2024 – #19 – Artifício

Dihn passava os dias nas ruas da cidade de Roskom aplicando pequenos golpes na elite local. Como muita astúcia desenvolveu habilidades mágicas e ilusionistas, o que ajudaram a ter mãos e movimentos sutis o suficiente para que seus furtos passassem despercebidos. Era muito difícil compreender como fazia, ou mesmo prever seus movimentos. Rápido, ágil e com muita destreza desviava de pessoas, obstáculos e câmeras, e se especializou em furtos de objetos de valor. Furtava de ricos e vendia para eles mesmos através de um mercado paralelo de itens precioso, que circulavam apenas em uma única classe social. Dihn tinha a certeza de que cada uma destas pessoas eram lobos famintos por status e ansiavam fazer de tudo para derrubar outros lobos. Dihn aproveitava a fragilidade da noção de poder que tinham para que com o tempo destruíssem a si mesmos.

2024 – #18 – Luz

Um sistema de comunicação foi desenvolvido entre as comunidades de Sartin e de Tlaxup, na cadeia montanhosa de Concatenipo. Sartin está situada no topo plano do pico de Granem e Tlaxup foi desenvolvida no planalto de Gripome, a 150km aproximadamente de distância entre as comunidades. Entre elas alguns vales e mares do morros, com vegetação densa em algumas partes, matas ciliares e cursos de rios. Para as cidades se entenderem sem a necessidade da mobilidade dificultada, códigos luminosos e coloridos foram combinados para que o diálogo pudesse ser feito. Um sistema de coloração por minério e água é utilizado em canais similares a fibras óticas construídos com canaletas de bambu e cipó. A intensidade da luz, a coloração e o tempo em que fica acesa funciona para representar letras, sílabas e palavras. A recepção do sinal luminoso é feita através de rochas esculpidas em formato de concha, polidas para iluminarem bem e voltadas para a saída de luz da canaleta da outra comunidade. Assim, as duas comunidades se ajudam sempre que necessitam de algo em que a outra possa auxiliar.

Imaginokupa #3

Carcaça

Carcaça é o nome pela qual ficou conhecida a antiga ocupação de uma guarita vazia ao lado da linha férrea metropolitana. Nos anos 90 um grupo de jovens artistas e muralistas começou a utilizar o imóvel abandonado para guardar materiais como tintas, rolos, extensores, misturadores e equipamentos de escalada que seriam utilizados nas ações de intervenção que rolavam na cidade. O grupo foi conformado por 20 pessoas que esperavam pacientemente pelo momento perfeito de acessar os trilhos e produzirem grandes murais com motivos políticos nas estações de trens, vagões, construções próximas e nos muros que dividem as ruas dos trilhos. As ações eram coordenadas para que ninguém fosse detido e todo o processo fosse feito em poucos segundos ou minutos.
A guarita, já sem uso pelos oficiais de vigilância devido à modernização e robotização do sistema, era um ponto de observação e planejamento logístico para as intervenções. Ela possuía dois andares, sendo que o de cima, com acesso pela escada externa, era utilizado apenas para observação. Já o de baixo possuía uma porta grossa embaixo da escada, onde eram guardados materiais de pintura, vestimentas, e demais equipamentos necessários para a intervenção. O segredo da ocupação consistia em um piso falso, que dava acesso a um tipo de subsolo, ligado por um túnel até uma caixa de entulhos e materiais de manutenção dos trilhos. Todos os materiais e equipamentos ficavam devidamente escondidos e protegidos até o momento que a ação pudesse ocorrer sem problemas.
A ocupação ficou ativa por alguns anos, e promoveu neste tempo cerca de 275 ações de intervenção que envolviam propaganda política radical e autônoma, gerando guerra contra as empresas publicitárias que colocavam seus outdoors nos mesmos espaços e plotavam os vagões com publicidade de empresas privadas. Iniciou-se uma verdadeira batalha por espaços e durante muito tempo não houve informações de quem estava pintando os murais durante a madrugada.
Uma das táticas utilizadas pelo grupo rebelde foi a de hackear o sistema de segurança automatizado através da frequência de rádio e de um sistema de cabeamento do subsolo grampeado. Foi através das técnicas de contra-informação que as ações puderam ser coordenadas entre os membros, e teve seu relativo sucesso por muito tempo.
Com a virada do milênio, os sistemas de segurança ficaram mais rígidos com o medo do bug internacional que poderia atrapalhar todo o sistema de fluxo de dados, e todo o sistema de hackeio e grampo foi descoberto. Felizmente, a guarita foi desocupada antes que alguém pudesse ser detido. Ainda não se sabe bem quem foram estes ocupantes e jovens, mas suas ações ficaram marcadas, e o resquício do imóvel segue de pé, sendo tomado pela vegetação local.
A Okupa Carcaça foi um marco na subcultura do grafite e da intervenção artística de cunho político, radical e autônomo, e a influência dos murais ficou marcada na memória de muitos habitantes locais e grupos organizados.

