele me disse que morava mais perto que eu e fazia questão de vir de carro. Eu disse que não tinha carro, e nem fazia questão de ter. 
Desci portando o material. Um outro Agente abriu o portão que dá acesso ao pátio para mim. Os jovens estavam dispersos, e o local não estava preparado para receber a oficina. Dois jovens vieram me perguntar o que eu fazia ali. Eu não os reconheci, devem ser novatos ali na Casa. Eu disse que dava oficinas de artes visuais e solicitei que me auxiliassem na organização do espaço para receber a oficina. Pegamos a mesa grande, a colocamos em uma parte coberta, e dispusemos os bancos ao redor. Chamei o restante dos jovens para nos acompanhar à mesa na oficina, e os três se sentaram conosco. Eu também não os reconheci, tampouco eles me reconheceram. Eram cinco jovens que eu desconhecia, e que não haviam produzido nada comigo na semana passada. Tive que me apresentar de novo. 
Novamente um Agente seleciona o material que eu coloco na mesa, levando para sua sala o apontador e afirmando que os jovens precisam solicitar à ele para apontar os lápis. Eu dou as instruções de como seria a oficina, e começo a esboçar formas básicas com a finalidade de construir a imagem aos poucos, planejando os tamanhos e as posições de cada elemento. Os cinco jovens parecem mais interessados que os da semana passada, e observam atentos às explicações e aos esboços que faço no papel. Eles também arriscam, criando suas composições, encaixando cada elemento onde devem ficar. Um deles me diz que vai fazer uma rosa dentro de um rolo de dinheiro. Ele diz que já foi grafiteiro, e que usava essa técnica de esboço para pintar nos muros do beco onde ele ralava. Na hora eu fico em dúvidas se um maço de dinheiro configura algum tipo de apologia. Nunca se sabe qual interpretação a Instituição terá de determinada imagem. Eu ignoro essa dúvida e digo para ele seguir desenvolvendo seu projeto.
Os outros quatro jovens têm mais dificuldades em desenvolver seus desenhos. Fico imaginando se isso é falta de referências visuais, de prática de observação ou de má compreensão da atividade. Tento iniciar algumas conversas que podem auxiliar no desenvolvimento do desenho e faço perguntas do tipo “Imagina algum objeto que vocês gostem, como ele é?” ou “essa paisagem que você está desenhando é real ou imaginária?”. Minha intenção é tentar com que busquem diferentes referências, em diferentes espaços da memória. O jovem já iniciado no graffiti também tenta ajudar. Ele esboça alguns objetos que ele se lembra e diz para outros jovens copiarem e complementarem em seus desenhos.
Os jovens estão bem tranquilos, me dizem que a Casa está bem tranquila esses dias, e que eles ainda estão lá para cumprir os primeiros 45 dias de reclusão. Um deles diz que vai voltar a estudar para sair da vida do crime, que nada daquilo compensa. Ele fala sobre sua mãe enquanto tenta desenhar uma máquina de costura. A mãe dele sempre costurou e ele diz que ela fazia colchas com os retalhos que ele buscava atrás das confecções do Centro quando era criança. Hoje ele diz ser uma decepção na família.
O jovem iniciado no graffiti fala que não se arrepende de nada. Faria tudo de novo. Os outros três jovens apenas observam o diálogo. Não falam nada, mas escutam atentos às palavras proferidas naquela mesa. Eu não pergunto muito, prefiro não invadir o espaço deles, e eu até prefiro não saber sobre seus crimes. Eu entendo que isso não irá interferir na oficina em si, mas nós vivemos em sociedade e aprendemos a conviver julgando outras pessoas, mesmo que pelas costas. Isso iria acabar me trazendo alguns conflitos também, e eu preferia ter uma relação mais profissional ali.
A Pedagoga desceu neste momento para verificar o andamento da oficina. Ela chamou dois dos jovens para conversar em particular. Eles subiram com ela, restando apenas três jovens no pátio participando da oficina. Depois de esboçar os desenhos, iniciamos o processo de acabamento, reforçando as linhas e zonas de contraste com marcadores permanentes. Eu ensino a técnica de hachura, fazendo traços paralelos e/ou cruzados para demarcar zonas de sombra e de penumbra. Os jovens tentam reproduzir a hachura em seus desenhos. Alguns com sucesso, outros com mais dificuldades.
O tempo de oficina termina e eu peço para que assinem seus desenhos. Os três jovens se despedem de mim e retornam aos alojamentos. O Agente me ajuda a recolher o material que estava na mesa, e aproveita para fazer a conferência também. O Agente abre o portão e me autoriza subir. Recolho todos os materiais e fico pensando que nenhum dos jovens perguntou se podia ficar com seus desenhos. Talvez eles não tenham gostado da atividade. Subo as escadas e vou em direção à sala dos fundos para guardar os materiais e preencher o Livro de Relatório. A sala está ocupada pela Pedagoga com os outros dois jovens. 
