Clyar abriu os olhos e percebeu uma multidão a seu redor. Todas as pessoas encaravam aquele ser recém vindo ao mundo. Não entendia muito bem o que estava acontecendo. Tentou se levantar, mas não tinha certeza de como fazer isto. Seu cérebro ainda não tinha entendido como enviar informações aos membros. Percebeu sua locomoção limitada e entendeu que teria que desenvolver essa noção de corpo aos poucos.
– Porque há tantas pessoas em volta me observando?
A pergunta martelava os pensamentos de Clyar, que conseguia se lembrar vagamente do que acontecera. Sua memória, apesar das falhas e lacunas, trazia fogo, calor, um sentimento muito forte, impossível de ser descrito em palavras.
Dor, agonia, ansiedade, vontade de mudar. Tudo isso era sentido por Clyar, que conseguia descrever perfeitamente enquanto via as pessoas se aproximarem. As pessoas vinham e postavam suas mãos de fuligem em sua cabeça, balbuciavam algo de difícil compreensão, viravam as costas e iam embora para que outras pessoas fizessem o mesmo.
Esse processo tardou alguns dias para que pudesse terminar, até que todas as pessoas repetissem o gesto. Nesse tempo, Clyar tentava se lembrar do que acontecera antes, para compreender a razão de toda aquela comoção social. Conseguiu mexer as articulações, mas ainda não conseguia ficar de pé. Não haviam forças e nem coordenação para tal.
Clyar se lembrou de que estava subindo uma escada de fogo, suas mãos se queimavam a cada degrau. Tal constatação era comprovada pelas feridas de queimaduras em suas palmas. Sentia medo, sentia dor, não entendia porque se lembrava de momentos tão traumáticos. Na sua lembrança a escada não tinha um fim, pelo menos não enxergava para onde iria.
A base da escada era em um lugar limpo, colorido, fresco. Tudo parecia perfeito demais. Clyar se lembra das pessoas sorrirem. Elas possuem casas, trabalhos, salários, televisão, bares, carros, família, todo tipo de alimentação. Mas algo não estava certo. Clyar desconfiava que aquilo não era real.
Se lembrou de encontrar uma escada e começar a subir. A escada não tinha fim. Seus degraus pegavam fogo, e a cada metro alcançado a dificuldade aumentava.
Após semanas de intenso esforço, sua energia estava por terminar. Pensou em desistir e retornar para a base da escada, viver o trajeto que os deuses escolheram, e seguir sem maiores problemas. Mas isso se tornava cada minuto mais impossível, a queda seria demasiada alta.
Clyar tinha a certeza de que toda aquela apatia da vida não era a única possibilidade.
Uma grande explosão surgiu de repente, destruindo todo seu corpo, eliminando toda e qualquer matéria presente. Era o fim da escada e, por conseguinte, da subida.
Clyar transpassou um limite que ninguém jamais havia ousado ultrapassar.
A morte do corpo enquanto matéria revelou algo que até então era completamente desconhecido para Clyar.
Ao abrir os olhos novamente, finalmente compreendeu o que se passava à sua frente. Pessoas livres celebravam a ousadia de alguém que ousou cursar um caminho distinto. Desafiou os trajetos divinos e pagou caro pela escolha. Pagaram caro.
Mas valeu a pena.
Voltou a memória, voltaram os movimentos. Tudo era novidade, vivenciado sem precedentes.
Uma sensação indescritível tomou conta de Clyar.
Foi a primeira vez que sentiu a liberdade.
Categoria: Literotubro
2024 – #29 – Anarquia
O povoado de Afyuha tinha seus habitantes compostos por dissidentes de grandes centros urbanos após o período de destruição total. Todos os grandes centros urbanos foram destruídos por conta de uma revolta que durou algumas centenas de anos, e que culminou na matança de vários líderes políticos e personalidades globais. Muita gente morreu na revolta, cabeças foram cortadas, e o impacto de destruição tornou as cidades completamente inabitáveis. Com a falta de recursos, dos mais diversos tipos, ninguém mais ousou estar no papel de governante, e vários grupos populacionais migraram para outras regiões para reconstruírem suas vidas.