2024 – #17 – Harmonia

Blates é uma comunidade construída a partir da noção da pesquisa e autossuficiência nos trópicos. Ela é conformada por um conjunto de casas baixas, intercaladas por jardins, hortas, pomares e vegetações ciliares. As casas, residenciais em sua maior parte, possuem grandes aberturas para entrada de luz, telhados com vegetação para proteção do calor e sistema de coleta e reaproveitamento de água através de canos, filtragem, decantação e reutilização para irrigação em tempos de clima seco e frio. As famílias semeiam e colhem coisas distintas para promover trocas sem a utilização de moedas. Todo o trabalho de construção e desenvolvimento é feito a partir de regras preexistentes e acordadas pela comunidade. O conhecimento é compartilhado entre todos para que seu desenvolvimento não seja comprometido a longo prazo.

2024 – #16 – Distração

Dobro a esquina durante o início da noite, passo pelo portão principal, sigo próximo à cerca agachado, buscando pontos de escuridão. Olho ao redor e memorizo tudo o que se passa. Aguardo toda e qualquer movimentação espontânea. Apuro meus ouvidos, aguço meu olhar. Caminho por entre arbustos e árvores, subo pequenos morros, caminho ziguezagueando, ninguém pode prever meus movimentos. Consigo um local para me deitar, com uma boa visão do evento. Árvores e arbustos me protegem. Fico em silêncio observando. Espero o momento certo.
***
Hoje é um grande dia, eu serei condecorado por bravura de guerra devido às minhas destrezas na batalha campal. Comandei um pelotão de 70 homens, que defenderam com a vida a minha integridade física e demonstraram seu amor ao rei. Hoje eu desfilarei pelo vilarejo com todos os símbolos desta grande vitória do Reino. Ninguém pode me deter.
***
“Fhhhlslslshhww” foi o som da flecha atravessando a cabeça do Comandante Geral dos Guardas do Reino de Angostu.


2024 – #15 – Medo

Sekram é uma comunidade instalada e desenvolvida em um terreno insular ao sul do continente. Um lugar frio, com densa corrente de ar e pouco explorado por humanos devido à seu terreno muito acidentado e de difícil acesso. Apesar das suas particularidades geológicas, morfológicas e climáticas Sekram e seu entorno possui uma ampla biodiversidade de fauna e flora.
Sekram se desenvolveu inicialmente como base de pesquisas científicas, e alguns cientistas passaram a dedicar-se às pesquisas no local de forma integral ali se instalando. Inicialmente ficavam apenas na base e arredores próximos, pois o restante da área era de difícil acesso. Mas com o tempo e com o aumento do número de habitantes, explorar outras regiões se tornou uma tarefa um pouco mais fácil.
Aprender a conviver com as diferentes espécies da fauna e também domesticar a flora local era essencial para se manterem ali. Tudo era desconhecido e foi durante a convivência e experiência que a vida local passou a prosperar de alguma forma.
De início sentiram um grande temor, receio do ecossistema devorar a todos. Com o tempo se acostumaram.



