Ruim demais para ser mentira #3

Piscina do hotel

Quando eu era pequeno costumávamos viajar para a cidade de Aparecida do Norte, em São Paulo. Eu digo “costumávamos” porque na minha cabeça parece que foram diversas vezes, mas a memória sempre me engana e pode ser que tenham sido 2 ou 3 vezes no máximo. Minha avó paterna faleceu de câncer quando eu tinha uns 3 anos de idade, e eu tenho quase certeza de que essa viagem era feita para prestar as devidas homenagens cristãs à ela. Mal sabiam que a minha relação com as religiões seria destruída alguns anos depois, mas talvez isso não venha ao caso agora.
Lembro de uma viagem bem específica, que saímos de carro eu, meu pai, minha irmã, minha tia e meu avô, e fomos pipocando nessas cidades turísticas do sul de Minas, onde não há muito o que fazer e para todos os lados têm pessoas idosas caminhando com seus suéteres de cores pálidas em busca de águas termais que prometem trazer a juventude de volta. Na frente do veículo sentava meu pai, que dirigia o carro do meu avô, e meu avô sentava no banco do carona. Atrás, eu, minha irmã e minha tia. Eu sempre tinha que ir na janela, pois viajar me dava enjoos e eu sempre vomitava pela janela do carro. Pensando agora, nem sei porque me levavam nestas viagens se eu só sabia ‘dar trabalho’.
Não lembro se ainda iríamos para Aparecida do Norte ou se já estávamos retornando pra Belo Horizonte quando nos hospedamos em um hotel chique no Sul de Minas. Pode ser que tenha sido São Lourenço, Lambari ou Caxambu, não me lembro. Mas a minha família inventou de andar de charrete pra dar uma volta pela cidade. A égua que nos guiava, de nome Malvina, fez questão de cagar o caminho todo, nos deixando bem desconfortáveis durante o passeio. Minha tia, que adorava uma zueirinha leve, logo passou o resto da viagem dizendo que eu namorava a Malvina. O cheiro era horrível e eu me lembro do terror que foi tudo isso apenas de escrever essas memórias. Terror não apenas do cheiro, mas de alguém achar que eu realmente estivesse namorando com uma égua de diarréia chamada Malvina.
Mas talvez esse não tenha sido o fato mais marcante desta viagem. O hotel, com todas suas chiquerezas possíveis, tinha uma piscina gigante, com aquele bares que você pode ficar sentado em bancos dentro da água enquanto toma seus bons drinks e se diverte de montão. A piscina tinha uma rampa em uma das extremidades, era super acessível a qualquer pessoa.
Enquanto eu nadava, uma forte dor de barriga me pegou de jeito, e eu saí correndo da piscina para ir ao banheiro. Saí perguntando onde havia um banheiro por ali e me disseram que no saguão havia. No saguão do hotel, o banheiro estava ocupado e seu ocupante tardava demais para sair. Eu tive a ideia de voltar na família e pedir a chave do quarto em que estávamos hospedados para utilizar o banheiro do quarto sem passar por constrangimentos em público. Eles disseram que estava na recepção, que eu poderia pegar lá. Fui correndo na recepção e me disseram que a chave estava com a funcionária da limpeza, pois ela estava organizando as acomodações. Subi as escadas correndo e cheguei ao quarto, a porta estava aberta. Entrei com uma felicidade imensa já pensando no banheiro limpinho que eu usaria, mas, para o meu azar, o banheiro estava sendo limpo naquele exato momento. Eu fiquei desorientado, sem saber o que fazer naquela situação. A moça disse que ainda iria demorar um pouco, e enquanto isso minha dor de barriga só aumentava.
Eu voltei desesperado pra família que estava na piscina, mas a dor de barriga era tanta que eu me contive na rampa de acesso. Não deu tempo de mais nada, sentei na beiradinha da rampa e fiz o que devia dentro da sunguinha. Ao terminar, ajustei a folga da sunga e liberei os sólidos na piscina enquanto já saía correndo. Não falei nada com ninguém, apenas voltei para o quarto para ver se o banheiro já se encontrava limpo para que eu pudesse tomar banho. Não disse nada, não citei nada, omiti tudo que aconteceu nesse dia. Fui uma criança feliz, e isso seguiu pela juventude toda e até pela fase adulta. Nunca me importei.
***
Há alguns anos atrás, estávamos em um evento de família e minha irmã, inocentemente, perguntou “vocês se lembram de quando a gente estava em um hotel e apareceu um cocô boiando na piscina? Foi o caos, todo mundo saiu correndo, tiveram que desinfetar tudo!” e eu somente consegui rir discretamente enquanto escutava isso. Sim, ela ficou chocada quando ficou sabendo que tinha sido eu o autor desta proeza, ainda mais depois de todos esses anos de segredo absoluto. Foi a única notícia que tive do meu feito infantil. Eu implantei o caos na piscina de um hotel chique do Sul de Minas. Malvina deve ter ficado orgulhosa de mim.


