Lapsos de Tempo #11

Anti-horário

O pogo sempre gira para um determinado lado. Pogo é o equivalente ao mosh, ao bate-cabeça, à muvuca que ocorre nas gigs punks ao iniciar uma música. Funciona de uma maneira simples: o som começa e você inicia a girar em torno do centro do público enquanto faz movimentos [des]coordenados entre pés, mãos, cabeça e tronco. Cada qual a sua maneira, os movimentos diferem entre as pessoas participantes, mas aqui ocorrem algumas situações que são comuns à todxs.
Estas situações dizem respeitos à regras não escritas, mas que são internalizadas pelxs dançarinxs: 1) se alguém cair no chão, proteja a pessoa e a ajude a levantar; 2) o ritmo da música sempre ditará a velocidade da roda que gira; e o mais importante: 3) o giro é sempre anti-horário.
Não adianta tentar mudar o sentido do giro, não funciona. Mudar o giro é algo que é tentado desde os anos 80, sempre sem sucesso.
Nos anos 2010 ocorreu a Primeira Reunião de Pogadores Amadores do litoral sul da Praia de Menezes. Nesta reunião as pessoas debateram a mudança do que ficou conhecido como Paradigma do Sentido. A proposta não é mudar a direção do pogo (circular sempre), mas de discutir a possibilidade da alteração do sentido (horário/anti-horário). O grupo a favor da mudança argumenta que o tradicionalismo deveria sofrer um rompimento, pois o ideal punk sugere sempre uma afronta à ordem estabelecida. E isso, por si só, já deveria ser uma razão sem contestação.
O outro grupo, ao contrário, argumentou que o punk é anti-sistema o tempo todo, e que ir contra o padrão estabelecido pelo giro do relógio é o ponto de partida para se pensar o sentido do giro. A questão, a meu ver, é que ambos grupos estavam discutindo qual deveria ser o maior rompimento com o sistema. Romper com o padrão ou romper com o rompimento do padrão?
Nunca houve um consenso sobre isso. A Reunião acabou com Punkadaria, banda atuante na época, e o pogo foi sentido anti-horário, sem confusões, conflitos ou incidentes.
Nunca houve outra Reunião. O Paradigma do Sentido ficou completamente esvaziado.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

Vícios

Durante muito tempo eu fui um viciado. Existia algo que me prendia forte, não me deixava escapar, me segurava com todas as forças. Eu não dormia, nem comia, não tinha interações que não fossem para sanar meu desejo mais profundo e incontrolável.
Tudo começou com vídeos de toboáguas. Eu seguia vários canais do YouTube de pessoas que filmavam suas descidas. Eram descidas longas, sinuosas, molhadas, com vistas deslumbrantes. O protagonista da descida apoiava a câmera na cabeça ou no peito. Possuía shorts com sua marca e apoio para os pés para que não escorregasse ao subir as escadas que davam acesso ao início da queda.
Logo, eu passei a assistir os milhares de vídeos sobre o Tsunami que ocorreu em 2011, na cidade de Fukushima, Japão. Eram vídeos impressionantes de desastres, caos, vidas e histórias sendo levadas pela correnteza. São imagens incríveis e impressionantes, registradas com a melhor tecnologia da época. Destruição que me deixava vidrado por horas.
Um tempo depois, parti para a visão da cabine do piloto de composições como metrôs, trens, bondes e VLT´s. Fora meses e meses assistindo belas paisagens rurais e urbanas, trilhos, neves, túneis, estações, acidentes e climas diferentes. Vi de tudo em tempo real, inclusive viagens longas interestaduais.
Daí eu passei para a fase Frisbee Golf. Era um esporte estranho, que misturava a chatice do golf com a diversão do frisbee. Pessoas muito habilidosas, sem porte de atleta, lançavam o frisbee em meio à arvores, arbustos e lagos, e que traçava caminhos sinuosos, longos, e acertavam em cheio algo que parece uma lixeira de correntinhas no meio do nada. Assisti a vários torneios sem entender muito bem como a pessoa sabia onde estava o alvo a ser acertado. Nunca fez sentido para mim.
A fase mais perigosa surgiu quando eu me viciei em vídeos de motoristas fazendo merdas com seus carros e causando batidas violentíssimas. Pessoas inconsequentes causando a destruição por motivos egoístas e fúteis. Carros que acessavam a contra mão em alta velocidade, acertavam outros dois, atravessavam o baú de caminhões e explodiam em algum muro dando sopa. Foi terrível.
Decidi ir por um caminho mais leve. Passei a assistir ciclistas urbanos em suas bicicletas fixas andando perigosamente pelas ruas de diferentes grandes cidades mundiais. Essas pessoas aterrorizavam pedestres distraídos, faziam ultrapassagens perigosas em corredores estreitos, freiavam com skidz que eu tenho minha dúvida sobre sua eficácia. Foram vários cenários urbanos que faziam parte desta insanidade adrenalinada.
Logo após esta fase, surgiu em minha vida o Calcio Storico Fiorentino, um jogo tradicionalíssimo em Florença, na Itália, que, pelo seu grau de brutalidade, só pode ser jogado uma única vez ao ano. Acompanhei os torneios de 2021, 2022 e 2023, em seguida, e me impressiona o quanto essas pessoas conseguem se manter de pé. Demorei algumas partidas até entender as regras do jogo, e depois de tanto tempo, ainda acho que talvez apenas compreendo o objetivo.
O vulcão ativo das Ilhas Canárias foi algo que me manteve desperto e paralisado o dia inteiro. Eu assistia aos canais de transmissão ao vivo. Vi a lava descendo calmamente e destruindo lares, cidades, vegetações, ecossistemas, não conseguia parar de assistir.
Depois, veio a onda Bo-taoshi. Um jogo japonês em que duas equipes brigam para derrubar o mastro uma da outra. Intenso, rápido, bruto. Assisti a várias partidas entre diferentes equipes. Nunca vi pessoas se mobilizarem tanto por uma partida tão curta. Você acaba começando a torcer por alguma equipe, ou torce pelas duas, afinal, o que vale é assistir a um belo espetáculo.
Por último, passei a assistir vídeos de uma empresa dos Estados Unidos que limpava tapetes e carpetes imundos. É prazeroso ver todo o processo, rodo, vassoura, limpadora elétrica, escova, jato de pressão. Um verdadeiro deleite para os olhos.
Hoje eu consegui sair deste vício.
No mais, passo meus dias junto com meus amigos assistindo patos interagindo entre si na lagoa do Parque. Você já percebeu que o bico dos patos parecem lobos?

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

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La Idea

um gravador, que faz gravuras; um bicicleteiro que anda de bicicleta; um rugbr que joga rugby.

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