Dirijo-me à sala principal e fico aguardando a liberação da sala. O Advogado me cumprimenta e pergunta como foi a oficina. Eu digo que foi boa, mais tranquila, mais fácil de trabalhar assim. Além do mais, os jovens presentes pareceram mais interessados nas atividades. Ele me disse que cada dia ali iria ser diferente, que eu poderia me preparar para isso. Em cada dia seriam diferentes jovens, diferentes dinâmicas, e que tudo que acontecia ali não poderia me afetar tanto, que deveria se restringir àquele espaço. Eu disse que isso seria complicado, pois o planejamento de uma oficina começa muito antes da minha presença na Casa. É impossível chegar para trabalhar sem um planejamento, sem um programa, sem ter nada definido. 
Essa fala do Advogado me incomodou um pouco. Fiquei pensando nessas hierarquias laborais, em como ele deveria receber um salário muito maior que o meu, e que o tempo de pensar o trabalho dele era restrito àquele espaço. Em compensação, eu recebia R$120 a cada ida à Casa, mas haviam várias horas de planejamento de oficinas não remuneradas, e que eram impossíveis de serem desconsideradas ou ignoradas enquanto eu não estivesse trabalhando na Casa.
Fiquei um tempo olhando para o Advogado, sem saber muito bem o que responder naquele momento. Fiquei sem saber se era um momento de desconforto ou constrangimento de minha parte, pois visivelmente fiquei incomodado com essa situação. 
A Pedagoga liberou a sala, saiu com os dois jovens que se despediram de mim ao me cruzar no corredor, e eu pude guardar os materiais. No relatório eu não registrei nada demais. Como não havia ninguém vigiando a oficina, eu simplesmente escrevi o nome dos jovens, e que eles participaram como desejado das atividades propostas. Essa talvez seja a parte mais chata deste trabalho. É como se fosse elogiar por mérito burocrático, sem compreender minimamente a diferença que aquela atividade possa exercer na vida daqueles jovens. Eu fiquei desejando, por um momento, que fossem representados qualquer coisa que poderia ser considerada apologia. Gostaria de enxergá-los pela ousadia representada através de imagens, criar diálogos a partir de seus desenhos. Talvez assim conseguiríamos compreendê-los.
Olhei para os papéis: Uma rosa dentro de um rolo de dinheiro, uma máquina de costura, nuvens flutuando com um sol triste, um pergaminho inacabado, um campo de futebol inacabado. Tudo para se manter dentro das regras da Instituição. 
Guardo os desenhos na pasta e vou embora. Durante o trajeto fico pensando na funcionalidade daquela Casa, para que ela serve? Jovens precisam ir ali cumprir penas alternativas. São todos menores de idade? Que diferença aquela Casa de passagem irá representar no futuro desses jovens? Porque uma oficina de artes visuais existe em um espaço onde tudo é enclausurado, limitado, excluído, reprimido? Tudo o que estudamos sobre a expressão, a comunicação e a criação de sentidos que a arte proporciona não funciona naquele lugar. A arte deveria se adaptar ao meio. E como fazer tudo isso dar certo, ser interessante? Como fazer com que essa passagem pela Casa seja proveitosa para esses jovens?
Foram tantas reflexões que eu nem percebi o tempo passar. Chego em casa sem ter sentido o caminho. Foi um daqueles dias que tudo pareceu tão automático que nem me senti cansado ao pedalar. Repouso no sofá pensando o que fazer em uma semana, em como mudar essa situação. Minha mirada está perdida em algum lugar da parede. Eu adormeço sem perceber.

Fragmentos #2

Leia os capítulos anteriores na seção Fragmentos do Menu

Capítulo 2

Foi em uma terça-feira que combinamos o primeiro dia de oficina. Eu já havia ido à sede para assinar o contrato com a empresa responsável pela gestão da Casa e já estava liberado para iniciar os trabalhos. Passaram-se duas semanas desde a oficina de teste. Era um misto de expectativa com ansiedade, mas não pelo trabalho que eu iria fazer, e sim pela forma como eu me apresentaria para aqueles jovens.
Nunca me entendi como uma autoridade, e ser colocado neste papel me incomoda bastante. A autoridade nunca funcionou comigo durante o meu desenvolvimento e, pelo contrário, o medo e a punição que existe nesta forma de relação me traziam muito mais ódio e rancor que vontade de fazer algo. O conceito de autoridade parece que se mistura com o de ser autoritário, e sempre se torna uma relação violenta de poder, nunca de respeito.
