Lapsos de Tempo #7

Em casa

Escuto um barulho que me acorda. Abro os olhos, ainda estou deitado nesse objeto macio. Gosto de dormir nele porque meu corpo se encaixa muito bem e minha cabeça fica apoiada nessa parte lateral. Daqui eu consigo ver esses dois gigantes que roncam muito alto. Um deles se levantou para tomar líquido transparente e acabou trombando em algum objeto de madeira no caminho. Foi esse barulho que deve ter me acordado. Não tá na hora de levantar ainda, aquele aparelho eletrônico ainda não tocou a música horrível. Eu adquiri esse péssimo hábito de não conseguir mais dormir depois que a música horrível toca. Para me vingar, eu subo no quadrado macio que os gigantes dormem e faço questão de raspar minha língua na cara deles. Se eu não posso dormir, eles também não poderão. Raspar a língua na cara também vai fazer com que eles desliguem a música horrível, essa aberração tonal que toca todo dia de manhã…
Sigo deitado, apenas observando a horário que a música horrível vai tocar. A partir daí eu posso seguir com minha rotina. Os gigantes são muito frágeis no bueiro gigante, e eu faço questão de acompanhá-los quando eles estão lá. Eles vão todos os dias no mesmo horário. Não sei como aguentam essa rotina. Não sei como eu aguento essa rotina. Eles também possuem um aparato fino para usar após se levantarem do bueiro gigante, eu ainda não sei para que serve. Gosto apenas de desenrolar ele todo pra tentar entender os porquês da existência disso. Sigo sem saber.
Na cozinha o líquido transparente é colocado num objeto de metal, depois começa a pegar fogo por fora enquanto borbulha por dentro. Enquanto isso vou para a sala aproveitar o sol da manhã. Me disseram que é a melhor vitamina D que existe. Gosto de sentir os raios solares adentrando meus pelos enquanto sinto o cheiro agradável do líquido transparente se tornando líquido preto. Nunca me deram isso para beber, só me dão líquido transparente. Talvez seja uma coisa de gigantes.
Começou a ficar quente demais, me levanto e vou para a sombra. Faço isso enquanto observo os gigantes bebendo líquido preto e comendo algo que eles não me deixam comer. Eles proferem sons em concordância, até parece que se entendem. Um emite um som enquanto o outro não emite som. Às vezes eles emitem esses sons se direcionando a mim, como se eu soubesse do que eles estão proferindo sons.
Ambos saem desse local, fico aqui pensando no que devo fazer em todo esse tempo que ficarei sozinho. Tem vários objetos macios onde posso deitar, mas não sei se quero dormir agora. Tem um buraco no local ao lado, parece que tem algo acontecendo ali. Acho que será um bom passatempo observar dentro do buraco. Fico de saco cheio, deito um pouco em cima de um objeto de madeira, só que ao lado da vegetação. Vou na cozinha ver o que está de fácil acesso e que mate minha fome. Não há nada. Até tento saltar na borda do objeto de madeira, mas não há migalhas desta vez.
Olho pra sala e algo brilha, chama minha atenção. Vou para lá correndo e me deparo com um objeto de plástico no chão. Ele possui algum líquido dentro, mas tem uma coisa de plástico que parece impedir que o líquido saia. Me coloco a missão de retirar esse plástico que impede o líquido de sair. Isso ocupa boa parte do meu tempo sozinho. Meus dentes são fortes, mas acho que tiveram dificuldades com esse objeto. Quando eu consigo remover o plástico, o líquido escorre no chão. Eu não sei o que fazer, como que se limpa uma sujeira? Devo raspar a língua? Os gigantes devem voltar e eu não sei como esconder isso. Deito em cima como se a sujeira fosse um objeto macio. Mas logo me levanto por me sentir incomodado com a sensação do líquido na pele. Tento raspar a língua, mas o gosto não é legal e eu acabo desistindo.
A tensão me deixa imóvel e eu não sei o que fazer. Olho para a sujeira que o líquido fez e a fico encarando, maquinando possibilidades. Adormeço sem ver.
Escuto um barulho na rua e desperto rapidamente. É o barulho do objeto de metal que protege o buraco que entra o equipamento mecânico. Os gigantes estão chegando. Me lembro da sujeira e começo a correr e latir, sem saber o que fazer. Não encontro a sujeira, talvez alguém tenha limpado.
Tô aliviado. Corro para o buraco por onde os gigantes entram no local. Estou feliz, eles não perceberão que fiz sujeira e eu não fico mais sozinho.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Double-X PB 200

