Corpo utópico

Hoje escreverei sobre utopia. Mas não sobre política, nem horizontes, nem fábulas, não vou trazer autores, mas talvez eu traga. E talvez eu fale sobre tudo, e sobre nada. Hoje tentarei ser espontâneo. A utopia a que me refiro hoje, é o lugar inexistente que passamos a saber da existência. Topia, vem de topos, lugar. A letra U que antecede a palavra sugere uma negação à esse lugar. Utopia se define, então, como um lugar sem lugar, um não-lugar, um lugar inexistente. Um lugar idealizado, fantasiado, perfeito, uma quimera.
Trago esse preâmbulo confuso para pensarmos nos nossos corpos, organismos físicos que não compreendemos muito bem como funciona. O corpo quando é dissecado em vida, possui um complexo de órgãos, músculos, tecidos, células, líquidos e outras matérias que trabalham em conjunto fitando manter a vitalidade dos seres humanos.
Nós raramente pensamos no lugar que nosso corpo e suas complexidades habitam. Porque comemos o que comemos, porque nos movimentamos, porque pensamos, nos relacionamos, porque nos excitamos e nos empolgamos com alguma coisa?
Há algo que reside no subjetivo de nossa existência que não possui um lugar concreto. E agora, enquanto escrevo, me pergunto se o corpo é uma utopia ou uma heterotopia, lugar utópico com posicionamento em um lugar real. Mas penso no que compõe o corpo, que sabemos que existe, que está lá, e que não nos damos conta da importância ou da existência.
No primeiro semestre do ano passado li o texto “O Corpo Utópico” de Michel Foucault, lançado pela N-1 Edições. Entre os exemplos que o filósofo cita no decorrer de suas linhas, algumas definições me chamaram a atenção. E me impressiona o fato de eu guardar esta ideia por tanto tempo antes de escrever sobre.
– O primeiro exemplo passa pela forma como descobrimos a existência de nosso corpo. Um bebê recém nascido, que passa seus dias com um universo muito limitado em relação ao corpo, aprende aos poucos que existe algo além de sua cabeça, e vai descobrindo seus membros e como controlá-los. Cada descoberta traz uma imensidão de possibilidades, e aqui cabe a analogia com criar um lugar para o que antes era inexistente, ou se desconhecia a existência;
– O segundo exemplo perpassa toda uma questão relacionada à ordem do sensível. São corpos que, apesar de se situarem na ordem material, nos são invisíveis. Nesse sentido, a exploração através do tato, do olfato, da audição, do paladar e da visão nos fazem conhecer, de outras formas, outros tipos de interação com diferentes matérias. Sentir e fazer sentir nos possibilita localizar algo que não conseguíamos imaginar ou prever. Olhar para a pele arrepiada é uma experiência diferente de sentir arrepios, ou de causar arrepios em alguém. A sensação se localiza na interação, e logo se torna utopia novamente;
– Por último, o desaparecimento de um lugar físico, de uma matéria, de um corpo. A transformação de algo localizado em uma utopia. O corpo não se deixa reduzir tão facilmente, ele quer existir em algum lugar. O corpo possui as próprias fontes de utopia, de imaginação, de sensibilidades, de localização ou perda de qualquer coisa. O que nos constitui como sujeitos, que nos faz pensar, refletir, nos movimentar, nos relacionar e desenvolver novos espaços, reais ou virtuais. O corpo é atuante e resistente ao esquecimento, até que é acometido por alguma doença ou debilidade em suas diferentes funções. Foucault escreve que em situações de enfermidade o corpo deixa de atuar, de sonhar ou de imaginar, e passa apenas a tentar sobreviver, resistindo ao que lhe destrói. O lugar real do corpo se torna um lugar desconhecido, talvez esquecido. O corpo perde suas subjetividades e funções para tornar-se apenas uma coisa, uma carcaça de anticorpos que busca sentido para a vida.
Todas as coisas existentes e inexistentes estão dispostas em relação ao corpo. Porém para cada corpo, uma disposição diferente de topias e utopias. O corpo é o marco zero onde desenvolvemos nossos significados, onde localizamos as utopias, de onde irradiam todos os lugares possíveis e impossíveis.

