Sempre conheça seus heróis

Ok, eu aceito, “heróis” foi um péssima palavra. Acho que o conceito de herói talvez seja algo ainda fora do que é palpável. No entanto, ignore este título, foi uma brincadeira com “never meet your heroes”, tão proferido em filmes, séries, livros, blogs, etc. A expressão sugere que frequentemente rolam decepções quando conhecemos de perto pessoas que admiramos, ou que foram/são importantes para nós de alguma forma. A gente idealiza algo que elas, definitivamente, podem não ser.
A ilusão de conhecer alguém de extrema importância nas nossas vidas pode acabar com a fantasia que temos sobre quem elas realmente são.

Em 2025 aconteceu algo que eu achei que talvez nunca aconteceria. Mas primeiro, preciso contar uma pequena historinha. Lá no início dos anos 2000, um jovem belorizontino, que devia ter seus 13 anos de idade, conheceu o punk, o hardcore, o anarquismo, tudo isso por causa de um vizinho. Esse vizinho morava com outros vizinhos no prédio ao lado. O primeiro vizinho emprestou um cd do Gritando HC, o outro vizinho andava de skate e o outro soltava papagaio com uma camisa do Sepultura. Isso tudo foi minha porta de entrada para drogas mais pesadas. Eu sempre fui muito ruim no skate, então não prossegui muito com a atividade. Sepultura eu segui curtindo, e até curti Soulfly por um tempo, mas depois ficou chato demais pra manter minha atenção. Mas Gritando HC, que hoje eu não consigo escutar, me abriu as portas para um universo de bandas que me empolgavam muito, me faziam querer viver a pleno.
Foi em um evento em 2002 que eu conheci Solstício, e outras bandas que eu escuto bastante até hoje. Das bandas deste evento, também escuto até hoje Confronto e Questions. Deceivers tinha um som que não me chamava muita atenção, talvez eu precise escutar novamente, e Calibre 12 já teve seu auge nos meus ouvidos, mas hoje praticamente não escuto. DFC segue na ativa também, ainda que eu não acompanhe muito, tive a oportunidade de conhecer o atual baterista na Feira Motim em Brasília que rolou em novembro deste ano. Pudemos conversar brevemente, ele comprou uma gravura minha, conversamos sobre shows, indiquei alguns coletivos que organizam eventos em BH, foi bem massa. Lembro especificamente de um show deles na saudosa Feira Mix, a última, que rolou no aeroporto Carlos Prates. Foi um showzaço.
Mas Solstício foi a banda que me ganhou naquele dia. Um rapcore, pesado, intrigante, lento quando precisa ser, rápido para animar os fôlegos. O jovem ‘La Idea‘ não fazia a mínima ideia de que essa seria uma de suas bandas nacionais favoritas. Um vocal inconfundível, uma voz proferindo letras que falavam de política, de genocídio indígena, de gênero, de história, de viver dentro do sistema capitalista, mesmo querendo estar à margem dele. Era insano.

Segui a banda por muito tempo, ainda que tenha frequentado poucas apresentações. Mas ficava de olhos nos lançamentos dos discos e sempre escutava cada música nova com muita atenção. Eu adorava as letras e a energia que o vocalista, Marcelo, berrava nas gravações. Nos anos de 2005, 2006, 2007, eu praticamente não tirava minha camisa do Solstício. Quer dizer, eu revezava bastante com a camisa do Carahter, presente que ganhei do Renatão, um dos vocalistas, antes da tour europeia. Carahter foi a banda local que eu mais curti na época. Também curtia Prole.Idem, Reffer, Distúrbio Sub-Humano… BH foi um celeiro de boas bandas.
Solstício teve vários hiatos, ia e voltava. Numa destas voltas gravaram um disco mais melódico, com letras mais profundas, inclusive. Apesar de diferente, segui curtindo bastante. Mais tarde, outras bandas como Norte Cartel e Las Calles apareciam na minha vida, com o mesmo vocal imprimindo a mesma energia nas músicas. A voz do Marcelo era inconfundível. Insana.