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[xilogravura] Andina

O ano era 2014. Havia pouco tempo que eu havia ingressado, a partir do processo de transferência, ao curso de Artes Visuais da UFMG. Eu andava bem frenético no que referia à produção artística. Em 2012 havíamos vivenciado um cotidiano fronteiriço em Ciudad Juárez, México, e minha energia produtiva andava bem aquecida e estimulada por esta riquíssima experiência.
Eu conheci a linoleogravura enquanto estudante de Artes Visuales, no Taller de Grabado que eu frequentava em Cd. Juárez. Foi amor à primeira vista. No México, o acesso a materiais de gravura, matrizes, ferramentas e referências é muito mais amplo que aqui no Brasil. Inclusive, as ferramentas que comprei lá, e que eram as mais baratas, são as mesmas que uso até hoje.
São técnicas beeeem populares, pois existiram (e ainda existem) várias gráficas populares na região. No Brasil, a gráfica ficou restrita por muito tempo apenas à família real, e as ideias não circulavam tanto quanto na parte do continente colonizada pelos hispânicos (Mas essa história do desenvolvimento e popularização da gráfica talvez seja uma pesquisa para outra postagem).
Na minha tentativa de desenvolver mais a técnica, passava boa parte do meu tempo pesquisando artistas, processos, técnicas e temáticas. Que eu incorporei a cultura da região do México na minha produção não é novidade para ninguém. Basta ver meu portfolio que essa temática fica escancarada. Mas algo que eu incorporei foi esse amor ao processo gráfico artesanal, de pensar, refletir, produzir, e trazer ao público minha produção de maneira acessível.
Por isso me recuso a vender gravuras por valores irreais às condições econômicas de pessoas comuns, ainda que algumas tenham valor mais elevado, mas isso se deve, muito, aos materiais que aqui nos custam muito caros. Não gosto de fechar e limitar edições de gravuras cujas matrizes ainda podem ser reproduzidas, e sempre tento levar meu trabalho para outros suportes, como lambe-lambe e camisetas. Assim, garanto uma forma de acessibilidade visual que foge à lógica de galerias, por exemplo.


Os esboços em meus caderninhos são algo que eu curto fazer enquanto processo produtivo. Acho que é a forma mais sincera de se começar algo. Me lembro bem que eu treinava desenhos a partir de fotografias de pessoas, e eu curtia muito trabalhar os tecidos que apareciam. Gostava de observar e de representá-los de alguma maneira gráfica.

Não sei exatamente como essa fotografia surgiu na minha vida. Mas várias coisas me chamam atenção nela. A quantidade de pano, com muitas tonalidades e texturas; o olhar da mulher; o olhar da criança; a paisagem. É uma fotografia interessante aos meus olhos em vários aspectos. Até porque, nesta época, os temas que envolviam maternidade, mulheres e crianças em processos históricos (sobretudo de lutas) era algo que me chamava muita atenção.
Não pude perder a chance de praticar desenhos e logo abri meu bloquinho A5 para esboçar alguma coisa. As tramas do pano foram algo que me trouxeram a ideia de transformar a imagem em uma xilogravura. Várias linhas paralelas, de diferentes espaçamentos e espessuras, ditavam o ritmo. Essa textura parecia maravilhosa para um gravador iniciante.
O processo foi relativamente simples. Digitalizei a página do bloquinho, ampliei para um formato A3, imprimi. Na folha impressa, trabalhei com marcadores a base de álcool na cor preta, para criar os preenchimentos, volumes, vazios. Criei de forma manual uma imagem com linhas e formais mais rígidas, já pensando em uma estética própria da xilogravura. Após todas as marcações em preto estarem prontas, fiz uma cópia em impressora de toner, e fiz uma transferência pra placa de compensado de pau-marfim com thinner e prensa.
Daí, foi só começar o processo de gravação. Utilizei, majoritariamente, goiva faca para todas as bordas, e goiva em V muuuuito afiada pra fazer os detalhezinhos da textura do pano.
Foram algumas semanas gravando, mas acho que valeu a pena.

Após um longo processo de gravação e de testes, acho que fiquei satisfeito com a matriz que eu havia gravado. Precisava de um papel que estivesse à altura, que fosse tão delicado quanto à suavidade e serenidade da imagem. Optei por um papel de arroz tão fino, que praticamente não aparecia. Dava a impressão de que a impressão ríspida flutuava no ar. A impressão foi feita completamente com colher de pau, sem a utilização de prensa, com todo cuidado para que o papel não rasgasse por conta de sua espessura. Processo delicado, trabalhoso, mas que me trazia muita satisfação.
Logo abaixo seguem os resultados.