Lapsos de Tempo #15

Passeio

Vejo o que ele tem na mão, me animo. Me vem uma felicidade extrema que não consigo me conter. Vou até ele e sinalizo que concordo com sua atitude. Ele coloca algo no meu pescoço enquanto olho para o Breno ao meu lado querendo que seja feito o mesmo com ele. Nós, afobados, saímos correndo até a porta de vidro. Ele abre e, por mais que façamos força, não conseguimos correr livremente. Vamos tentando caminhar, mas Breno não consegue andar em linha reta e toda hora me fecha. Breno também faz com que nossas guias se enrosquem, e isso dificulta o andar. De vez em quando eu perco a paciência com Breno, mesmo ele sendo muito maior que eu. Eu cheiro alguns lugares, ele vem atrás de mim fazendo o mesmo. Fico me perguntando se ele tem a própria personalidade e interesses. Deixo um pouco de urina por onde passo. Gosto de marcar alguns lugares e deixar registrada a minha presença ali. Breno me imita em tudo. A cidade é viva, e nós que fazemos ela viver.
Vejo algumas coisas no trajeto, cheiro e não me agrada muito. Já Breno morde tudo antes de saber o que é. Ele morde, baba e cospe fora, não possui muitos critérios. Seguimos pela avenida vendo todo o movimento de automóveis barulhentos, ao mesmo tempo que acompanho o voar silencioso de uma borboleta. Isso me detém um pouco no processo de contemplação. Breno não enxerga nada disso. Passa por cima de qualquer coisa que está no seu caminho.
Na esquina um cheiro chama a minha atenção. Percebo que Breno sentiu a mesma coisa. Nos entreolhamos e fomos correndo, forçando o chão para chegar lá o mais rápido possível. Era um gramado a meia altura, recém cortado, cheirinho de mato molhado, algumas flores solitárias enfeitavam. Eu olhei para Breno, ele me olhou. Fomos até lá, subimos, cheiramos o melhor ponto possível, demos duas voltas em torno de nós mesmos e soltamos o som mais gostoso do mundo: “-ahhhhwwwwff!”.
Sim, o único em que concordamos é que cagar na grama é o melhor momento do dia.

Olympus Pen-EE – Shangai GP3 100 PB – La Idea, 2023


Horizonte

Quando estou caminhando, correndo, pedalando, me locomovendo de uma maneira geral, olho para o horizonte. Acho interessante como que as coisas no primeiro plano passam de maneira muito mais rápida que o fundo da cena.
Fico pensando no que são nossos sonhos, desejos, o que queremos e o quanto nos propomos a buscar o que almejamos.
Fiquei pensando nessa analogia com os planos da paisagem. O que está muito próximo, chega rápido, mas é isso, não tem nada demais além do que está na na cara. Logo é substituído por algo tão efêmero quanto.
O que está a médio prazo, passa a uma velocidade menor, podemos ver com calma, analisar, escolher, temos tempo para observar. O primeiro plano, veloz, às vezes atrapalha um pouco observar o que está a média distância, mas não impede.
Já o que está no fundo, no horizonte, passa tão devagar que nem parece que estamos nos movendo. Ali temos um amplo leque de possibilidades até conseguir chegar lá. E pode ser que nem seja lá onde queremos chegar. Tudo depende do caminho. Mas é um ponto de fuga, algo onde miramos.
Talvez seja por isso que a utopia seja tão metaforizada como a ideia do horizonte.
Ele está longe, mas está ali. Só saber ir com calma.