Por volta de 2002, 2003, haviam sites em que baixávamos músicas mp3 de bandas de punk e hardcore da época. Zona Punk, fffuck the system, e outros, eram plataformas de notícias sobre o underground. Haviam seções onde haviam links de músicas para baixarmos. Encontrávamos coisas que no Napster, imesh, kazaa, etc. não encontrávamos. Foi assim que conheci Colligere. Lá eu baixei “Consumir o tempo” e “Vertigem”. Foi amor à primeira vista. Eu escutava tanto, que eu cantarolava Colligere sempre que saía, e foi numa destas cantarolagens que eu conheci a Brisa. Nós cantávamos Consumir o Tempo a plenos pulmões nas madrugadas de BH. Ela seguiu carreira na música e tem um reconhecimento muito daora. Fico muito feliz por isto.

Colligere tem uma pegada mais emo, pesado e profundo, mas com uma energia insana. Você escuta e dá vontade de movimentar-se. Eu escutava e queria escutar mais, e aprender mais sobre mim. Eu, um jovem que foi mal alfabetizado, tinha dificuldades em entender muitas coisas e as letras do Colligere me faziam pensar bastante. Foi isso que me ajudou em vários momento difíceis, em ler as letras e reler nas entrelinhas delas. O mais impressionante é que eu lia livros, e encontrava trechos do livro e citações embutidas em várias letras. Isso me fez ter vontade de ler mais e mais, para entender do que aquelas letras falavam, quais eram as fontes daquelas palavras gritadas pelo vocalista Rodrigo.
Acho que Colligere foi a principal responsável para que eu possa tentar compreender quem eu sou no mundo, muito além da estética punk que utilizava. Escutar Solstício e Colligere me faziam querer viver, lutar, aprender, compartilhar, pensar, refletir. Questionar várias coisas que eu achava errado, e principalmente em como praticar o respeito, a coletividade, viver de forma plena e política.

Digo isto tudo porque 20 anos depois tive a oportunidade de conhecer ambos vocalistas.
Em março de 2025 eu fui participar de uma feira no Rio de Janeiro. Marcelo e eu tínhamos contato via Instagram e ele foi de Cabo Frio pro Rio para a feira. Lá trocamos ideia, materiais, tiramos fotos. Foi um encontro muito daora, pude falar sobre a importância que Solstício teve na minha juventude, conversamos sobre as letras, sobre arte. Ele me disse que não aguenta mais gritar, e tem um projeto novo, mais pós-punk, o Grita Nozkto. Encontro rápido, mas muito significativo para mim.
Em agosto de 2025, eu estava em uma tour de lançamento de livro com um amigo, e na nossa passagem por Curitiba, nos hospedamos na casa do Rodrigo. Sim, o tal Rodrigo vocalista do Colligere. Conversamos sobre o movimento, sobre política, perguntei várias coisas sobre as letras que foram escritas há mais de 20 anos, hahaha, pegando pesado na memória dele. As letras do Colligere me fizeram não surtar, pois era através delas que eu buscava sentido. Foi também por causa de Colligere que meu projeto de mestrado passou a existir. A música “O poder do pensamento negativo” me deu a faísca que precisava pra pensar o que eu queria pesquisar. Foi meu ponto de partida. Ele me deu dicas de músicas, de livros, me levou num lugar de rango vegano que foi muito daora.

Rodrigo e Marcelo foram pessoas importantes na minha formação. Talvez eles nunca soubessem disso, mas sou testemunha do que o punk, o hardcore, e as pessoas que praticam e pensam esse submundo podem acrescentar na formação das pessoas.
Nós trocamos os desejos por aceitação
Pessoas têm o seu papel – você aprende o seu
Te ensinam o destino, mas não de onde provém
Talvez isso explique a existência de heróis
Pessoas como nunca vamos ser – livres e fortes

Cito Colligere para terminar este relato, pois eles não foram heróis para mim. São pessoas comuns, vivendo suas vidas, com seus defeitos e qualidades, com seus humores, pensamentos, incoerências. Ao conhecê-los, senti que estão muito próximos à mim, às pessoas que estão ao meu redor. Talvez nunca sejamos livres e fortes, mas nunca iremos aceitar o papel que nos é dado. Não seguiremos apáticos. As artes (sim, todas elas) existem para que nós possamos produzir nosso próprio caminho. E a voz destas duas pessoas me ajudaram muito a construir o meu. Só tenho a agradecer por estas oportunidades.
Conheçam seus “heróis” e que vivam os encontros!!

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La Idea

um gravador, que faz gravuras; um bicicleteiro que anda de bicicleta; um rugbr que joga rugby.

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