Lapsos de tempo #18

Fatalidade

Domingo foi dia de ir na feira, ver as amizades, comprar quitutes e almoçar ao som de pagodes clássicos. Todos os anos eu aguardo ansiosamente a chegada deste dia. Meu roteiro é sempre o mesmo: o mesmo ponto de encontro com as pessoas que sempre me encontram ali uma vez ao ano; comprar caixas de chá mate a granel que vem da agricultura familiar do sul do país; e assistir aos músicos tocando pagode enquanto me delicio com um feijão tropeiro vegano feito por produtores locais. Costuma ser um dia ótimo.
Vem meu amor, não faz assim, você é tudo aquilo que sonhei para mim…
O dia começou com uma cara de chuva, algo que estava fora do meu roteiro. Não que a chuva me impeça de fazer algo, mas quando você tem um evento em espaço aberto planejado, pensar duas vezes antes de sair de casa se torna algo comum. Nuvens carregadas, ventos frescos, clima abafado. Apesar disto tudo, penso que o dia me espera de braços abertos.
Com esse seu jeito faz o que quer de mim, domina o meu coração…
Eu, que sou um grande fã da iguaria indígena denominada cientificamente de Ilex paraguariensis, possivelmente de origem 100% Guarani, aguardo todo ano por este vendedor que vem do sul do país. Ele produz uma leva que possui uma tostagem mais controlada que esses industrializados que se vende em supermercados. O sabor fica mais forte, abraça o corpo por dentro, envolve o paladar de uma maneira que nenhuma outra bebida faz.
Olha nós outra vez no ar, o show tem que continuar…
O tropeiro também é algo especial. Ele é feito com feijão de coloração roxa colhido em terras de agricultura familiar. É misturado com coco torrado, soja graúda não-transgênica frita no molho shoyu, couve com alho na manteiga de castanhas, linguiça de lentilhas artesanal cortadas em rodelas e servidos com arroz branco em um prato de plástico. O molho de pimenta, caseiro, é opcional.
É uma saudade imensa que partiu meu coração…
Penso nisto tudo enquanto caminho em direção ao local da feira. O clima está ruim, fechado, mas eu acho que vale a pena a ida. Encontro com meus amigos e fico batendo papo durante um tempo. Sim, sempre encontro os mesmos amigos. É como se fosse um local onde todos saberemos quem estará presente. Após uns 40 minutos de conversas, começo a buscar nas barraquinhas pelo produtor do chá-mate. Depois de percorrer as 78 barraquinhas, descubro que desta vez ele não foi. O primeiro golpe atingiu meu coração em cheio. Minha compra anual de erva mate tostada pro meu chá diário foi cancelada, e com isso a primeira tristeza do dia.
Quando eu te vi pela primeira vez, me encantei com seu jeitinho de ser…
Passada a primeira frustração, sigo adiante para encarar a imensa fila do feijão tropeiro. Após alguns minutos em uma fila segurando o cardápio, descobri que estava na fila errada. Tive que entrar em uma fila específica do caixa, que demorou bastante até chegar minha vez. Na fila você só fica em pé, aguardando com ansiedade quando será a sua vez de pagar pelo serviço. Quando chegou a minha vez, tentei disfarçar meu descontentamento com o valor da iguaria. R$45 pelo prato de tropeiro. Paguei pensando que eu faria um rango melhor com essa grana em casa, mas achei que valeria a pena me desfrutar por uma última vez deste tropeiro tão fabuloso em minha memória.
Tira a calça jeans, bota o fio dental, morena você é tão sensual…
Com minha ficha em mãos fui na barraquinha onde serviam o feijão tropeiro. Era uma barraquinha bem desorganizada, não haviam filas, mas sim um aglomerado de pessoas gritando e tentando fazer o pedido antes das outras. Um verdadeiro caos. Eu esperei pacientemente até que alguém me atendesse sem eu precisar disputar atenção com pessoas muito mais engajadas na missão do que eu. Um senhora me atendeu com bastante calma e começou a preparar meu prato após pegar minha ficha. Ela serviu a refeição no prato, me deu juntamente com um garfinho de plástico e disse que o molho de pimenta era a parte, que eu poderia me servir a vontade. Assim o fiz.
Eu te quero só pra mim, como as ondas são do mar…
Enquanto voltava para o local onde estavam minhas companhias, observei que o tropeiro não estava tão rechonchudo como o do ano passado. Não tinha coco, e a linguiça não parecia ser a de lentilha que eu tanto gostava. Além disso, a porção de tropeiro era visivelmente menor que a de arroz, me fazendo refletir se realmente valiam os R$45. Enquanto caminhava me desviando das pessoas, dei um passo para o lado e me detive em um lugar seguro cedendo passagem para uma pessoa cadeirante que também tentava atravessar o mar de pessoas, só que para o outro lado. Para o meu azar, me detive atrás de um grupo de pessoas que não haviam percebido a situação, e uma delas deu um passo para trás abrindo os braços para simular alguma situação que conversava com seus amigos. Seu braço foi ao encontro do meu prato, enquanto eu me contorcia todo pra tentar equilibrar minha tão sonhada refeição.
Você só colheu o que você plantou…
Não teve jeito, meu pratinho virou e 89% da porção de tropeiro caiu, indo direto para o chão. Quando olho para o que sobrou praticamente só vejo arroz, pensando que no prato tinha tanto arroz que nem ia fazer falta se eu perdesse um pouco dele ao invés do tropeiro. Não dei conta, um xingamento saiu de minha boca, todo mundo ouviu. Fico olhando para a pessoa que começou toda a confusão, e ela me xinga dizendo que eu estava parado atrás dela. Isso me revolta bastante.
Eu te vejo nos meus sonhos, e isso aumenta mais a minha dor…
Acabei almoçando um arroz de R$45, sem meu mate tostado, ouvindo pagode ao vivo enquanto caía uma garoa disfarçando minhas lágrimas.

La Idea, 2023 – Canon BF800, Double-X 200 PB

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La Idea

um gravador, que faz gravuras; um bicicleteiro que anda de bicicleta; um rugbr que joga rugby.

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