Afyuha foi uma dessas repovoações, começou como um assentamento em uma região semi-árida, e logo seus moradores começaram um processo coletivo de gestão e infraestrutura do local, respeitando o que já existia no bioma. Conseguiram captar água do lençol freático com um sistema de bombas de bambu, e utilizaram todo o sistema de gotejamento para nunca faltar água para as plantações e hortas que serviam de subsistência e escambo com outras comunidades.
A medida que Afyuha crescia, todo o projeto era adaptado, seguindo normas básicas de coletividade e respeito à natureza aos indivíduos. Todas as decisões eram tomadas pelos grupos familiares que ali viviam, e todo trabalho era realizado de forma coletiva. Afyuha crescia em um formato espiralar, de forma que não existia centro, mas caminhos por onde quer que fosse.
Afyuhanes se orgulham muito de viver neste local, ainda que tenham um pouco de dificuldades para resolver conflitos entre seus habitantes. Independente de tudo, o povoado conseguiu prosperar, e o modelo têm sido utilizado de referência em outras repovoações próximas.
Ninguém queria outra guerra.
2024 – #28 – Lei
Juston, um governante muito querido, certa vez teve a brilhante ideia de criar uma assembleia popular unificada. Ele reuniu todas as pessoas que viviam em seu país, um enorme território de oito milhões de quilômetros quadrados, e escutou atentamente cada sujeito que se apresentava. Ele dividiu a escuta em duas partes: a primeira ele escutava todo o histórico de vida daquela pessoa. A segunda ele registrava todas as sugestões das pessoas de como melhorar a vida naquele país.
Depois de passar vários anos escutando todos os habitantes, Juston compilou um livro que continha sugestões e de como deveríamos viver, baseados em um senso comum de respostas que se repetiam. Ele tinha a certeza de que se a maioria concordava que o que estava no livro fossem coisas positivas, todos prosperariam. As populações passaram a seguir tudo o que estava escrito no livro de Juston.
Pouco tempo se passou e vários conflitos começaram em diferentes partes do território. As motivações eram várias, infinitas, difusas. Juston achou que o que potencialmente é bom para a maior parte das pessoas, seria o melhor para todas os habitantes. Queria ser um bom governante, fazer algo realmente eficaz para o país.
Juston finalmente entendeu que unificar o senso comum ignorava todas as particularidades da população, da geografia e da história de cada contexto regional.
Juston fracassou dentro dos limites em que ele podia atuar.
#literotubro #toranjanews
2024 – #27 – Ordem
Pela primeira vez na história do grande país Nugas, uma manifestação foi composta por todos os setores da sociedade civil. Muitas centenas de artistas se apresentaram nas mais diversas expressões artísticas, milhões de pessoas ocuparam as ruas de 8.967 cidades levantando as mais diversas bandeiras. Foi uma unificação nunca vista antes. A quantidade e multiplicidade de cartazes e frases de efeito deram o tom de insatisfação da maior parte da população contra o atual governo unificado. A manifestação durou várias semanas, aglomerou todos os tipos de pessoas, das mais diversas castas sociais e econômicas. Foi uma festança magnífica, digna de entrar para todos os livros de história. Várias fotos e vídeos registraram o momento único na história.
Os governantes de Nugas, por sua vez, seguiram seus jantares se deliciando com o banquete que era servido no Palácio do Governo.
2024 – #26 – Memória
Doren passava seus dias pesquisando toda e qualquer informação que pudesse. Percorria montanhas, anotava tudo o que via. Escutava as pessoas falando, escrevia tudo em seu grande caderno. Percorria as selvas, seus habitantes, as cidades, povoados, vilarejos, caminhava e pedalava por estreitos, vielas, becos, navegava em riachos, ribeiros, rios, lagos. Doren registrava tudo o que conseguisse. Desenvolveu habilidades de observar e escutar, memorizar tudo da melhor forma possível, desenhava, escrevia, refletia. Fazia conexões com vários outros fatos que ocorriam em diferentes lugares. Nada podia deixar de ser registrado. Pelo bem do futuro.