Com tudo isso em mente eu entrei em contato com a Terapeuta Ocupacional para marcarmos o primeiro dia de oficina. Agendamos para a terça-feira seguinte, pois daria tempo de planejar as atividades e me organizar com os horários. A oficina deveria iniciar às 14 horas, um horário não muito bom para mim. Considerando que a distância entre minha residência e o local de trabalho era grande, e eu iria de bike, precisaria pedalar bastante debaixo do sol, logo após o almoço. Mas não havia outro horário disponível e ficou decidido que às 14h das terças eu deveria ministrar as oficinas.
No dia combinado eu antecipei o almoço e saí de casa logo após comer. Minha ideia era chegar cedo e ver os materiais que estavam disponíveis para trabalhar. A Terapeuta havia dito que lá haviam vários materiais de outras oficinas e de outros oficineiros e que eu poderia utilizar em minhas oficinas. Eu precisava verificar o que teria disponível para saber com o que poderia trabalhar. Minha ideia inicial era começar com as formas básicas, quadrados, linhas, círculos, triângulos, trapézios, e moldar a imagem a partir destas referências.
É uma técnica interessante, pois simplificamos as imagens complexas em formas simples, e daí conseguimos compreender as proporções de cada objeto, ou de cada parte do objeto. É como se conseguíssemos sintetizar uma imagem ao máximo, quase um abstracionismo, para logo depois reconstruir a imagem.
Minha ideia era utilizar os próprios elementos clássicos das tatuagens para construir essa imagem, pois percebi que a tatuagem é um elemento em comum entre eles. Portanto eu imaginei que crânios, rosas e adagas seriam elementos presentes. Treinei um pouco a desconstrução destas imagens, pensando nas formas básicas que poderiam dar origem ao desenho final. Na minha cabeça e nos meus planos estava tudo certo.
O trajeto foi tranquilo, não estava muito quente, mas o almoço já estava pesando. Fico pensando que seria interessante comer menos no almoço, e levar uma refeição complementar para comer quando chegar à Casa. Acho que assim pesaria menos. Durante o trajeto fiquei observando o que estava em meu caminho, no asfalto. Desde pequeno eu caminho olhando para o chão, buscando moedas perdidas. Hoje eu pedalo tentando compreender as coisas que estão no meu caminho e que podem me oferecer risco. Pregos, arames, cacos de vidro, tachinhas, pedras, buracos, poças de óleo automotivo. Nunca achei dinheiro pedalando, mas já achei vários animais mortos. Já vi pombos, ratos, gatos e cachorros. Uma vez eu vi um gambá. Outro dia vi um morcego. 
É impressionante a quantidade de coisas que se fazem presentes nas vias, enquanto os automóveis passam dominantes ofuscando qualquer outra presença naquele espaço. Parece que nada mais importa para os motoristas. As vias não são locais onde poderiam haver reflexões interessantes. É só um caminho, e pronto.
Cheguei na Casa com um pouco de cansaço, mas sem maiores problemas no trajeto. Toquei a campainha e aguardei alguns minutos até ser atendido. Novamente quem abriu a porta foi um funcionário que solicitou meus documentos e me deixou esperando lá fora mais alguns minutos. Após ter a entrada permitida, a Terapeuta me recebeu e me apresentou ao restante da equipe técnica que se encontrava no local. Um Advogado, duas Pedagogas, uma Psicóloga, e mais duas funcionárias que eu não me lembro qual função exerciam. Após breves saudações, a Terapeuta me levou ao quarto de materiais, aquele com a mesa redonda, estantes e uma janela grande que dava para o pátio.
Ela me mostrou que haviam muitos materiais ali que poderiam ser utilizados e abriu várias gavetas de uma estante de madeira. Ali haviam vários papéis de diferentes qualidades, um rolo enorme de papel kraft mais espesso, vários potes de tinta guache escolar, um estojo com vários lápis de grafite, um estojo com vários lápis de cor, um estojo de canetinhas hidrográficas com pontas finas e grossas, uma sacola plástica com vários pincéis dentro, borrachas, apontadores, estiletes e 3 latas de spray para uso genérico.
A Terapeuta me disse que eu poderia fazer uma lista de materiais para as oficinas, que ela faria um orçamento em vários locais para solicitar a compra, mas que poderia demorar. Eu disse que dava para trabalhar com o que tinha ali, mas que seria bom ter mais materiais disponíveis no futuro.
