Afetar e ser afetado

A Sete Palmos (Six Feet Under) – 2ª Temporada, Episódio 13 – The Last Time

Logo nas primeiras cenas deste episódio Nate Fisher vai de encontro ao seu amigo Aaron Buchbinder. Aaron está em uma cama, olhos vidrados no nada, aparelhos respiratórios ligados, e recebe Nate com os dizeres “Vá embora!“. O que se segue disso, é uma encenação de um processo de morte devido a um câncer de pâncreas em estágio avançado que foi desenvolvido no personagem de Aaron. Ele diz para Nate: “Eu quero que isso acabe!“, e logo depois começa a faltar ar, combustível essencial para a existência dos seres vivos. Aaron diz: “Não estou pronto, me ajude!“, e toda uma representação do estado agonizante acontece a partir daí. A cena termina no minuto 5:33, com o personagem de boca aberta, travado na mesma posição, e o escrito clássico da série com o ano de nascimento e de falecimento da pessoa: 1976 – 2002. 26 anos.
O personagem de Aaron apareceu na série apenas na segunda temporada, e teve uma passagem que, apesar de curta, foi bem marcante para mim. Ele foi diagnosticado com câncer de pâncreas em estágio avançado, e os médicos afirmaram para ele que a morte poderia chegar a qualquer momento. A única reação de Aaron diante deste diagnóstico foi esperar a morte chegar. Rompeu qualquer relação que tinha com familiares, com sua namorada, com seus amigos, com seu trabalho e com seus estudos, com o lazer, com a vida social, com tudo. Assim, aguardou solitário chegar o momento certo. Esse tempo durou por volta de 1 ano. 1 ano em que tudo foi deixado de lado, pra viver em função da morte que nunca chegava.
Nate Fisher conviveu com a morte durante sua infância, pois sua família administrava uma empresa de serviços funerários na sua própria casa. Nate fugiu para Seattle para não herdar os negócios, e jurou que não trabalharia com funerária. Após o falecimento do pai, Nathaniel, logo no primeiro episódio da série, Nate se vê colocado um pouco nessa posição de ajudar nos negócios da família, e acaba virando diretor de funerais na empresa. No episódio 11 da segunda temporada, Nate chega até Aaron por uma indicação de uma Rabina, que ofereceu os serviços da Fisher and Sons para Aaron, e indicou Nate para ajudá-lo no processo de “funeral pré-arranjado”. Ao se conhecerem, Aaron questiona os motivos de fazer um funeral para as pessoas que ficam, e ele tem uma mentalidade que se expressa na frase em que ele diz em bom tom para Nate: “E se sua vida foi uma perda de tempo para todo mundo? Até mesmo para você?“, e segue afirmando para Nate que o que ele está vivendo naquele momento é apenas uma prorrogação da vida, pois ele já deveria ter partido. Depois disso, ainda tardou 2 episódios para Aaron falecer.
A nível teatral de conteúdo televisivo de entretenimento, Aaron conseguiu trazer um pouco do drama e da agonia durante sua partida, e Nate participou do processo como o único sujeito a oferecer suporte a quem já havia desistido de viver. Nate viu a morte chegar e carregar Aaron nos ombros. A última cena desta tomada, de Aaron de boca aberta, corpo rígido, olhando para o nada, me marcou profundamente.

2 anos

Hoje completam-se 2 anos do falecimento do meu pai. Da descoberta do tumor até o falecimento foram apenas 3 meses. Infelizmente, não tivemos certeza de nada, porque não foi feita a biópsia. Mas tudo que os exames indicavam, sugeriam uma neoplasia periampular, câncer no pâncreas. Esse tipo de tumor somente dá alguns sintomas quando já está em estágio avançado, por isso é tão fatal. As últimas palavras do meu pai foram “Eu quero dormir!”. Se fosse um episódio da série, apareceria uma tela branca com o nome do meu pai escrito, além dos anos de 1960-2021, logo depois do meu pai conseguir, finalmente, dormir.
Diferentemente do personagem Aaron, meu pai não desistiu de viver. Viveu intensamente tudo que queria e tudo que pudemos fornecer para ele. Diferentemente de Aaron, meu pai perdeu muito peso, perdeu muitos músculos, sentia muitas dores, e acabou ficando um pouco dependente de outras pessoas para ajudá-lo nas atividades diárias. A alimentação era especial, controlada. Eram tempos complicados de pandemia, então as visitas não poderiam ser tão frequentes e descuidadas.
Eu vi a morte chegar e carregar meu pai nos ombros. Retirar-lhe o ar e o deixar agonizando, enquanto olhava vidrado e rígido o sol que nascia pela Serra, no horizonte vasto. Meu pai tardou várias horas para dar seu último suspiro no processo lento da morte, Aaron teve alguns segundos no 13º episódio da 2ª temporada para conseguir partir em paz.

Eu não vejo mais a morte como eu via antes. Talvez hoje eu tenho um pouco dessa certeza de que a morte chegará para todos nós, e o que fica nesse tipo de reflexão é justamente sobre o que fazemos com nossas vidas. Eu tinha conflitos com meu pai, assim como pais e filhos sempre acabam se desentendendo em alguns pontos de suas vidas, e me arrependo de não ter lidado melhor com várias situações, e talvez até aproveitado mais a presença dele. Imagino que ele poderia pensar o mesmo sobre mim, e isso não necessariamente é um alívio. Fico pensando no personagem de Aaron e na relação que tive com meu pai, e o único que consigo pensar são nas coisas que a gente constrói enquanto sujeitos. Nós somos pessoas sociais, políticas, humanos que erram e aprendem, e que precisamos aprender a viver em sociedade de alguma forma.
Aaron desistiu de completamente tudo, meu pai resistiu enquanto pôde, manteve suas relações e alegria de sempre, não quis preocupar ninguém em nenhum momento. E eu vejo o quanto meu pai afetou as pessoas com quem se relacionou. No velório, em plena pandemia, haviam muuuitas pessoas, e várias mensagens de carinho apareciam no Instagram e Facebook dele (Tá, isso eu acho bizarro). A Federação Mineira de Natação fez uma publicação em memória a meu pai, um atleta PCD amador. Aaron entrou na vida de Nate para lhe dar alguma perspectiva de vida. Meu pai entrou na vida de muitas pessoas para simbolizar várias outras coisas.
Imagino que ele deve ter olhado para tudo que vivenciou e disse: “Acho que foi uma vida bem daora!“. E talvez seja isso que devemos buscar em vida, construir relações, afetos, divertir, buscar os sonhos e desejos, não desistir. Imagino que essa ideia seja o simbolismo que eu gostaria de significar a morte, um movimento em busca de afetos.

Ps.: Na série A Sete Palmos, todo mundo ali precisaria de uma terapia de verdade. É muito trauma e muita treta acumulados, sem verbalizar e sem tentativas de lidar com as emoções de uma maneira mais saudável. Parece que todo mundo é egoísta, sem empatia, e tenta impor o que quer o tempo todo. Nenhuma relação assim pode ser saudável, fato.
Ps.2: Margareth, a mãe da Brenda nesta mesma série, é uma péssima terapeuta. Não veja a atuação dela e ache que seja uma regra dentro da psicologia. Obviamente ela está lá para enriquecer em cima das celebridades, e dar pitaco errado na vida das pessoas. Isso não é terapia.

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La Idea

um gravador, que faz gravuras; um bicicleteiro que anda de bicicleta; um rugbr que joga rugby.

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