Viver era um eterno registro do vivido.
2024 – #25 – Ilusão
Através de um aparelho eu vejo números. Hoje tudo pode ser quantificado. As distâncias, as economias, as amizades. Seu trabalho, seus estudos, seu lazer, tudo que você faz ou pensa em fazer é quantificado de alguma forma. São dados que estamos seguindo cegamente, pensando em chegar a algum lugar. Nada disto é vida.
Vemos um plano difuso, mas dá muita preguiça percorrê-lo com nossos próprios pés. São muitos obstáculos. Ver números é mais confortante.
2024 – #24 – Fator
Teoria e prática precisam sempre caminhar lado a lado. As vezes se distanciam, as vezes se juntam, mas elas não conseguem se separar. Elas constituem parte do leque, que também chamamos processo, de possibilidades para alcançar algo que se almeja. Eles possuem uma certa alternância a depender do tempo e da disponibilidade de recursos. Ora a teoria está mais forte, ora é a prática. Elas se contradizem todo o tempo, se refutam e concordam entre si. São elementos indissociáveis a qualquer modo de vida. Tudo que fazemos segue esta lógica, ainda que não nomeemos desta mesma maneira. Quando tentamos separar um do outro, tudo perde o significado. A questão não é saber o que vem primeiro ou que vem depois. É saber o que mais a gente precisa em determinado momento, em alguma situação. Alternância é movimento.
2024 – #23 – Vigilância
Na rua de cima há uma casa sem telhados e sem janelas, somente paredes. As portas fechadas possuem aberturas de vidro, sem vidros. Todo o espaço está tomado por mato. Aí complicaria muito a situação. Virando a esquina há outra casa tomada por matos, mas vários anúncios de vende-se e aluga-se me faz pensar se alguém realmente quer viver neste im´óvel. As paredes estão desgastadas, janelas e portas enferrujadas, difícil ver o que tem dentro. Caminhando mais um pouco há outra casa, velha, de arquitetura neocolonial. Suas janelas e portas estão tampadas por blocos de tijolo formando um grande paredão. As janelas do segundo andar seguem o mesmo estilo de tijolos que tampam o que poderia entrar de luz e ar. Vê-se mofo e umidade escapando por algumas frestas, além de uma vegetação parasitária que dá as caras por várias frestas e fissuras nas paredes. Fios de arame farpado decoram a fachada da casa. Descendo a rua em diagonal há uma casa também tomada por matos e entulhos, oriundos de vários processos de destruição. O teto desabou levando consigo a estrutura de sustentação do forro e do assoalho, revelando mais espaços vazios e abandonados. Aparentemente houve uma enchente, pois há marcas de água barrenta até uma certa altura da parede. Também há restos de móveis largados onde provavelmente seria um quarto de criança. Descendo mais um pouco há uma casinha pequena, o telhado está levemente danificado, com algumas telhas faltando e parte da sustentação está comprometida. Entro, verifico as paredes que estão de pé, com socos e empurrões verifico o estado das colunas de sustentação. Avalio as condições do telhado de maneira pormenorizada. Também observo a quantidade de matos, entulhos e o quanto de energia eu teria que gastar arrumando tudo isto.
Achei minha próxima casa.
2024 – #22 – Manejo
Gire a alavanca para o lado direito segurando com a mão esquerda. Puxe o pino principal e afrouxe o pino auxiliar. Com o peso do ombro aperte o cabo e ajeite-o próximo da costela, mas não em cima. Gire o corpo 35° para que a peça principal seja encaixada na ponta. Puxe o elástico contra o corpo e ajeite dentro do espaço reservado para ele. Carregue com as bombinhas pelo compartimento superior, depois ajeite o objeto no tripé. Fique deitado, com um dos braços apoiado no chão e outro segurando a alavanca do elástico. Pelo orifício superior com lentes você consegue verificar se está tudo correto. A lente reflete ângulo de despejo, engrenagem firme, equilíbrio dos vetores horizontais e diagonais. Cuidado com cabelos e óculos, pois podem atrapalhar o bom funcionamento. Segure a respiração quando estiver pronto. O gatilho estará na lateral direita, preso ao suporte mecânico anterior. Uso único. Use com sabedoria e moderação.