Ali na sala eu separei o estojo de lápis e de borracha, uma resma com vários papéis e já me preparava para descer, quando um Agente me abordou dizendo que não era para descer com todo esse material, que era para ser apenas um lápis e uma folha para cada jovem, dois apontadores e duas borrachas. Nada mais que isso. Ele me disse que haviam 15 jovens no pátio e que o material deveria ser a conta. Ele me disse que era uma medida para não haver furtos de materiais e nem brigas. Eu retornei para a sala e separei exatamente o material que ele me disse, além de um lápis e um papel para mim. O Agente conta tudo e anota em um bloquinho de papel. Ele abre o portão e eu desço para o pátio onde alguns jovens me aguardavam na mesa grande, outros estavam em seus leitos e havia um que ainda almoçava. Apenas três dos jovens que estavam ali participaram da primeira oficina há duas semanas atrás.
Eu me apresentei novamente, disse quais atividades faríamos e comecei a distribuir os materiais. Um Agente recolheu os apontadores e me disse que os jovens deveriam ir até a sala dele para apontar seus lápis. Ele me disse que as lâminas dos apontadores poderiam ser armas em caso de conflitos.
Enquanto iniciava algumas explicações sobre as formas básicas e como poderíamos utilizar isso na nossa composição, um dos jovens se lembrou de mim, me chamou de Boy de novo. Ele olhou a minha tatuagem no braço, uma coruja cega pousada em cima de um crânio, e disse que seria legal aprender a desenhar caveiras, para ele virar tatuador. Percebi que muitos dos jovens não estavam compreendendo o exercício, fiquei pensando se a minha explicação foi confusa. Pedi para que prestassem atenção ao meu papel, pois iria demonstrar na prática como poderíamos trabalhar, e que o esboço do papel poderia se tornar um passo a passo para pintar murais nas ruas. Comecei fazendo círculos para demarcar algumas áreas e aos poucos meu desenho de linhas básicas foi se transformando em um crânio. Usei o comentário do jovem para exemplificar a minha ideia de exercício. Disse que a construção do desenho deveria ser uma prática constante, e que nós ficávamos cada vez melhor a cada desenho que fazíamos.
Neste momento a Terapeuta desceu para acompanhar a oficina. Dois jovens começaram a indagar a ela quando poderiam utilizar o telefone. Outros jovens diziam que não queriam fazer a oficina e que preferiam descansar no leito. Ela falou com eles que a participação na oficina é obrigatória, que eles não tinham escolhas.
Um dos jovens começou a escrever letras de rap e funk no papel, outro começou a desenhar uma pomba, três jovens apenas observavam tudo, e alguns se mostraram interessados nas minhas explicações. Estes mais atentos fizeram desenhos muito similares aos meus, como se eu estivesse ensinando um passo a passo de como fazer um crânio. Eu dizia que eles deveriam tentar fazer seus próprios desenhos também, de algo que eles gostem ou se interessem, que não era interessante apenas a cópia.
Um jovem falou que seu desenho estava horrível, amassou o papel e jogou na lixeira. Ele solicitou outro papel e eu disse que não havia, era apenas um papel para cada. Eu dei meu pedaço de papel para ele e disse para ele usar a borracha quando precisasse desmanchar.
Haviam apenas duas borrachas para aproximadamente 15 jovens, em uma mesa retangular extensa isso foi um grande problema. Eles passaram a querer desmanchar tudo o tempo todo. Começaram a jogar borrachas de um lado para o outro. Um dos jovens viu que a borracha estava disputada e segurou uma borracha em sua mão enquanto desenhava. Outros jovens começaram a discutir sobre uma borracha lançada que atingiu o braço de um deles. Os ânimos esquentaram e os jovens passaram a se ofender. Eu disse que haviam duas borrachas e que elas poderiam ficar sempre na mesa, mas que o erro não era uma coisa ruim e que poderia ser usado a nosso favor enquanto desenvolvíamos nossos desenhos. Nós aprendemos com o erro e o utilizamos como comparação para chegar mais próximo ao acerto, ou ao objetivo que almejamos.
Não sei se os jovens compreenderam muito bem essa ideia, mas seguiram com seus desenhos de uma maneira mais calma. Logo após a retomada da atividade, percebi que havia fila na sala do Agente para poder apontar o lápis. Um jovem estava apontando seu lápis e a ponta quebrava dentro do apontador. Com isso, os jovens que estavam aguardando começaram a reclamar que ele estava fazendo hora pra não participar da oficina. O Agente tinha liberado apenas um apontador, e isso gerou um conflito pela utilização da ferramenta. 
