Lapsos de Tempo #10

Movimento

-Você diz estar cansado pra sair com a gente, mas vai embora a pé até a sua casa a essa hora da noite? Meio contraditório isso, não? Ou você está cansado, ou não está…!

-O cansaço não é algo que me impeça de caminhar. Desde jovem eu aprendi que minhas pernas poderiam me levar onde quisesse nesta cidade. Quando estava na quinta ou sexta série, passei a ir e voltar da escola caminhando, atravessando uns 4 ou 5 bairros. Comecei a fazer isso para economizar vale-transporte e poder gastar com alguma outra coisa. A cidade ficou pequena para mim, pois tomei gosto pelas calçadas, pelas ruas e por esta vida que surge e se movimenta em meio ao concreto cinza e rígido. Passei a observar cada elemento que surgia no meu trajeto. Pixações novas e antigas, portas, portões, janelas, lojas, graffitis, pequenos fragmentos de qualquer coisa que eu achava no chão. Tudo era motivo preu seguir me movimentando e observando. Quando eu estava no ensino médio arrumei um trabalho de office-boy. Minha tarefa consistia em colocar vários envelopes com boletos na minha mochila jeans cheia de patches punks e entregar para clientes da empresa em vários pontos da cidade. Eu criava uma rota analisando o mapa da cidade que vinha nas primeiras páginas do catálogo telefônico, decorava cada esquina que eu deveria virar, e para onde seguir depois de entregar algum envelope. De noite, eu ia para o colégio escutando walkman enquanto observava cada elemento que me chamava atenção no caminho. Não, eu nunca fui um bom estudante. Tive minha educação básica completamente negligenciada, mas caminhar sempre foi algo que me fazia aprender sobre o espaço em que eu me situava. Eu era um observador de tudo que acontecia no trajeto, de qualquer coisa que fugisse do padrão e atravessasse meu olhar. Você começa a perceber a rotina de cada pessoa que cruza o seu caminho, e acha estranho se em algum dia a pessoa não passou por ali, naquela hora. Você passa a enxergar as atividades das pessoas, você sabe em qual velocidade elas caminham, e começa a se perguntar para onde estão indo. Você sabe quando um outdoor foi trocado, quando a lixeira é esvaziada ou quando a rua será varrida. Você conhece os buracos e imperfeições, e comemora quando a passagem de pedestre foi consertada. Você olha o número das casas, percebe sua diversidade estética, e acha ruim quando a placa de número fica em algum escondido. Você presencia os locais de dormitório das pessoas em situação de rua, como arrumam aquele espaço público em um pequeno local aconchegante, e se questiona o que pode ter acontecido quando elas não mais estão ali… Minha vida sempre foi movimentada pelo ato de caminhar. Vieram outros trabalhos, cursinhos pré-vestibular, viagens, eventos punks em diferentes locais da cidade e da região metropolitana. Lá estava eu indo a pé, sozinho ou acompanhado. Caminhar não me traz cansaço como um trabalho repetitivo e exaustivo, ou uma roda de conversa no bar onde dez pessoas gritam para se fazerem ouvidas em meio à tanto estímulo sonoro, visual e alcoólico. Talvez algum dia você me compreenda. Caminhar, para mim, não é uma atividade física, não é algo que me desgasta, não é algo que eu faça apenas quando estou descansado, não é algo que eu faça para emagrecer, ser saudável ou manter a forma. Caminhar é um modo de locomoção ativa, que faz com que eu não dependa de recursos financeiros, aplicativos, tecnologias digitais. Caminhar é vivenciar outras formas de sentir a pulsão da cidade, de descobrir trajetos e curiosidades, de observar elementos que compõem o espaço, de refletir sobre o quanto a cidade odeia seus habitantes, de deixar que algo diferente te faça escapar da normalidade e da apatia. Caminhar, para mim, é descansar enquanto consigo organizar meus pensamentos durante o trajeto. Quando eu caminho, eu sinto que eu empurro o mundo para trás enquanto me lanço adiante em cada passada. É isso que me move. Talvez você nunca entenda…

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW


Boletim de Ocorrência

Fui roubado, furtado, expropriado, larapiado, escamoteado, surrupiado, usurpado e assaltado das piores formas possíveis. Levaram meus desejos, meus sonhos, minhas vontades, minha disposição, meu apetite, meus anseios, meus interesses, minhas aspirações, ambições, pretensões e intenções. Já não me resta nada além de desespero, frustração, rancor, mágoas, decepções, desencantos, desilusões, desgostos, tristezas, fracassos, derrotas e descontentamentos. Queria muito saber se vocês podem me ajudar, me auxiliar, me assistir, me socorrer, acolher, amparar e contribuir para resolver este meu grande, gigante, imenso, enorme, colossal, extenso, vasto, profundo e complexo problema, adversidade, dificuldade, sufoco, imbróglio, revés, transtornante contratempo trágico.
Como farei para retomar minha vida nesta imensidão louca e insana que é viver sem o mínimo possível? Eu quero de volta minha esperança.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW

Publicado por

Avatar de Desconhecido

La Idea

um gravador, que faz gravuras; um bicicleteiro que anda de bicicleta; um rugbr que joga rugby.

Um comentário sobre “Lapsos de Tempo #10”

Deixe um comentário