2024 – #21 – Progresso
Anmol governava um pequeno povoado na região dos mares de morros da Península de Wayooth. O povoado possuía uma limitação que estava na ordem da arrecadação de impostos, pois não conseguia desenvolver-se por falta de recursos financeiros. Anmol pegou empréstimos bilionários e começou a transformar todos os morros em terras planas, zoneando em regiões de residências de 3 e 4 pavimentos. Estas residências eram destinadas a receber, principalmente, famílias imigrantes que se refugiavam no local e que se qualificavam para receberem um aporte financeiro do Estado pra se instalarem no local. O sucesso foi tamanho, que a cidade cresceu e se desenvolveu a ponto de saturar a Península de pessoas, veículos, resíduos industriais e domésticos, poluição e áreas impermeáveis. A situação ficou insustentável, gerando um êxodo de pessoas para outros locais, uma escassez de serviços e mão de obra, fazendo com que parte da agora cidade de Wayooth se tornasse completamente abandonada e em ruínas.
O Estado não deu conta de seguir com os aportes financeiros, nem com a manutenção de uma cidade que se desenvolvia e crescia desordenadamente.
Todo o bioma local foi destruído.
Wayooth se tornou um símbolo do progresso e do abandono de forma muito veloz.
Anmol não vive mais em Wayooth.
2024 – #20 – Terreno
Freihsh é um povoado semi-nômade situado na planície costeira de Rash. Suas casas são construídas de forma que um dia, seguramente, serão destruídas pelo tempo. Os habitantes do povoado são relativamente desapegados de bens materiais, pois possuem uma noção de que os objetos não precisam durar para sempre. Isso movimenta a criatividade e a produção e pesquisa no/do bioma local. As famílias possuem terrenos, previamente demarcados, e sempre estão construindo novos lugares para residência enquanto entendem a deterioração natural da atual. Os lotes são revezados entre residências a serem construídas, residências em deterioração, horticultura e plantações diversas, recuperação da mata natural e áreas coletivas, que podem serem utilizadas de forma coletiva para lazer e vida comum. Esta maneira forneceu uma maneira prática de nunca esgotar o solo, além de incentivar a pesquisa de novos materiais e formas de construir que não seja tão agressiva.
2024 – #19 – Artifício
Dihn passava os dias nas ruas da cidade de Roskom aplicando pequenos golpes na elite local. Como muita astúcia desenvolveu habilidades mágicas e ilusionistas, o que ajudaram a ter mãos e movimentos sutis o suficiente para que seus furtos passassem despercebidos. Era muito difícil compreender como fazia, ou mesmo prever seus movimentos. Rápido, ágil e com muita destreza desviava de pessoas, obstáculos e câmeras, e se especializou em furtos de objetos de valor. Furtava de ricos e vendia para eles mesmos através de um mercado paralelo de itens precioso, que circulavam apenas em uma única classe social. Dihn tinha a certeza de que cada uma destas pessoas eram lobos famintos por status e ansiavam fazer de tudo para derrubar outros lobos. Dihn aproveitava a fragilidade da noção de poder que tinham para que com o tempo destruíssem a si mesmos.
2024 – #18 – Luz
Um sistema de comunicação foi desenvolvido entre as comunidades de Sartin e de Tlaxup, na cadeia montanhosa de Concatenipo. Sartin está situada no topo plano do pico de Granem e Tlaxup foi desenvolvida no planalto de Gripome, a 150km aproximadamente de distância entre as comunidades. Entre elas alguns vales e mares do morros, com vegetação densa em algumas partes, matas ciliares e cursos de rios. Para as cidades se entenderem sem a necessidade da mobilidade dificultada, códigos luminosos e coloridos foram combinados para que o diálogo pudesse ser feito. Um sistema de coloração por minério e água é utilizado em canais similares a fibras óticas construídos com canaletas de bambu e cipó. A intensidade da luz, a coloração e o tempo em que fica acesa funciona para representar letras, sílabas e palavras. A recepção do sinal luminoso é feita através de rochas esculpidas em formato de concha, polidas para iluminarem bem e voltadas para a saída de luz da canaleta da outra comunidade. Assim, as duas comunidades se ajudam sempre que necessitam de algo em que a outra possa auxiliar.