O jovem que desenhava pombos fez uma marca de dois tiros no peito da ave e disse que a pomba branca tem dois tiros no peito, fazendo alusão à música do Facção Central. O jovem que escrevia letras desistiu de escrever e passou a apenas conversar com os outros jovens. O que ainda almoçava se integrou ao grupo e reclamou que não havia material para ele. Como ele trabalhava no período da manhã, ele almoçou apenas mais tarde e não foi contabilizado pelo funcionário que fez a contagem dos materiais para mim.
Os jovens me perguntam o que significam as minhas tatuagens e eu pergunto o que significam as deles. Eles não me respondem e eu não respondo à eles. Eu disse que tatuagens não precisam de ter significados e um deles diz que toda tatuagem tem significados. Na Quebrada tudo tem um significado.
A oficina começa a chegar em seus minutos finais e os jovens começam a me devolver seus desenhos e os materiais. Dois jovens queriam ficar com seus desenhos e a Terapeuta disse que não poderiam. Eles apontaram o desejo de terminar o desenho na próxima oficina e eu disse que os traria para eles terminarem. Todos precisam assinar o seu desenho, independente do que fizeram. O Agente contou o material devolvido e me autorizou a subir. 
A Terapeuta começa a folhear os desenhos na sala de materiais e vai me dizendo tudo que é considerado apologias para o Sistema. Talvez seja melhor evitar a temática do crânio, pois isso teria a ver com a morte e que poderia gerar um simbolismo diferente para aqueles jovens. A letra de rap e funk que um dos jovens escreveu estava repleta de ofensas que poderiam ser apologias. A pomba branca com dois tiros no peito era uma apologia direta e objetiva. 
Eu deveria fazer um relatório no Livro de Registros assinalando todos esses fatos, inclusive os conflitos no pátio, os nomes de quem estava presente, quem se destacou e quem deveria ser punido. Eu guardo todo o material na estante, e na hora de preencher eu me recuso a identificar os jovens desta forma. Folheio os papéis, escrevo o nome daqueles que estavam mais interessados e digo que a oficina ocorreu sem maiores problemas. Guardo os papéis com os desenhos em uma pasta destinada para isso na estante.
Na saída eu falo com a Terapeuta que essa tática de limitar a quantidade de materiais poderia gerar mais conflitos, além de barrar o fluxo da atividade e fazer com que o trabalho não renda tanto quanto o esperado. Ela me disse que era algo com que eu deveria lidar melhor, porque os materiais ali sempre seriam limitados. Perguntei também sobre a questão dos jovens que não queriam participar, se eles poderiam fazer outras atividades, e ela me disse que eles não tinham escolhas. Todas as atividades eram obrigatórias, e nos primeiros 45 dias de cada jovem, eles eram obrigados a se manterem reclusos e participativos. Esses 45 dias iniciais serviriam como um período de avaliação e que seriam enviados ao Juiz. Era um período determinante para a pena, para saber se poderia ser mais branda ou mais restritiva e punitiva.
Apesar de saber do período de 45 dias, optei por não alterar o meu relatório. Eu não sabia há quanto tempo cada um daqueles jovens estava ali. Nem me interessava saber por quais crimes eles foram enquadrados. Me dava uma pena o fato de eles serem obrigados a fazer algo que não queriam, e depender disso para saber sobre o futuro naquela Instituição ou no Sistema Penal.
Me despedi dos demais funcionários e saí da Casa. Enquanto pedalava pensava sobre o caos que foi a oficina, como ela não rendeu de acordo com o esperado. Me deu uma agonia saber que os jovens não poderiam ficar com seus desenhos após a oficina, e que não havia a possibilidade deles trabalharem nas práticas artísticas quando eu não estivesse ali. De que então adianta eu falar sobre praticar, sobre o exercício diário de se propor ao treino, ao desenvolvimento de um desenho, de uma ideia, de uma observação, se até disso eles seriam privados?
Acho que a sensação de frustração me distraiu em meu trajeto e quando eu pensava nessas questões, um carro me fechou para virar a próxima esquina. Não me atropelou por pouco. Um xingamento saiu de minha boca, com um ódio que veio do fundo do pulmão, sendo expelido da maneira mais agressiva possível.
O motorista parou o automóvel e disse que ele estava atrás de mim e tinha buzinado avisando que iria passar. Eu disse que se ele iria virar a rua, poderia ter esperado que eu passasse em segurança. Ele argumentou que tinha buzinado antes de fazer isso. Eu disse que a buzina dele não me faria desaparecer da frente do carro e que ele deveria ter esperado para não colocar minha vida em risco. Ele proferiu alguns xingamentos e arrancou o carro. 
Eu nunca vou entender um automóvel que está atrás de um ciclista e buzina. Eu não sei o que esta buzina significa. Buzinas talvez sejam a forma de comunicação menos efetiva que existe. Ela pode significar várias coisas, mas pode também significar nada. 