3 anos

Hoje se completam 3 anos do falecimento do meu pai. Eu gosto de sentar na frente do computador e escrever algo em sua homenagem sempre que chega o dia 25 de Janeiro. Esse dia é dedicado à escrita sobre a morte, sobre a vida, sobre as relações e sobre várias coisas que me lembram dele, ou dos momentos que pudemos vivenciar juntos. É uma forma de localizar a memória guardada em alguma utopia do meu cérebro e transformar em algo real.
Trago este tema da utopia porque penso na linha da vida em que meu pai nasceu, viveu, e teve o funcionamento de seu corpo interrompido por conta de um tumor. Fico aqui pensando em tudo que ele descobriu e vivenciou durante sua existência no plano terrestre. Tudo que ele pôde significar em relação ao que o afetava e interagia com ele. E eu me incluo nesse espectro luminoso de sentidos. Muitas dessas descobertas foram feitas junto à mim, ou em relação à mim, e muitas outras apenas me foram transmitidas.
Durante muito tempo, eu ficava me perguntando sobre o sentido da morte, porque morremos, e essas coisas. Mas acho que da mesma forma que nós topificamos o que está ao nosso redor na medida em que nos desenvolvemos, nos transformamos em utopias quando precisamos lidar com tudo que ainda nos é desconhecido. Não sabemos nada sobre doenças, até que precisamos lidar com alguma. E lidamos com nossas próprias doenças e com doenças das pessoas com quem nos relacionamos, com quem temos afetos. Tentamos localizar o corpo em algum lugar na esfera da vida, como se fosse um alfinete em um mapa-mundi, e nossos esforços de conter uma possível utopia dos corpos é incansável.
O corpo doente é apenas uma coisa que será mantida viva por profissionais da saúde, por fármacos ou por máquinas, e aí já não importam mais as subjetividades. Importa apenas o esforço em adiar a utopia da matéria por mais algum tempo.
E eu fico pensando aqui em todo o processo que meu pai passou. Foram apenas 3 meses da descoberta de um tumor até seu falecimento. E o corpo dele foi, praticamente, reduzido a algo que necessitava um esforço em ser mantido vivo, não importa qual procedimento cirúrgico, laboratorial, robótico ou químico seria utilizado para isso. Todos nos esforçamos com essa finalidade.
Talvez eu escreva isso sendo cruel demais com todo o processo, ou talvez não. Na hora tudo parece ser o melhor método, e mesmo depois nós ainda não sabemos muito bem o que foi tudo isso. No calor do momento eu escrevi sobre o processo de morte, e como significávamos tudo o que acontecia. Foi tudo muito tenso, e corrido, e exaustivo, e cansativo, e triste. Celebrávamos cada melhora como se ganhássemos um campeonato, e nos abatíamos a cada notícia desfavorável que chegava. Sempre achamos que algo mais poderia ser feito, ao mesmo tempo em que temos a certeza de que tudo que era possível de ser feito, foi feito. É um sentimento muito ambíguo e contraditório em relação à tudo que aconteceu.
Mas, enfim, prefiro ainda acreditar que meu pai foi descansar de tudo que ele vivenciou e descobriu. De todas as relações que ele significou e que já era hora de fazer o corpo descansar da luta contra o surgimento da utopia.
E ainda que o corpo do meu pai tenha se tornado novamente uma utopia, o lugar que ele ocupa em minha vida segue muito bem localizado na minha memória, nos meus afetos, as minhas topias utópicas.
Cuidem de seus corpos.

Cinzas sendo depositadas no rio. Meu pai adorava nadar. A água será a última topia do corpo dele.




Pensando alto sobre o Livro dos Vivos, de Binho Barreto.