2024 – #17 – Harmonia
Blates é uma comunidade construída a partir da noção da pesquisa e autossuficiência nos trópicos. Ela é conformada por um conjunto de casas baixas, intercaladas por jardins, hortas, pomares e vegetações ciliares. As casas, residenciais em sua maior parte, possuem grandes aberturas para entrada de luz, telhados com vegetação para proteção do calor e sistema de coleta e reaproveitamento de água através de canos, filtragem, decantação e reutilização para irrigação em tempos de clima seco e frio. As famílias semeiam e colhem coisas distintas para promover trocas sem a utilização de moedas. Todo o trabalho de construção e desenvolvimento é feito a partir de regras preexistentes e acordadas pela comunidade. O conhecimento é compartilhado entre todos para que seu desenvolvimento não seja comprometido a longo prazo.
2024 – #16 – Distração
Dobro a esquina durante o início da noite, passo pelo portão principal, sigo próximo à cerca agachado, buscando pontos de escuridão. Olho ao redor e memorizo tudo o que se passa. Aguardo toda e qualquer movimentação espontânea. Apuro meus ouvidos, aguço meu olhar. Caminho por entre arbustos e árvores, subo pequenos morros, caminho ziguezagueando, ninguém pode prever meus movimentos. Consigo um local para me deitar, com uma boa visão do evento. Árvores e arbustos me protegem. Fico em silêncio observando. Espero o momento certo.
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Hoje é um grande dia, eu serei condecorado por bravura de guerra devido às minhas destrezas na batalha campal. Comandei um pelotão de 70 homens, que defenderam com a vida a minha integridade física e demonstraram seu amor ao rei. Hoje eu desfilarei pelo vilarejo com todos os símbolos desta grande vitória do Reino. Ninguém pode me deter.
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“Fhhhlslslshhww” foi o som da flecha atravessando a cabeça do Comandante Geral dos Guardas do Reino de Angostu.
#literotubro #toranjanews
2024 – #15 – Medo
Sekram é uma comunidade instalada e desenvolvida em um terreno insular ao sul do continente. Um lugar frio, com densa corrente de ar e pouco explorado por humanos devido à seu terreno muito acidentado e de difícil acesso. Apesar das suas particularidades geológicas, morfológicas e climáticas Sekram e seu entorno possui uma ampla biodiversidade de fauna e flora.
Sekram se desenvolveu inicialmente como base de pesquisas científicas, e alguns cientistas passaram a dedicar-se às pesquisas no local de forma integral ali se instalando. Inicialmente ficavam apenas na base e arredores próximos, pois o restante da área era de difícil acesso. Mas com o tempo e com o aumento do número de habitantes, explorar outras regiões se tornou uma tarefa um pouco mais fácil.
Aprender a conviver com as diferentes espécies da fauna e também domesticar a flora local era essencial para se manterem ali. Tudo era desconhecido e foi durante a convivência e experiência que a vida local passou a prosperar de alguma forma.
De início sentiram um grande temor, receio do ecossistema devorar a todos. Com o tempo se acostumaram.
2024 – #14 – Conversa
Os desafios presentes na relação intercomunitária entre Jantji e Botha passavam, sobretudo, pela forma histórica em como foram conformadas suas políticas.
As duas comunidades eram muito diferentes entre si, mas por muito tempo pensaram fazer política de uma forma saudável.