Na rua

Escuto alguém me chamar lá fora. Vou correndo para entender melhor o que está acontecendo. Me aproximo da grade e vejo a Pequetita passando pelo lado de lá da rua. Ela anda meio pomposa, empinando o bumbum pro pequeno rabo ficar mais aparente. Mas esse hábito faz com que ela caminhe dando alguns pequenos saltos. Seus pelos são de cor clara, contrasta com a calçada escura. Pequetita me avista e, sem cumprimentar, grita em minha direção que a árvore da rua foi contaminada. No meu tempo de reação eu só consigo perguntar de volta quem foi o autor da contaminação. Ela grita que não sabe, mas foi alguém novo. O perfume que estava na árvore era diferente de qualquer outro lugar da região. Eu agradeço e aproveito o dia claro para me deter no sol por alguns minutos. Logo após a Pequetita, o Caquito passou pela rua. Ele me viu, mas fingiu que eu não estava ali. Prefiro contar sobre a contaminação para quem quer saber, Caquito me esnobou, não gostei. Sigo olhando para a rua, Suzi passa e eu aviso que a árvore está contaminada. Ela me responde, diz que a Pequetita já avisou a ela, mas que ela precisava ir na árvore conferir a nova fragrância. Eu digo que só irei de noite, mas que gostaria de saber as atualizações no decorrer da tarde. Suzi segue caminho e se detém na árvore da rua. Eu fico observando. Ela sente o cheiro e olha para mim, confirmando que é alguém diferente. Isso me deixa mais curioso. Tinoco vem descendo a rua. Ele é mais parrudo, curte subir numas árvores. Já fiquei sabendo que ele até já subiu muro. Da rua, eu acho que ele é o mais ágil. Mas eu o vejo pouco, ele vive um pouco mais distante, mas sempre cumprimenta quando passa por aqui. Uma vez ele disse que me traria um pedaço de osso e deixaria aqui na minha porta, eu agradeci, mas recusei a oferta. Ossos não me fazem bem. Tinoco parou na árvore, trocou algumas palavras incompreensíveis com Suzi, e me olhou. Será que a Suzi falou de mim? Tinoco desceu mais e parou aqui em frente, perguntou o que eu já sabia do caso da árvore. Eu disse que havia uma nova fragrância que contaminou a árvore e que era de alguém desconhecido. Ele me confirmou a informação, disse que eu deveria ser mais enxerido pra coletar informações. Eu disse que tentaria, mas nem sempre dá tempo. Tinoco fingiu que estava caçando lugar para defecar enquanto conversávamos. Depois de um tempo despistando, ele seguiu viagem. Ver ele despistando me deu vontade de mijar. Aqui neste espaço tem plantas, e eu posso liberar o xixi aqui sem perder as atualizações sobre a contaminação da árvore da rua. Fiquei algum tempo olhando para a árvore da rua, o que poderia ter contaminado ela? Preto e Branco estão subindo a rua. Eu acho que eles são irmãos, mas não tenho certeza. Eles são parecidos, exceto pela cor curiosa de seus pelos, um é claro e o outro é escuro. Eu nunca sei quem é quem. Quando os vejo subindo eu só os chamo de Zé. É muito mais fácil e ambos atendem. Eu aviso que a árvore da rua foi contaminada por alguém desconhecido. Eles apenas acenam, não dizem nada de volta. Acho que eles têm medo de gritar muito alto e serem punidos por isso. Pelo menos fiz minha parte em avisar. Eu apoio a cabeça na grade e me concentro na árvore da rua. Quero sabe em primeira mão a origem da fragrância que contaminou a árvore da rua. Mas depois de tanto tempo, não avisto nada de anormal. Pingolino mora em frente à árvore, em breve tá na hora dele sair pra dar uma volta. Talvez ele tenha mais informações sobre o caso. Roger passa antes, avisando que talvez não seja bom verificar o odor, pois se contaminou a árvore, sabe-se lá o que pode fazer com a gente. Margarete diz que é uma fragrância meio doce, estranha, que deixa a gente enjoado. E se todos adoecermos por causa dessa contaminação? Avisto o portão abrindo e Pingolino está dando as caras, finalmente. Ele sai, analisa a árvore, e começa a buscar possíveis ouvintes pro seu caso a solucionar. Ele me avista e vem na minha direção. Ele me diz que viu algo preto sair de um negócio vermelho, cair na árvore da rua e começar a borbulhar. Foi isso que contaminou a árvore. Não foi um desconhecido, porque não foi um de nós. Eu tento ficar mais tranquilo em saber que não tem desconhecidos contaminando a árvore da rua, mas me preocupa esse líquido preto borbulhante e adocicado que contamina tudo…

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Fomapan BW 100

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La Idea

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