Olympus Pen-EE – Shangai GP3 100 PB – La Idea, 2023

2024 – #14 – Conversa

Os desafios presentes na relação intercomunitária entre Jantji e Botha passavam, sobretudo, pela forma histórica em como foram conformadas suas políticas.
As duas comunidades eram muito diferentes entre si, mas por muito tempo pensaram fazer política de uma forma saudável.
Historicamente, Jantji foi desenvolvida a partir da dissidência dos habitantes de Botha. Ainda que não houvesse imposições ou penalidades por parte de Botha, os habitantes de Jantji pensaram ser uma boa e respeitosa ideia seguir uma política de sempre aceitar as sugestões de Botha. Assim duraram algumas décadas, até que a população Jantjie compreendeu que seguir desta forma não fazia sentido para uma comunidade dissidente. Ou se tornava independente e soberano, ou seguia as vontades externas.
A comunidade ainda não sabia muito bem como lidar com essa alteração, ou em como seguir prosperando sem o auxílio de Botha, mas deram um primeiro e enorme passo para se pensar outra forma de vida: Aprenderam a dizer “não” e isso gerou perguntas que precisavam de respostas.
Assim seguiram caminhando.


2024 – #13 – Caos

Dizem que viver em liberdade faz com que maiores conexões possam ser realizadas. Dito isto, também podemos dizer que várias conexões podem ser desfeitas a qualquer momento. Uma unidade pode se tornar grande o suficiente se conseguir se conectar com seu par, e com seus pares por conseguinte. Isso é imprevisível. Isso foge à qualquer tipo de regra, limites ou mesmo razões.
O caos é o agente que possibilita um viver em liberdade, em movimento, de forma imprevisível, inconstante, aumentando e diminuindo as conexões com outros. Fornece fronteiras permeáveis que apenas nos dão uma noção do que é aquele limite e se pode ser ultrapassado ou não.
Seu contrário é a completa apatia.


Ruim Demais Para Ser mentira #9

Estrada

Quando eu era pequeno viajar costumava ser sempre um caos. Eu nunca fui muito de dormir em veículos (isso mudou há pouquíssimos anos) e minha vida acordado em viagens sempre foi bastante criativa.
Eu tinha meus próprios hobbies passatempos de sobrevivência nas estradas.
Eu gostava bastante de imaginar que eu tinha fôlego, velocidade e habilidades o suficiente para correr ao lado do carro, só que passando pelas paisagens que eu via pela janela. Então o pequeno eu corria por pastos, pulava cercas, subia e descia morros, desviava de árvores e de animais, saltava rios e lagos, voava em pontes, subia e descia de imóveis e construções com certa facilidade, sempre acompanhando a velocidade do veículo em que estava.
Também gostava muito de ficar olhando praquele amontado de eucaliptos que faziam tipo linhas de fuga/perspectiva, com uma linha clara ao fundo. Tentava acompanhar a linha clara que sempre mudava de lugar por entre a sequência de árvores. Ahh, claro, o pequeno eu também transitava por ali desviando das árvores.
Outra atividade legal, sobretudo quando eu me sentava ao lado esquerdo do veículo, era contar quantos carros legais passavam pela estrada no outro sentido. O conceito de “legal” nunca foi bem objetivo pra mim, mas era só algo para passar o tempo mesmo. Claro, o pequeno eu saltava todos estes veículos. Inclusive, corria por cima dos longos caminhões com muita destreza.
Outra atividade legal era encarar as pessoas dos outros carros. Quando um carro nos ultrapassava eu fazia careta para seus tripulantes. Quando a gente ultrapassava alguém eu fazia cara de deboche pro veículo ultrapassado. O pequeno eu passava por cima de todos estes veículos também.
Tudo isso era bem divertido.
As longas viagens entre BH e Guriri, no norte do Espírito Santo, se tornavam bem mais agradáveis com minhas brincadeiras inventadas para passar o tempo.
Porém, algo sempre ocorria que não deixavam as coisas tão divertidas assim. Meus hobbies terminavam, com certa frequência, em náuseas e vômitos. Sim, eu concentrava na paisagem e ficava muito mareado. Uma cena comum nas viagens é a parada para lavar o carro que tinha ficado em condições deploráveis após minhas brincadeiras solitárias. O terror da família era visível quando eu dizia que iria vomitar.
Sorte de quem tinha carro de quatro portas, que eu conseguia abrir a janela para vomitar. Nesse caso, apenas a parte externa da porta ficava com aquela sujeira toda escorrida. Secava rápido e a viagem podia seguir sem parar no posto pro banho. A bagunça era menor.
Viajar comigo era sempre algo caótico. Eu tinha que sempre me sentar na janela pra ficar mais perto da saída. Azar da minha irmã, que frequentemente tinha que ficar no meio do carro, sem onde encostar pra dormir. Ela sim conseguia dormir nas viagens.
Depois de um tempo tomar Dramin para viajar foi obrigatório pra mim.
Isso foi o fim do pequeno eu se aventurando em condições criativas absurdas.