Nesse caso, eu estava tão distraído com minhas frustrações que eu nem tinha escutado a buzina. De qualquer forma, um som proferido do volante do carro não me diz nada, não me salva, não me alerta. O sujeito escolheu me ultrapassar e virar a esquina a apenas alguns centímetros da minha bicicleta. Ele escolheu colocar minha vida em risco a troco de alguns segundos.
Esse desrespeito me frustra mais ainda. Chego em casa, cansado e com a cabeça quente. O dia foi cheio e eu precisava repensar a oficina durante a semana. Agora com noção de várias limitações em relação ao material disponível e já entendendo um pouco o comportamento daqueles jovens. A próxima oficina teria que ser mais proveitosa que essa. Não poderia repetir isso de novo.

Fragmentos #1

INTRODUÇÃO

48 minutos de bicicleta. Esse é o tempo que gastei da minha residência, zona noroeste, para uma entrevista de trabalho, na zona norte. No caminho presenciei um acidente. Um carro entra na contramão e acerta em cheio um motoqueiro que fazia a conversão olhando apenas para o lado em que os carros deveriam vir. É um choque absurdo ver tudo acontecendo. Apesar da rapidez do som do impacto, tudo pareceu em câmera lenta. O motoqueiro é lançado para o alto e cai em cima do capô do carro. A moto é arremessada até o portão fechado da loja da esquina. Várias pessoas correm para ajudar ou para saber o que tinha sido o estrondo. Eu fiquei lá um pouco, mas não podia perder a entrevista.
O dia estava quente, com uma massa de ar seco pairando na paisagem. Comecei a pedalar por volta das 12:30h, pra dar tempo de chegar na entrevista que seria às 14h e retomar o fôlego, secar o suor. Péssimo horário para pedalar.
Cheguei no local, ainda cansado e suado, toquei o interfone e um funcionário me atendeu. Disse que tinha vindo para uma entrevista de oficinas, ele pediu meus documentos e me deixou aguardando ali na rua por uns 12 minutos. Pareceu uma eternidade. Ele me disse para entrar e esperar em uma sala de reuniões onde havia apenas uma mesa e 4 cadeiras em volta. Em seguida entraram duas mulheres para conversar comigo sobre o trabalho. Uma que estava lá somente para anotar e fazer a ata, e outra, terapeuta ocupacional, guiaria a entrevista.
Elas me explicaram que no local funciona uma Casa de Semiliberdade, ligada ao Sistema Socioeducativo. Ali, jovens cumprem penas alternativas e precisam participar de atividades ligadas à cultura e à educação durante a estadia. Minha tarefa seria a de fornecer semanalmente oficinas de artes visuais, mais ligadas ao graffiti, durante 90 minutos. A remuneração era de R$80 por hora de trabalho, ou R$120 por oficina.
Me interessei pela conversa e elas me proporcionaram um tour pelo local. Era uma casa de dois andares, sendo que o de cima, no nível da rua, era a parte de escritório, reuniões e trabalho dos técnicos, e a de baixo, no subsolo, era composto pelos alojamentos e por um pátio grande onde aconteciam as diferentes atividades. Combinamos uma data, daqui dois dias, para uma oficina experimental com a finalidade de avaliação das minhas práticas de oficineiro.
Depois de acertados todos os detalhes burocráticos, peguei minha bicicleta para ir embora. A volta seria mais intensa. O sol já não estava mais tão forte, mas a quantidade de subidas seria maior. 1h12 para chegar em casa. Apesar de mais longo, o tempo passou rápido. Na minha cabeça maquinaram novas ideias do que eu poderia trabalhar naquele local, já planejava uma oficina experimental que pudesse atender à expectativa de jovens naquela situação, ainda com toda preocupação em ser bem avaliado pela Instituição que planejava me contratar.
Já em casa, espalhava as notícias aos meus familiares de que as coisas estavam melhorando. Seria meu terceiro trabalho como oficineiro de forma simultânea, e cada um deles teria sua parcela de contribuição para minha renda mensal.
Essa noite eu dormi bem.

CAPÍTULO 1

Passaram-se dois dias desde então. Hoje poderia ser uma data daquelas em que se comemora algo especial. Uma nova experiência se inicia, e com isso novas ideias, novos contatos e novas possibilidades.
