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Capítulo 3
A semana passou voando. Muitas reflexões de como conseguir ministrar uma oficina nestas condições e pensando em como minimizar os efeitos dos conflitos que poderiam ser gerados ali. Fiquei pensando que seria interessante se os jovens pudessem continuar o desenho que começaram na última oficina, dando um acabamento ao desenho que talvez pudesse conferir à atividade um sentimento de que o processo funciona e que é importante, e o acabamento é o último que fazemos. É o ponto final que damos à imagem depois de esboçar todas as partes necessárias.
Pareceu-me uma ótima ideia, ao mesmo tempo em que uma insegurança voltou a tomar conta de mim. E se houvesse jovens que não estavam ali no dia da última oficina? E se os jovens que não se interessaram pela oficina seguissem apáticos sentados à mesa, completamente desinteressados? E se os jovens da última semana fossem escalados para a atividade externa e eu tivesse que lidar com jovens ainda desconhecidos por mim?
Tive que me sentar novamente e repensar todas essas possibilidades. Se fossem jovens novos eu ministraria a mesma atividade da semana passada. Se fossem os mesmos, eu falaria para eles darem acabamento ao desenho que iniciaram na última semana. Se fossem jovens mistos, eu mesclaria as atividades. Sim, agora estava mais seguro. Mas e aqueles jovens que fizeram desenhos que foram considerados apologias? Eles deveriam começar outros desenhos? E os que escreveram ao invés de desenhar, como proceder com estes? Por mais que eu planejasse cada passo dentro da Casa, na hora da oficina provavelmente eu teria que lidar com várias questões espontâneas. Precisaria lidar com várias angústias ao retornar pra casa também. Tudo que acontece nesse espaço-tempo chamado trabalho, reflete no meu descanso, nas minhas horas vagas. Estamos sempre trabalhando a cabeça, maquinando formas de fazer diferente, de melhorar, de desenvolver algo mais interessante.
Depois do almoço, pego minha mochila, subo na bicicleta rumo à Zona Norte. A sensação de distância durante o trajeto já começa a parecer mais curta. Aprendo novas rotas e ruas para cortar caminhos. Mas quando chega na lagoa não tem jeito. Talvez seja a parte mais longa e plana do trajeto, de onde não há escapatórias ou atalhos. Ali é um misto de brisa úmida com sol a pino. Ingresso no bairro por uma avenida larga, com ciclofaixa no canteiro central. Me mantenho na avenida por um tempo tão curto que não vale a pena o risco de atravessar a via para alcançar a ciclofaixa. Desço rápido pela direita, satisfeito com o espaço da pista ocupado por mim. Morros vêm e vão, e chega a descida íngreme antes do ribeirão. Desacelero e vou com cuidado já sabendo dos riscos iminentes. Mais uma subida e chego à Casa.
Novamente aperto a campainha, um funcionário pega meus documentos e me deixa na rua esperando por alguns minutos. Isso me irrita um pouco, não era minha primeira vez ali. Após um tempo eu entro, cumprimento todos que estão presentes na sala principal trabalhando e vou direto pra sala ao fundo. A Terapeuta vem conversar comigo. Ela diz que hoje tem menos jovens. Houveram algumas situações na Casa no decorrer da última semana, e que hoje a oficina seria para apenas cinco jovens. Houve evasão de vários deles, que saíram para suas atividades rotineiras, como trabalho e escola, e não retornaram. Os juízes responsáveis emitiram mandados para buscar esses jovens, mas ainda não sabem seus paradeiros.
Eu separo material suficiente para cinco jovens, praticamente os mesmos utilizados na semana passada, mas adiciono materiais como caneta esferográfica, hidrográfica e marcador permanente. Agora iremos trabalhar com contraste, com acabamento também. Separo vários papéis virgens e também os desenhos inacabados da semana passada. Pode ser que tenham jovens ali que queiram finalizar seus desenhos. O Agente não me aguarda descer para fazer a contagem e conferência do material. Ele sobe até a sala onde eu estava com os materiais. Enquanto ele conta e anota, me faz várias perguntas pessoais, onde moro, de onde sou, porque venho de bicicleta? Eu respondo, não tenho nenhuma questão com isso. Ele afirmou que eu era louco de pedalar isso tudo. Ele me disse que morava mais perto que eu e fazia questão de vir de carro. Eu disse que não tinha carro, e nem fazia questão de ter.