2024 – #11 – Submissão

Haely vivia no pequeno vilarejo de Jasso, que pertencia à grande comunidade de Fojah e que, por sua vez, fazia parte da sociedade Milanó.
Milanó se desenvolveu durante várias décadas assimilando para si as decisões de todas as comunidades e vilarejos ao redor, impondo restrições e severas punições àqueles governos que decidiam fazer algo por conta própria.
Haely nunca entendeu muito bem como isto funcionou durante anos, pois Milanó foi desenvolvida de forma artificial, sem seguir critérios orgânicos ou naturais para seu crescimento. Tudo de Milanó foi importado de outros lugares.
A alimentação não era com produtos típicos dali, nem as vestimentas e nem os hábitos. As construções eram feitas de materiais escassos na região, a arquitetura não suportava o clima local e as fronteiras impostas não respeitavam as comunidades de Fojah ou de Jasso. Era um ecossistema completamente danificado.
Haely tentou sair várias vezes de forma mal sucedida para compreender outras realidades, tentar buscar outras formas de superar o sentimento de insatisfação e limitação que seus conterrâneos possuem.
Haely sempre foi obrigado a obedecer e a seguir o futuro que algo muito maior planejara.


2024 – #12 – Útil

Irigo explorava o solo de uma região fechada há décadas pelo governo central. Por fora, uma barreira murada com concreto armado, com vários furos e buracos onde se podia ver um campo cinzento, com muita névoa em um altiplano árido.
Na barreira constavam várias placas que diziam ser proibida a entrada, e as torres altas funcionavam como um tipo de panóptico, nunca se sabe se realmente há alguém vigiando de lá, mas o medo era sentido por todos os habitante da pequena cidade universitária de Savjiol.
Irigo passara suas tardes buscando maneiras de desafiar o sistema de controle, e desenvolveu técnicas de acessar a região sem ser notado. Através de túneis, roupas de cor parecida à do solo e movimentos que se camuflassem à névoa, Irigo passou a fazer pequenas escavações na região semi-desértica para entender o que havia de tão importante ali.
Encontrou vários fragmentos aleatórios, os levava para casa em segurança e descobriu que, juntos, não faziam sentido algum. Quanto mais escavava, mais encontrava objetos.
Nos laboratórios da universidade tampouco encontrava algo que pudesse ajudá-lo. Queria entender a funcionalidade de cada um daqueles objetos, fragmentos de algo que outrora passou por ali e que não poderia ser descoberto. Separados não faziam sentido, e juntos não combinavam.
Irigo recolhia restos, desejando ser um sujeito predestinado a fazer uma grande descoberta.
Mal sabia que o rastro de fragmentos deixados ali eram apenas descartes aleatórios.



