Pensando em limites, bordas, fronteiras e essa tarefa de ser humano

Começar um processo de compreensão do conceito de “fronteiras” foi algo que vivenciei em 2012, quando morava na fronteira entre México e Estados Unidos. Ciudad Juárez, na época, era um dos grandes centros urbanos do país nortenho. Uma cidade com uma história bem curiosa, fundada no meio do deserto com o nome de Paso Del Norte, a região foi palco de diversas guerras e conflitos, e em 1888 foi decretado que a nova fronteira entre México e Estados Unidos seria o Rio Bravo, que cortava a cidade de Paso del Norte. Com isso, fez-se a divisão da cidade em duas, Ciudad Juárez, ao sul do rio Bravo, e El Paso, ao norte. Imagina só uma cidade, no meio do deserto, divida em duas e pertencentes à nações distintas. Viver em uma região fronteiriça me fez compreender que as relações entre os dois países são muito diferentes e especiais nestas cidades, com características bem singulares. As duas cidades tinham relações próximas, tinham trocas econômicas, tinham passagens, eram fluidas. Estávamos falando de uma cidade considerada a mais violenta do mundo na época, e de outra considerada a mais segura dos Estados Unidos. Talvez a imagem da cerca patrulhada na borda de lá no rio Bravo era uma imagem muito mais significativa nas tensões fronteiriças do que as relações econômicas, políticas e sociais da região. Uma cidade dependia da outra.

Esse reflexão sobre a vida fronteiriça me desperta muita curiosidade, e as analogias e referências com o que conhecemos como “limites” fornece pistas de algo que podemos vivenciar de forma mais intensa. Outro dia em uma conversa, o assunto era sobre colocar limites, ou ter dificuldades em saber/conhecer nosso próprios limites. Até onde conseguimos lidar com barreiras que são rompidas, seja por um comportamento abusivo, seja por dificuldade em dizer “não” e sustentar esta posição. Eu tenho dificuldades em compreender vários desses limites. Em questão de trabalho, por exemplo, eu assumo muito mais compromissos do que eu realmente dou conta. E fico pensando se essa busca por dinheiro não me faz ser assim. Talvez se minha vida fosse tranquila financeiramente eu recusaria trabalhos com mais facilidade e naturalidade, mas enfim, as contas estão aí e eu me esforço muito pra tentar manter tudo em dia.

Em um diálogo na terapia, conversamos sobre os limites surgidos de forma natural, sem intervenção do ser humano, tais quais cordilheiras, fendas, matas fechadas, rios/oceanos. Esses biomas naturais são barreiras à locomoção por exemplo, e muitos povos nômades criavam o percurso baseado nas regiões por onde poderiam se locomover de forma mais natural. Inclusive, pensar na gravidade como um limite também, pois é ela que nos mantém com os pés no chão. Dito isso, fiquei pensando na obstinação do ser humano em romper com esses limites. Nós construimos botes, barcos, navios, caravelas, aviões, foguetes, helicópteros, automóveis, estradas, pontes e viadutos. Nós desejamos sempre romper com os limites impostos. Inclusive, essas barreiras naturais são construções que dizem respeito ao tempo, e talvez as nossas soluções são apenas formas de romper com o tempo geológico, quase imperceptível para nós humanos.

O professor Silvio Gallo diz sobre o processo educativo em um artigo intitulado “As múltiplas dimensões do aprender” que nós aprendemos quando precisamos lidar com um problema, pois isso nos faz pensar e maquinar possíveis soluções para lidar com as questões postas. Assim se dá o aprendizado: em ter que lidar com diferentes questões e querer/precisar resolvê-las. Trago essa reflexão de Gallo sobre o processo educacional para pensar também se nós nos educamos a cada vez que precisamos romper com esses limites, com essas bordas. Nós construímos aparatos para romper com o que nos impede de seguir adiante. Chegar à borda, ao limite, à fronteira, nos faz correr atrás de conhecimentos, de tecnologias, de soluções.

E se os olhos começassem a fechar? Cada parte do seu corpo morrendo… Perceber os limites é sentir a existência. Experimentar é a única maneira de estar vivo, ou tudo se resumirá a respirar e ver tudo passar. Quero arranhar sua pele e faze-lo sangrar. Faze-lo sangrar! Você sente no ar a tempestade que se aproxima e a eletricidade lhe traz uma sensação agradável. Alguma coisa vai acontecer. Mas e se tudo acabasse por aqui? Viver é encontrar maneiras diferentes de não morrer – e morrer também é aceitar as condições que não nos deixam viver. O problema é não ter escapado vezes o bastante, como se já estivesse enterrado desde o começo. Sem vontade, seu corpo se torna um instrumento, um objeto que não tem razão para existir além do que vem do sentido dado pela vontade exterior. Sem vontade, seu corpo se torna um instrumento. Todo bem e todo mal residem nas sensações. Nas sensações o espírito se realiza. – experimentando a morte, é a única maneira de viver. – Porque um objeto não deseja.

Colligere – Glória é um momento silencioso

Essa letra da banda curitibana Colligere também me traz uma ideia interessante, sobre o que sentimos e a forma como lidamos com isso. “Perceber os limites é sentir a existência”, a cada vez que refletimos sobre a gente, e nossas vivências, e experiências, sentimos um pouco dessa borda que nos define fisicamente. Nós temos sentimentos, afinal não somos objetos inanimados, e tudo que sentimos aparecem em maior ou menor intensidade, a depender da situação. Essa é uma das características que nos faz humanos. Sentir e ser sentido. Sentir e levar todas as sensações ao extremo: sorrir, chorar, alegrar, entristecer, doer, gozar, arrepiar e vários outros verbos que nos fornecem vitalidade. Longe de mim querer incentivar que testemos ou coloquemos a prova os nossos limites, mas sentir a borda nos faz experimentar sensações novas.

Eu, ideologicamente mais próximo do anarquismo, sempre justifiquei a minha falta de reconhecimento dos limites porque sempre associava os limites a fronteiras. E sem fronteiras não haveriam limites. E sim, há muitos limites e bordas que devemos reconhecer e respeitar. Os limites de outra pessoas, os limites éticos, os limites físicos e psicológicos. O que seria de nós, seres humanos, sem alguns desses limites. Talvez o que eu esteja pensando com esse texto, é compreender e destrinchar um pouco esses conceitos que eu coloco no corpo destes parágrafos. Fronteiras, limites e bordas existem, e eu acredito na fluidez e na permeabilidade de todas elas. Acho que essas coisas não são tão rígidas como pensamos ser. A questão, talvez, seja compreender formas saudáveis e respeitosas dessas maleabilidades. Assim como a fronteira entre Juárez e El Paso. Ela existe e impede várias trocas, mas também é fluida e maleável.

Gostou da publicação? Anima pagar um cafezinho?

Faça um PIX de qualquer valor para a chave pix@cycoidea.com

Ou considere fazer uma doação voluntária via PayPal:

R$1,00
R$2,00
R$5,00

Ou insira uma quantia personalizada:

R$

La Idea Cyco Punx agradece sua contribuição. Me dá ânimo para seguir em movimentos, sonhando…

Faça uma doação

Publicado por

Avatar de Desconhecido

La Idea

um gravador, que faz gravuras; um bicicleteiro que anda de bicicleta; um rugbr que joga rugby.

Deixe um comentário