Desaparecer virtualmente (ou uma paralaxe analógica)

Outro dia eu me dei conta de que eu nunca me vi. Faço uma ideia de como seja minha aparência, mas eu mesmo nunca conseguirei saber realmente como sou. Bom, através do tato consigo sentir meu rosto, a textura da minha pele, as curvas salientes, meus curtos pelos arrepiados ou a barba grossa. Consigo sentir a gordura da pele, a maciez da carne ou a dureza do osso. Consigo sentir as lágrimas saindo dos meus olhos e escorrendo pelas bochechas, enquanto minhas mãos tentam enxugá-las. E, talvez, próximo disso seja tudo que conseguirei experimentar e descrever sobre minha aparência real.
Quisera eu saber realmente como sou, pois apenas me conheço virtualmente. Necessito da lente de uma câmera, de uma superfície espelhada, dos olhos de outra pessoa que me observa por alguns instantes e marca no papel o que foi registrado em sua memória sobre a minha aparência. Para eu saber como sou, dependo sempre de outra pessoa, de outro objeto, de algo que capte a luz refletida pelo meu rosto.

Outro dia, caminhando pelas ruas de BH, me deparei com algumas vidraças espelhadas. Ainda que eu tentasse fugir do meu reflexo, meus olhos sempre enxergavam minha imagem. Meus olhos são dois globos captadores de luz, dispostos na cabeça de uma maneira que captem luz de diferentes ângulos, e meu cérebro faz o serviço de juntar essas duas imagens em apenas uma imagem coerente. Nossos dois olhos enxergam muito mais do que a gente supõe ser real. Nossos olhos nos tiram da superfície plana e nos fornece algo de profundidade, de forma, de relevo.
No reflexo das vidraças, alguma parte de mim sempre aparecia. Não consegui me esconder por inteiro, meus olhos me enganavam. Decidi registrar essa tentativa frustrada de não aparecer, de ver meu reflexo como eu me vejo.

Portava comigo uma câmera Olympus Pen-EE, com um filme PB Double-X, ISO 200, vencido. Através do visor posso ter apenas uma noção do que será registrado na película. O que eu miro não é o que a câmera capta. Eu sempre via algum reflexo de mim na vidraça, uma parte do corpo cuja luz não escapava aos meus olhos. A câmera, com sua lente única, apenas compreende o sentido de planificar a luz sob o mesmo ângulo. Ela não capta a luz como meus olhos. A fotografia me forneceu o momento de desaparecimento, de não me enxergar virtualmente, de não me enxergar mesmo com ajuda do espelho. Era pra registrar a frustração de enxergar uma imagem sempre virtual, e a câmera possibilitou que eu enxergasse o sujeito que se deteve alguns minutos para registrar o momento. Me encontrei na ausência.

Eu sou real, estou aqui, não me vejo. Todos me veem de alguma forma, sempre diferente do que eu imagino. Nesta fotografia, apenas o eu real, fotógrafo-artista-andarilho-flaneur-amador sem saber o que faz da vida, existe. Ou existiu naquele momento passado analógico.

La Idea, 2023

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um gravador, que faz gravuras; um bicicleteiro que anda de bicicleta; um rugbr que joga rugby.

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