Lapsos de Tempo #14

Topo

Outro dia li em algum lugar que a pessoa sem ter para onde ir só a restou chegar ao topo. Eu fiquei pensando o que é este topo que as pessoas tanto buscam.
O que me chamou atenção foi esse lugar imaginário, o alto, o cume, o ápice, a ponta, mas sempre pensando em um grau elevado. O que significa alcançar essa quimera?
Primeiramente, óbvio, busquei ajuda no dicionário: TOPO pode significar esse ponto mais alto, mas também significa “extremo”. Essa segunda definição talvez passe despercebida e oculta na maioria dos casos.
Eu entendo quando “topo” é usado como esse lugar que desejamos. O lugar da figura do sábio, alguém que está em uma posição elevada, e nós como seres humanos buscamos também ter o papel de certa referência. O pico da montanha, o topo da pirâmide, o céu.
Lugar onde reside um conhecimento e uma energia sublime, logo quem está lá se torna alguém superior.
Mas também é uma posição inventada: reis, políticos, religiosos, imperadores, empresários, charlatães de um modo geral… Todos clamam ocuparem estes locais. Desejam uma superioridade autoproclamada.
Mas acho que se pensarmos que também que topo pode ser um extremo, de forma genérica mesmo, as coisas tomam outra dimensão.
Chegar no extremo da dor, das emoções negativas, da [in]sanidade mental, da violência, da manipulação. No extremo até onde podemos suportar alguma coisa.
Parece demasiado trágico restar apenas o extremo, como se não pudéssemos mais ter escolhas.
Será que é o topo mesmo que estamos buscando?
Depois deste extremo é o fim? Depois do cume vem o declínio?
Nosso trajeto é feito de sobes e desces, de um lado para o outro, de vais e vens.
Prefiro acreditar na caminhada.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE – Shangai GP3, BW 100

2024 – #10 – Centro

Uma sociedade aborígene de nome Mounga precisou lidar com uma certa dificuldade política. Os regimentos da comunidade eram aplicados à todas as famílias que faziam parte do território comum. Muitas famílias não concordavam com as deliberações vindas de uma força política unitária, e o descontentamento com as regras se tornou algo cotidiano.
Após diversas reuniões entre a comunidade, ficou decidido que as famílias possuiriam livre arbítrio para escreverem e praticarem seus próprios regimentos, além de firmarem suas redes de forma independente.
De início, houve certa resistência, sobretudo porque muitas famílias não conseguiam entender por onde começar a desenvolver sua própria política. Mas, aos poucos, com muito diálogo, muita disposição e muita empatia, a dinâmica de logística e de política começou a dar certo.
Ao invés de centralizar as resoluções em um local, foram criados vários pontos centrais, que se intercomunicavam entre si, com o fito de chegar a resoluções e deliberações que agradassem à todas famílias presentes no território.
Ainda que a insatisfação, a frustração e os conflitos permanecessem, eles possuíam uma intensidade muito menor que não atrapalhava a dinâmica da comunidade. Tardou muito tempo até que esse modelo fosse alcançado.

2024 – #9 – Poder

Irien nasceu com um gosto pela música. A frequência das notas, o timbre, a sonoridade, o ritmo faziam com que Irien movesse seus músculos e membros em movimentos síncronos e harmônicos. Irien hipnotizava todas as pessoas com suas danças. Podia ficar horas mexendo o corpo, pois se impressionava com seus próprios gestos, que já antecipavam tudo o que viria a seguir.
Irien sentia seu corpo guiado por algo que não conseguia enxergar, ondas abstratas que entravam pelo ouvido e refletiam nos batimentos do coração. Sentia seu sangue pulsar, levando vontade de balançar cada milímetro de seu corpo. A vida ativa não poderia existir sem a música.
Ainda que a dança fosse a razão de sua existência, Irien começou a se perguntar porque dançava tanto, já que poderia tentar criar algo que movesse outras pessoas.
Irien dançava, mas queria experimentar o poder de tocar concomitantemente.