Desci portando o material. Um outro Agente abriu o portão que dá acesso ao pátio para mim. Os jovens estavam dispersos, e o local não estava preparado para receber a oficina. Dois jovens vieram me perguntar o que eu fazia ali. Eu não os reconheci, devem ser novatos ali na Casa. Eu disse que dava oficinas de artes visuais e solicitei que me auxiliassem na organização do espaço para receber a oficina. Pegamos a mesa grande, a colocamos em uma parte coberta, e dispusemos os bancos ao redor. Chamei o restante dos jovens para nos acompanhar à mesa na oficina, e os três se sentaram conosco. Eu também não os reconheci, tampouco eles me reconheceram. Eram cinco jovens que eu desconhecia, e que não haviam produzido nada comigo na semana passada. Tive que me apresentar de novo.
Novamente um Agente seleciona o material que eu coloco na mesa, levando para sua sala o apontador e afirmando que os jovens precisam solicitar à ele para apontar os lápis. Eu dou as instruções de como seria a oficina, e começo a esboçar formas básicas com a finalidade de construir a imagem aos poucos, planejando os tamanhos e as posições de cada elemento. Os cinco jovens parecem mais interessados que os da semana passada, e observam atentos às explicações e aos esboços que faço no papel. Eles também arriscam, criando suas composições, encaixando cada elemento onde devem ficar. Um deles me diz que vai fazer uma rosa dentro de um rolo de dinheiro. Ele diz que já foi grafiteiro, e que usava essa técnica de esboço para pintar nos muros do beco onde ele ralava. Na hora eu fico em dúvidas se um maço de dinheiro configura algum tipo de apologia. Nunca se sabe qual interpretação a Instituição terá de determinada imagem. Eu ignoro essa dúvida e digo para ele seguir desenvolvendo seu projeto.
Os outros quatro jovens têm mais dificuldades em desenvolver seus desenhos. Fico imaginando se isso é falta de referências visuais, de prática de observação ou de má compreensão da atividade. Tento iniciar algumas conversas que podem auxiliar no desenvolvimento do desenho e faço perguntas do tipo “Imagina algum objeto que vocês gostem, como ele é?” ou “essa paisagem que você está desenhando é real ou imaginária?”. Minha intenção é tentar com que busquem diferentes referências, em diferentes espaços da memória. O jovem já iniciado no graffiti também tenta ajudar. Ele esboça alguns objetos que ele se lembra e diz para outros jovens copiarem e complementarem em seus desenhos.
Os jovens estão bem tranquilos, me dizem que a Casa está bem tranquila esses dias, e que eles ainda estão lá para cumprir os primeiros 45 dias de reclusão. Um deles diz que vai voltar a estudar para sair da vida do crime, que nada daquilo compensa. Ele fala sobre sua mãe enquanto tenta desenhar uma máquina de costura. A mãe dele sempre costurou e ele diz que ela fazia colchas com os retalhos que ele buscava atrás das confecções do Centro quando era criança. Hoje ele diz ser uma decepção na família.
O jovem iniciado no graffiti fala que não se arrepende de nada. Faria tudo de novo. Os outros três jovens apenas observam o diálogo. Não falam nada, mas escutam atentos às palavras proferidas naquela mesa. Eu não pergunto muito, prefiro não invadir o espaço deles, e eu até prefiro não saber sobre seus crimes. Eu entendo que isso não irá interferir na oficina em si, mas nós vivemos em sociedade e aprendemos a conviver julgando outras pessoas, mesmo que pelas costas. Isso iria acabar me trazendo alguns conflitos também, e eu preferia ter uma relação mais profissional ali.
A Pedagoga desceu neste momento para verificar o andamento da oficina. Ela chamou dois dos jovens para conversar em particular. Eles subiram com ela, restando apenas três jovens no pátio participando da oficina. Depois de esboçar os desenhos, iniciamos o processo de acabamento, reforçando as linhas e zonas de contraste com marcadores permanentes. Eu ensino a técnica de hachura, fazendo traços paralelos e/ou cruzados para demarcar zonas de sombra e de penumbra. Os jovens tentam reproduzir a hachura em seus desenhos. Alguns com sucesso, outros com mais dificuldades.