No decorrer destes dias, conversando com a Terapeuta Ocupacional, criei um plano de oficina utilizando os materiais que eles disponibilizavam. Eram exercícios simples para eu poder, talvez, conhecer um pouco mais esses jovens. A ideia era usar apenas lápis e papel. Minha intenção era que os jovens se desenhassem no centro e, a partir disso, iniciassem uma série de ligações com coisas que os rodeiam. Poderia ser qualquer coisa: locais, eventos, objetos, situações, memórias…
Me organizei um pouco melhor com os horários, pois já tinha noção do tempo que levava para chegar ao local. Não levei nenhum material específico, pois sabia que não os usaria nessa oficina. O dia estava quente, mas não tão insuportável quanto no dia da entrevista. A ida, repleta de descidas, fornecia uma brisa que aliviava a sensação térmica, seguida por um trecho plano mais fresco que contorna a lagoa rumo à Zona Norte. Enquanto pedalo evito ao máximo trafegar na contramão dos carros, e ciclovia é uma coisa que me dá ojeriza, mas tem vez que não tem jeito. Para evitar um trecho com trânsito mais complexo, ou cortar caminhos, se faz necessário a contramão ou a ciclovia. Muitas vezes a calçada ajuda, mas não gosto da ideia de colocar a integridade física de pedestres em risco.
Quase chegando à Casa existe uma descida em direção a um ribeirão antes do acesso ao bairro de destino. Descida íngreme, repleta de areia que alguma obra ou caminhão derramou na via. Meu pneu traseiro, próprio para uso em asfalto, não dá conta de frear e eu derrapo durante a descida. Não caio no ribeirão por pouco. Um susto apenas. Acho que todas as pessoas que pedalam passam por sustos no decorrer de seus trajetos. Ainda que não tenha acontecido nada demais, o nervosismo sobe com o susto, e vem o receio de sofrer um acidente mais grave.
Chego na Casa ainda com os batimentos um pouco acelerados. Cheguei cedo, com um bom tempo para tomar um gole de água, retomar fôlego e diminuir a umidade na roupa causada pelo suor. A Terapeuta Ocupacional vem me receber, e ela me mostra a sala de materiais enquanto conversamos sobre os jovens. A sala de materiais tem uma janela grande com vista para o pátio de atividades. Lá de baixo os jovens me observam quando me aproximo da abertura. Um frio na barriga toma conta daquela situação e talvez meu nervosismo e ansiedade fiquem bem aparentes. Primeiro dia em uma experiência nova é sempre assim. Você sabe que é capaz, já fez isso várias vezes, está cansado de saber como funciona, mas a ansiedade é inevitável.
Na sala de materiais fico sabendo onde ficam guardados papéis, lápis, tintas guaches, borrachas, apontadores, trabalhos anteriores… Também tem uma mesa redonda com 4 cadeiras dessas que são conjugadas com um apoio lateral, típico de salas de aula, mas que não se encaixam para serem utilizadas com a mesa grande. Também tem uma estante com livros diversos. Muitos livros de projetos de rap que deram certo, livros didáticos escolares, alguma literatura mais complexa, e muitas bíblias. Realmente a quantidade de bíblias me chamou a atenção, porque se destacam muito. Em uma estante de cinco prateleiras, uma delas era só de bíblias, duas de livros diversos, uma de papéis, uma de equipamentos velhos que estavam largados ali, como um projetor quebrado e uma televisão de tubo 14 polegadas.
A Terapeuta me informou que a minha oficina sempre será dividida com outra atividade. A minha será interna e a outra externa. Ela argumentou que fazem dessa forma para alternar as atividades, e os jovens com melhor comportamento na Instituição podem escolher o que querem fazer naquele dia. Essa estratégia também se fazia necessária para diminuir o grupo com que cada oficineiro trabalharia, facilitando a dinâmica das atividades.
A Terapeuta me informou que a minha oficina sempre será dividida com outra atividade. A minha será interna e a outra externa. Ela argumentou que fazem dessa forma para alternar as atividades, e os jovens com melhor comportamento na Instituição podem escolher o que querem fazer naquele dia. Essa estratégia também se fazia necessária para diminuir o grupo com que cada oficineiro trabalharia, facilitando a dinâmica das atividades.
Saímos da sala e fomos descer a escada que ficava no corredor da Casa. Antes de acessar o pátio um funcionário me parou, contou todo o material que eu carregava, recontou e anotou. Na volta, a conta teria que ser igual. A Terapeuta me disse que isso era uma medida para evitar furtos e impedir que qualquer material possa ser usado em caso de conflitos.
Chegando no pátio, já haviam cerca de 15 jovens sentados em uma mesa retangular me aguardando. A Terapeuta me apresentou, logo em seguida eu me apresentei. Disse que estava ali para dar oficinas de artes visuais, para praticar um pouco a memória e o desenho e, a partir disso, ir desenvolvendo outras técnicas. A maioria dos jovens tinham tatuagens aparentes nas mãos e antebraços, alguns possuíam tatuagens nos rostos e pescoços. Enquanto eu olhava as tatuagens deles, eles olhavam as minhas. Essa foi a primeira interação onde aconteceu uma identificação entre pares. Era perceptível que naquele espaço havia uma riqueza histórica e cultural enorme, uma diversidade de experiências que me levaram a escrever os fragmentos que narro aqui.