Historicamente, Jantji foi desenvolvida a partir da dissidência dos habitantes de Botha. Ainda que não houvesse imposições ou penalidades por parte de Botha, os habitantes de Jantji pensaram ser uma boa e respeitosa ideia seguir uma política de sempre aceitar as sugestões de Botha. Assim duraram algumas décadas, até que a população Jantjie compreendeu que seguir desta forma não fazia sentido para uma comunidade dissidente. Ou se tornava independente e soberano, ou seguia as vontades externas.
A comunidade ainda não sabia muito bem como lidar com essa alteração, ou em como seguir prosperando sem o auxílio de Botha, mas deram um primeiro e enorme passo para se pensar outra forma de vida: Aprenderam a dizer “não” e isso gerou perguntas que precisavam de respostas.
Assim seguiram caminhando.
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2024 – #13 – Caos
Dizem que viver em liberdade faz com que maiores conexões possam ser realizadas. Dito isto, também podemos dizer que várias conexões podem ser desfeitas a qualquer momento. Uma unidade pode se tornar grande o suficiente se conseguir se conectar com seu par, e com seus pares por conseguinte. Isso é imprevisível. Isso foge à qualquer tipo de regra, limites ou mesmo razões.
O caos é o agente que possibilita um viver em liberdade, em movimento, de forma imprevisível, inconstante, aumentando e diminuindo as conexões com outros. Fornece fronteiras permeáveis que apenas nos dão uma noção do que é aquele limite e se pode ser ultrapassado ou não.
Seu contrário é a completa apatia.
2024 – #11 – Submissão
Haely vivia no pequeno vilarejo de Jasso, que pertencia à grande comunidade de Fojah e que, por sua vez, fazia parte da sociedade Milanó.
Milanó se desenvolveu durante várias décadas assimilando para si as decisões de todas as comunidades e vilarejos ao redor, impondo restrições e severas punições àqueles governos que decidiam fazer algo por conta própria.
Haely nunca entendeu muito bem como isto funcionou durante anos, pois Milanó foi desenvolvida de forma artificial, sem seguir critérios orgânicos ou naturais para seu crescimento. Tudo de Milanó foi importado de outros lugares.
A alimentação não era com produtos típicos dali, nem as vestimentas e nem os hábitos. As construções eram feitas de materiais escassos na região, a arquitetura não suportava o clima local e as fronteiras impostas não respeitavam as comunidades de Fojah ou de Jasso. Era um ecossistema completamente danificado.
Haely tentou sair várias vezes de forma mal sucedida para compreender outras realidades, tentar buscar outras formas de superar o sentimento de insatisfação e limitação que seus conterrâneos possuem.
Haely sempre foi obrigado a obedecer e a seguir o futuro que algo muito maior planejara.
#literotubro #toranjanews
2024 – #12 – Útil
Irigo explorava o solo de uma região fechada há décadas pelo governo central. Por fora, uma barreira murada com concreto armado, com vários furos e buracos onde se podia ver um campo cinzento, com muita névoa em um altiplano árido.
Na barreira constavam várias placas que diziam ser proibida a entrada, e as torres altas funcionavam como um tipo de panóptico, nunca se sabe se realmente há alguém vigiando de lá, mas o medo era sentido por todos os habitante da pequena cidade universitária de Savjiol.
Irigo passara suas tardes buscando maneiras de desafiar o sistema de controle, e desenvolveu técnicas de acessar a região sem ser notado. Através de túneis, roupas de cor parecida à do solo e movimentos que se camuflassem à névoa, Irigo passou a fazer pequenas escavações na região semi-desértica para entender o que havia de tão importante ali.
Encontrou vários fragmentos aleatórios, os levava para casa em segurança e descobriu que, juntos, não faziam sentido algum. Quanto mais escavava, mais encontrava objetos.
Nos laboratórios da universidade tampouco encontrava algo que pudesse ajudá-lo. Queria entender a funcionalidade de cada um daqueles objetos, fragmentos de algo que outrora passou por ali e que não poderia ser descoberto. Separados não faziam sentido, e juntos não combinavam.
Irigo recolhia restos, desejando ser um sujeito predestinado a fazer uma grande descoberta.
Mal sabia que o rastro de fragmentos deixados ali eram apenas descartes aleatórios.