A única questão sobre esta gravura, é que eu acabei fazendo poucas cópias dela. Em 2015 ou 2016, não me lembro, houve uma infestação de ratos lá em casa. Eu tinha uma gaveta onde guardava todas as matrizes, bem como algumas impressões e revistas. Quando abri a gaveta, havia fezes e urina de ratos para tudo quanto é lado, tudo estava roído e/ou descascado. Eu preferi não arriscar. Coloquei luvas, juntei tudo em um saco de lixo e descartei. Perdi muitas coisas nesse processo, mas o que foi feito, pelo menos, tem fotos…

Ruim demais pra ser mentira #2

Fantasma

Quando eu era pequeno costumávamos ir em família para um sítio que meu avô tinha aqui na região metropolitana. Eu achava super distante, e era um lugar que não havia muita estrutura. Dois clubes, uma lagoa, casas de fim de semana, bares e pequenos comércios. Boa parte da minha família paterna se encontrava aos finais de semana neste sítio, e era sempre muito legal aquela renca de tios/as e primos/as brincando, correndo pra lá e pra cá e praticando diversas atividades. Entre futebóis, piscinas, pedalinhos, buracos e churrascos, eu gostava mesmo é quando saímos em bando para caminhar pela região.
Algum tio animado sempre nos guiava e éramos várias crianças correndo e inventando brincadeiras pelo caminho de rochas gnaisses encrustadas em gramíneas por onde passavam os automóveis, carroças e bicicletas.
Um local na região que gostávamos de ir caminhando nesta época era um hotel que foi abandonado durante sua construção. No meio do nada as estruturas foram erguidas, vários andares, amplos espaços. Quando íamos, só haviam as colunas que formavam o esqueleto da edificação, bem como seus respectivos pisos e tetos. Tudo muito deteriorado, sujo e entulhado. Nós subíamos e descíamos, brincando de qualquer coisa que achássemos esperando-nos no chão. Meus tios falavam, na época, que as pessoas começaram a furtar as paredes do hotel abandonado para construírem suas casas, enquanto apontavam para moradias precárias que eram avistadas na paisagem. Eu imaginava pessoas, literalmente, levando paredes de tijolos montadas até o local onde seria suas residências.
Me lembro bem de um dia que estávamos eu, minha irmã, meus dois primos e meu tio (pai destes primos) caminhando em direção ao hotel. Subimos as ruas que levavam ao fundo de um dos clubes da região, adentramos em um caminho de mato, e lá vimos a majestosa estrutura abandonada.
Logo, eu e meus primos decidimos apostar corrida para ver quem chegava lá em cima primeiro. Largamos a uma velocidade absurda e deixamos para trás meu tio e minha irmã. Nós três acessamos o que poderia ser um saguão, passamos pelo vão que seria de um elevador, chegamos à rampa externa que fazia uma curva em espiral e findava no segundo andar. Subimos correndo, agitados. No segundo andar, avistamos a escadaria e a subimos correndo, demonstrando a incrível habilidade de subir pulando um degrau para ir mais rápido.
Nós três estávamos exaustos, cansados e suados quando chegamos ao último andar, um zuando a cara do outro pela velocidade, pelos tropicões e pelo jeito desengonçado de correr. Quando nos demos conta, percebemos que meu tio e minha irmã já se encontravam naquele andar. Nós nos entreolhamos e fomos perguntar como que eles haviam chegado antes da gente, já que fomos correndo e havíamos deixado eles para trás.
Meu tio virou para a gente e disse:
– Um fantasma trouxe a gente!
***
Na minha cabeça eu associei a figura do fantasma à imagem do Caronte, barqueiro de Hades, presente no filme Fúria de Titãs de 1981. Neste filme, Perseu é levado ao mundo dos mortos pelo Caronte, aquela figura esquelética silenciosa, que coleta suas moedas para transportar pessoas por essas águas neblinadas. Essa é a figura que eu pensava que meu tio e minha irmã haviam topado no trajeto. Inclusive, cheguei a cogitar um elevador fantasma imaginário que subiu pelo vão antes da gente.
A memória desse filme não é a toa. No sítio havia uma VHS desse filme e nós sempre assistíamos quando estávamos lá. Eu adorava. O imaginário e simbolismos das cenas do filme seguem gravados nesta caixa que chamamos de cérebro.
***
Esse mito ficou martelando na minha cabeça por anos. Eu nunca entendi como eles subiram o hotel abandonado antes de três crianças com muita energia pra gastar. Afinal, eu havia crescido e, finalmente, compreendido que mitologia grega tem esse nome por uma razão bem óbvia. No mais puro espírito investigativo, há pouco decidi questionar minha irmã e meu tio sobre esse fato. Me perguntava se eles lembrariam deste episódio, e, se lembram, como foi que aconteceu.
Ao serem questionados em uma reunião de família, minha irmã disse:
– Não me lembro, mas pode ser que tenha acontecido.
Meu tio disse:
– Foi o fantasma que subiu a gente.


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