Coloco os materiais na mesa, digo a minha proposta e iniciamos os trabalhos. Não posso me alongar muito, pois 90 minutos de oficina passam bem rápido. Os jovens desenham de acordo com o que falo. Alguns com mais vontade, outros com menos. O vento fica tentando levar as folhas embora, e nota-se o esforço dos jovens para manter os papéis na mesa. Eu olho para o que estão fazendo: uma figura humana no centro, objetos diversos ao seu redor. Vejo armas, números, animais, bolas de futebol, letras de músicas, padarias… Fico feliz em saber que boa parte está interessada na tarefa.
Os jovens fazem muitas perguntas sobre mim: De onde sou? Com que trabalho? Quanto ganho? O que significam minhas tatuagens? Respondo apenas algumas perguntas, pois não tenho intimidade com eles para dizer algo além do profissional, mas acho que o local de origem é importante para criar diálogos. Eu digo e eles me chamam de Boy, porque o bairro onde moro é classe média.
Durante a oficina, a Terapeuta me observa e conversa com os jovens. Uma outra técnica fica mais distante apenas analisando. Há 5 funcionários disciplinadores responsáveis pelos jovens no pátio e nos alojamentos. Os jovens chamam os funcionários disciplinadores de “Agentes”. Ao que parece, toda a interação humana naquele local ocorre sem problemas, pelo menos foi assim à primeira vista.
O tempo de oficina termina e a maioria dos jovens não concluiu seu  desenho. Alguns simplesmente largam o material ali de qualquer jeito. Já outros querem continuar e terminar o que começaram. Os materiais são recolhidos e contados para conferência. A Terapeuta me chama para subir e eu despeço dos poucos que ali ainda estavam, buscando alguma interação comigo, falando algo sobre o desenho ou sobre minhas tatuagens.
Subimos de volta para a sala de materiais e, enquanto eu guardava os materiais utilizados, a Terapeuta me dizia que o Sistema possui algumas regras e deveres, tanto para os oficineiros quanto para os jovens. Lá no pátio os jovens não poderiam se envolver em conflitos, deveriam manter a organização do espaço. Eram obrigados a participar das atividades e não poderiam fazer apologias ao crime. Ao final da minha oficina eu deveria fazer um relatório escrevendo sobre como cada jovem se portou, o que fizeram, quem se destacou ou quem fez apologias. Essa questão da apologia me deixou com uma série de perguntas sobre o tema. A Terapeuta me respondeu que fazer apologia seria falar sobre o crime que cometeram ou sobre o artigo no qual foram enquadrados, falar sobre drogas, facções, escrever siglas, desenhar ou fazer referência a armas, gesticular siglas com as mãos ou apontar gestos para outro jovem, falar sobre morte ou assassinatos, e mais uma série de fatos e situações genéricas.
Ela me disse que os desenhos que eles fizeram na minha oficina estavam repletos destes elementos, e que seria meu dever reprimir no ato e colocar no relatório final para esses jovens receberem as devidas sanções e punições. Eu fico em silêncio, apenas pensando nisso. Ela disse que vai redigir o contrato e que eu terei que ir na sede do Programa para firmar e poder começar a trabalhar.
Vou embora de lá pensando em várias questões. Enquanto pedalo, tenho minhas reflexões sobre como é aleatório o julgamento do que seria apologia. Vários dos exemplos que a Terapeuta me deu, a meu ver, dizem respeito às próprias experiências de vida daqueles jovens, seus contextos, suas atividades. Muitos viveram isso em toda sua trajetória. Isso ficou bem claro para mim, sobretudo quando olhava para seus desenhos. Para mim a arte deveria ser livre, serviria para iniciar diálogos, dotar de sentido as ações e relações, ajudar na cognição e em vários tipos de interações. Os desenhos daqueles jovens poderiam dizer muito mais sobre eles do que qualquer conversa, onde filtramos algumas coisas objetivas que não queremos expressar.
Apesar de um primeiro contato parcialmente frustrante, retorno pra casa pensando em como melhorar a dinâmica destas oficinas, o que poderia fazer para contornar essas situações burocráticas institucionais.
Para os próximos passos eu deveria apenas aguardar, pois teria que assinar contrato e alinhar meus horários com a equipe técnica para as oficinas semanais naquela unidade.
Eram tempos de planejamento.