O tempo de oficina termina e eu peço para que assinem seus desenhos. Os três jovens se despedem de mim e retornam aos alojamentos. O Agente me ajuda a recolher o material que estava na mesa, e aproveita para fazer a conferência também. O Agente abre o portão e me autoriza subir. Recolho todos os materiais e fico pensando que nenhum dos jovens perguntou se podia ficar com seus desenhos. Talvez eles não tenham gostado da atividade. Subo as escadas e vou em direção à sala dos fundos para guardar os materiais e preencher o Livro de Relatório. A sala está ocupada pela Pedagoga com os outros dois jovens.
Dirijo-me à sala principal e fico aguardando a liberação da sala. O Advogado me cumprimenta e pergunta como foi a oficina. Eu digo que foi boa, mais tranquila, mais fácil de trabalhar assim. Além do mais, os jovens presentes pareceram mais interessados nas atividades. Ele me disse que cada dia ali iria ser diferente, que eu poderia me preparar para isso. Em cada dia seriam diferentes jovens, diferentes dinâmicas, e que tudo que acontecia ali não poderia me afetar tanto, que deveria se restringir àquele espaço. Eu disse que isso seria complicado, pois o planejamento de uma oficina começa muito antes da minha presença na Casa. É impossível chegar para trabalhar sem um planejamento, sem um programa, sem ter nada definido.
Essa fala do Advogado me incomodou um pouco. Fiquei pensando nessas hierarquias laborais, em como ele deveria receber um salário muito maior que o meu, e que o tempo de pensar o trabalho dele era restrito àquele espaço. Em compensação, eu recebia R$120 a cada ida à Casa, mas haviam várias horas de planejamento de oficinas não remuneradas, e que eram impossíveis de serem desconsideradas ou ignoradas enquanto eu não estivesse trabalhando na Casa.
Fiquei um tempo olhando para o Advogado, sem saber muito bem o que responder naquele momento. Fiquei sem saber se era um momento de desconforto ou constrangimento de minha parte, pois visivelmente fiquei incomodado com essa situação.
A Pedagoga liberou a sala, saiu com os dois jovens que se despediram de mim ao me cruzar no corredor, e eu pude guardar os materiais. No relatório eu não registrei nada demais. Como não havia ninguém vigiando a oficina, eu simplesmente escrevi o nome dos jovens, e que eles participaram como desejado das atividades propostas. Essa talvez seja a parte mais chata deste trabalho. É como se fosse elogiar por mérito burocrático, sem compreender minimamente a diferença que aquela atividade possa exercer na vida daqueles jovens. Eu fiquei desejando, por um momento, que fossem representados qualquer coisa que poderia ser considerada apologia. Gostaria de enxergá-los pela ousadia representada através de imagens, criar diálogos a partir de seus desenhos. Talvez assim conseguiríamos compreendê-los.
Olhei para os papéis: Uma rosa dentro de um rolo de dinheiro, uma máquina de costura, nuvens flutuando com um sol triste, um pergaminho inacabado, um campo de futebol inacabado. Tudo para se manter dentro das regras da Instituição.
Guardo os desenhos na pasta e vou embora. Durante o trajeto fico pensando na funcionalidade daquela Casa, para que ela serve? Jovens precisam ir ali cumprir penas alternativas. São todos menores de idade? Que diferença aquela Casa de passagem irá representar no futuro desses jovens? Porque uma oficina de artes visuais existe em um espaço onde tudo é enclausurado, limitado, excluído, reprimido? Tudo o que estudamos sobre a expressão, a comunicação e a criação de sentidos que a arte proporciona não funciona naquele lugar. A arte deveria se adaptar ao meio. E como fazer tudo isso dar certo, ser interessante? Como fazer com que essa passagem pela Casa seja proveitosa para esses jovens?
Foram tantas reflexões que eu nem percebi o tempo passar. Chego em casa sem ter sentido o caminho. Foi um daqueles dias que tudo pareceu tão automático que nem me senti cansado ao pedalar. Repouso no sofá pensando o que fazer em uma semana, em como mudar essa situação. Minha mirada está perdida em algum lugar da parede. Eu adormeço sem perceber.