O Livro dos Vivos me chamou atenção pelo nome. Me ofereceu um contraponto instantâneo ao Livro dos Mortos, e eu queria entender o que há nesse livro que possa celebrar a vida como celebramos a morte. Namoro este livro já há algum tempo, desde que vi um exemplar em uma promoção no site da Editora Impressões de Minas, mas não tinha recursos para comprar na e´poca. Hoje escrevo isso e parece bobo, mas quando se está desempregado, comprar livros talvez não seja uma necessidade. Consegui comprar o livro nas mãos do próprio Binho Barreto durante a Feira Urucum. Ele estava expondo seus materiais ao lado da minha banquinha, e foi a chance que tive de trocar uma breve ideia com ele sobre a impressão que o livro dele poderia me fornecer. Desde o falecimento do meu pai, em 2021, que as reflexões sobre vida e morte vagam na minha cabeça. Refletir sobre esses processos me traz uma dor boa, dessas de me sentir vivo e saudosista, de rememorar situações em cada lágrima que escorre. Mas, principalmente, me traz uma vontade de vivenciar coisas diferentes, de correr atrás de sonhos e desejos, de não cair na apatia da sociedade consumista e sem sentido que o kapitalismo impôs.
Não faz nem uma semana que adquiri o exemplar, e agora já tentarei escrever sobre essa obra devorada em poucas horas. É uma escrita tranquila, fluida, em que a todo tempo nos questionamos sobre a veracidade das cenas descritas com uma quantidade de detalhes impressionante. É como se durante a leitura você se colocasse no lugar do autor, e observasse com seus próprios olhos cada elemento da cena que foi narrada. A narrativa tem um cuidado enorme com a memória. Sabemos que a memória nos prega peças, e é bem possível que tudo que Binho Barreto experimentou através de seus olhos não seja exatamente assim. Mas são muitos detalhes que ficaram marcados na pressa cotidiana e que são descritos como um observador nato.
São cenas do cotidiano, efêmeras, captadas somente por quem está atento à tudo que acontece ao seu redor. São segundos que te fazem esquecer do mundo para se concentrar somente nesta cena curiosa. De memória ou in loco cada capítulo traz pessoas vivendo, sendo afetadas por uma situação, por uma discussão, por uma vontade, por um problema, por uma curiosidade. São pessoas que se afetam e são afetadas por diferentes estímulos, e tudo isso é registrado por quem está presente. Lendo estas páginas me senti em um espaço-tempo onde só a observação da cena me importava. Fiquei preso na imaginação, e retornei ao fluxo de leitura.
Belo Horizonte é uma cidade jovem, que se desenvolveu com uma mistura de referências artísticas e arquitetônicas, uma atropelando a outra, que criou avenidas como se fossem muros, que vivencia suas contradições desde sua gênese. Binho parece transitar por estes espaços para descrever o que há de interessante nessas passagens, nesta história que é escrita a cada dia, longe dos holofotes da grande mídia ou do turismo. Cenas comuns, banais e efêmeras (utilizando as palavras da Elza Silveira no posfácio do livro) se tornam situações carregadas de significados, sobretudo pra quem, assim como eu, é de BH, e que todo dia tenta entender qual é a proposta desta cidade fincada no alto das serras entre ecossistemas distintos.
Nós que nos interessamos pela lógica das cidades, das vivências e das relações, percebemos as cenas, mas a correria nos impede de registrar esses momentos. Este livro talvez seja um convite à aguçar a percepção, a exercitar o registro, a viver. Parece cliché falar desta forma, mas a morte é a única certeza que temos. Iremos chegar lá algum dia. Até lá, nós viveremos.

O Livros dos Vivos – Binho Barreto – Selo Leme/Impressões de Minas

Experiência com a morte

Foi a primeira vez que ouvi falar dessa experiência. Poucas pessoas tiveram a chance de presenciá-la. Não estou dizendo que é algo belo ou confortável, e que todos precisam passar por isso. Só quero narrar um pouco do que foram esses momentos que, seguramente, me marcarão por toda a vida.

Ano passado, 2020, no princípio da pandemia, minha avó materna faleceu. Ela estava internada em um hospital, e vários de seus filhos e uma de suas netas (minha irmã) estavam no revezamento para acompanhá-la. Ela deixou esse mundo enquanto minha irmã segurava suas mãos. Ela morreu de morte natural, já tinha bastante idade e muita experiência de vida. Minha irmã acompanhou todo o processo e me disse que é um momento muito diferente, que nos muda. Presenciar uma morte natural talvez seja comparado ao momento do nascimento. Os dois opostos deste tempo em que uma vida existe.

No decorrer de 2020, meu pai desenvolveu um tumor maligno na cabeça do pâncreas. Ele perdeu muito peso, e os primeiros sintomas, icterícia principalmente, apareceram por volta de outubro. Em novembro veio a primeira internação. Os médicos ainda não tinham muita certeza, ou não nos falavam muito bem o que estava acontecendo. Pesquei algumas conversas entre eles enquanto acompanhava meu pai, e o termo “neoplasia periampular” começou a surgir. Pesquisando na internet, descobrimos que o o termo diz respeito ao câncer de pâncreas, cujos sintomas aparecem já em estágio avançado e a maioria dos pacientes possuem uma sobrevida média de 6 meses depois do diagnóstico. Há aqueles casos de pessoas que vivem 10 anos, mas é raro.

Com isso em mente, o desespero e a tristeza fizeram parte de nossas vidas durante esse tempo. Foram várias consultas e exames, algumas endoscopias e a colocação de duas próteses para manter o sistema digestivo tentando funcionar. Os médicos chamavam isso de “dar qualidade de vida” ao paciente. Talvez esse termo fale sobre ter os familiares por perto, porque desde o diagnóstico até seu falecimento, meu pai não teve descanso e nem paz. Começou com o estômago acumulando alimentos e líquidos, expandindo e pressionando outros órgãos. O duodeno, que estava com uma prótese para desobstruir a passagem de alimentos, não funcionou muito bem, e começou a vazar líquidos para fora do sistema. O pâncreas começou a atrofiar. Dores na lombar o incomodavam a ponto dele não achar posição para ficar, nem em pé, nem sentado e nem deitado.

Foram meses sem dormir, sem comer, sem beber, com muitas dores, sem conseguir se locomover direito. No princípio de janeiro, já raquítico, sem musculaturas, sua audição e fala foram comprometidas. Seus olhos já aparentavam estar afundados no crânio, seus ossos estavam muito salientes. Em janeiro, houveram mais duas internações. Acompanhamos todo o processo de perto. Eu o visitava todos os dias, ainda que ele dormisse a maior parte do tempo. Eu tinha muito medo dele não acordar. Estávamos cientes de que esse dia poderia chegar a qualquer momento. Eu abri mão do meu trabalho, e apenas produzi o que estava ao meu alcance. Havia algo mais importante acontecendo.

Na terceira internação ele já estava muito debilitado. Ficava confuso e disperso, ficou com a locomoção completamente dependente de terceiros. Ele não achava posição, e mudava a cada cinco minutos. Levávamos ele da cama pro sofá, do sofá pra poltrona, de volta pra cama. Ele dizia que não sabia o que queria, mas o ajudávamos mesmo assim. Houve pequenos conflitos entre a gente, normais nestas situações. Já andávamos desgastados dessa maratona de cuidados e dedicações.

A cada momento surgia uma nova questão. Desde outubro ele desenvolveu anemia, diabete tipo 2, infecção abdominal, princípio de trombose, inflamações diversas, embolia pulmonar, enfisema pulmonar. Nós entendemos que isso é o corpo parando de funcionar aos poucos. O médico nos disse que a situação dele era gravíssima. T4N2M1 no primeiro diagnóstico. Essa classificação piorou com o tempo.

Na noite do dia 24/01 o colocamos para deitar. Estávamos eu, minha irmã e minha mãe no quarto. Meu pai era um paciente em estado terminal e nos foi autorizado ficar com ele. O primeiro turno acordado era o meu. A madrugada chegou, e por volta das 2h já do dia 25, meu pai levantou a mão. Ele não conseguia falar muito bem, e muitas coisas eram feitas por gestos. Eu fui até ele e ele me disse que queria “dormir”. Falou duas vezes e foi isso que eu entendi. Ele queria levantar, ele queria sentar, ele queria ficar de pé. Ele queria descansar. Tanto tempo privado do sono, e ele precisava desse descanso. Minha irmã acordou e eu fui deitar. Ele estava com algumas sondas entrando pelo nariz, mais o acesso de soro e medicamentos nas mãos. O acesso que teve que ser feito e refeito várias vezes, pois as veias estavam muito finas e não corriam mais sangue. Minha irmã falou com ele que não iria levá-lo pro sofá porque estava inviável. Todas as vezes era muito sacrifício para ele, ser carregado, a gente sem jeito, muitos equipamentos para levar junto.

Ela subiu o encosto da cama e ele se sentou. Sua respiração estava ofegante. Dava para perceber que o ar não estava chegando onde deveria. Eu estava deitado em uma poltrona reclinável que o enfermeiro trouxe. Eu estava de frente para ele. Ele estava olhando a janela, e sua respiração estava forte, como quem fazia muito esforço para conseguir puxar o ar. Ele ficou imóvel das 2:30 às 7:30. Durante esse tempo eu o observei por cada segundo. A frequência da respiração foi ficando menor, cada vez mais. O enfermeiro disse que esse estado chama “estado agonizante”. Não sabemos muito bem se ele ainda estava consciente, ou se já tinha ido. De qualquer forma, o enfermeiro aplicou mais uma dose de morfina, para ele não sentir dores. Esse é o estágio final antes de ter o óbito declarado.

Meu pai faleceu na manhã de segunda, dia 25/01. Ele estava olhando para a janela e viu o sol nascer. Essa simbologia foi muito forte para mim. O nascer do sol tem algo de “um novo mundo”, de uma renovação das experiências, das ideias, das lutas. Ali no horizonte onde ele surge, iluminando cada parte da paisagem, indicando o novo dia.

Os simbolismos ficaram muito presentes no decorrer destes dias. Até os astros se mostraram simbólicos para mim, mas não irei prolongar sobre isso. Presenciar uma morte foi algo muito forte, cada cena está marcada na minha memória. Fico satisfeito de ter conseguido despedir dele, e dizer o quanto eu o amava. Cada dia do processo foi doloroso para nós, e aqui neste texto não é possível descrever com precisão tudo o que passamos. Não acredito em vida antes ou depois da morte, acredito neste tempo em que vivemos e em como aproveitamos nossa estadia. Fora disso são outros quinhentos. Me apego a ideia de que meu pai descansou e teve paz de todo os meses de sofrimento e dores e internações. Talvez as dores maiores são as de quem fica, pois não teremos mais a sua presença física, apenas as memórias. E nesse momento é importante ressaltar a presença da família, de amigos e de pessoas próximas. Fazem muita diferença.

Presenciar um processo de morte, experiência marcante. Escrever sobre o processo me traz lágrimas e lembranças, boas e ruins. Faz parte da vida também.