Ruim Demais Para Ser mentira #8

Semáforo

Quando eu era pequeno, eu achava que os semáforos presentes nas esquinas das ruas eram controlados por pessoas. A minha ideia era a de que em cada semáforo havia uma câmera, e essa câmera mandava um sinal para uma televisão em uma central de comando, onde um operador decidia ligar a luz verde, a amarela ou a vermelha. Cada operador era responsável por um semáforo. E eles deveriam, sempre, ficar de olho no fluxo de carros.
A ideia era simples na minha cabeça. O sinal ficava verde e os carros aceleravam. A medida que os carros que estão no semáforo vermelho começam a se acumular em demasiado, o operador avisa que ele precisa abrir, ficar verde. Daí, o operador que estava no verde aciona o amarelo, e logo o vermelho. Desta forma, o fluxo dos cruzamentos seguiria sempre bem equilibrado.
Eu ficava encucado quando os semáforos tardavam muito a abrir, e os motoristas precisavam chamar atenção do operador (que pode ter saído para ir ao banheiro, por exemplo), por isso eles começavam a buzinar. Lembro de ficar observando o tempo que demorava entre a sinfonia horrível de buzinas e o sinal ficar verde. Geralmente funcionava e poucos segundos após o início das buzinas o semáforo abria.
Eu também imaginava que nos cruzamentos em que o sinal piscava no amarelo, provavelmente o operador não tinha ido trabalhar ou estava de férias. Então não haviam substitutos praquela função. Daí a responsabilidade do cruzamento seria a dos motoristas. A mesma lógica para as madrugadas, em que muitos semáforos piscam no amarelo ou estão desligados. Falta pessoal para operar.
Me lembro bem de estar dentro do carro com meus pais, o trânsito parado, meu pai reclamando que o engarrafamento era causado por causa dos semáforos, e eu dizendo pra ele:
-É só buzinar que o sinal abre!
Acho que ele nunca deve ter entendido minha colocação.

2024 – #8 – Grão

A pequena comunidade de Sasya conseguiu desenvolver um método de organização urbana que compreende espaços de moradia, de vida pública e de produção agrícola de subsistência. O método consiste em criar passagens concêntricas, como se fosse uma espiral, onde às margens dos passeios teríamos locais de moradias alternando com espaços de vida pública, parques, praças, passeios e locais de interesse como bibliotecas, centros de compartilhamento e feiras. No espaço compreendido entre fundos das moradias, existem plantações diversificadas, que vão de hortas a cereais e leguminosas, que se estendem entre passagens espiraladas.
O formato de desenvolvimento concêntrico ficou conhecido por seu habitantes como Grão, pois possui uma estrutura mais externa (locais de vida pública), uma mediana (moradias) e uma central protegida (plantações). Todas conformadas por passagens que, querendo ou não, te fazem trafegar por todos estes ambientes.
Sasyans compreenderam que construindo desta forma, todos seus habitantes poderiam usufruir das plantações e da vida pública, além de conseguirem ter relações aproximadas com seus vizinhos, que nunca estariam longe demais. Não existem passagens retilíneas e esquinas, mas trechos sinuosos que seguem um formato condizente com uma espiral.
Também, desta forma, não há construções que atrapalhem a passagem dos ventos, das águas e nem atrapalha o ecossistema de uma maneira geral. A forma que a comunidade se desenvolve respeita o traçado orgânico do meio ambiente.

2024 – #7 – Esperança

No Vale do Rio Nancíbio havia um pequeno povoado que, outrora nômade, se instalou na região de várzea para evitar que a comunidade fosse contaminada por um vírus que rondava o mundo. Ficaram sabendo da epidemia através de rumores, e decidiram se isolar por décadas até que seguro fosse retomar a caminhada.
Acontece que com a instalação e criação de residências e hortas, o povoado se complicou para seguir com os hábitos ciganos, e as gerações mais novas desconheceram o hábito do deslocamento para regiões mais prósperas, ou que promovessem o rotatividade de culturas e recuperação do solo. Com o tempo, inclusive, as oralidades e manualidades que eram passadas a cada geração, foi-se perdendo com hábitos cada vez mais rotineiros.
Também a vegetação no entorno cresceu durante décadas a ponto de encerrar o povoado na várzea, próximo da mata ciliar do Rio Nancíbio, promovendo poucas oportunidades de saídas sem equipamentos e ferramentas adequadas para tal.
Certo dia Org, um jovem adulto que nasceu na região e desconhece a vida fora dela, pescava seu almoço quando se perguntou de onde vem a água com esses peixes. Nunca tinha imaginado que a água poderia se originar em outro lugar.
Org decidiu se jogar na água e nadar contra a correnteza na região de mata ciliar fechada, cheia de raízes e entroncamentos estranhos e complexos para descobrir de onde vem tanta abundância.
Org não conseguia ver o fim do curso de água, pensava o tempo todo em como e quando voltaria para contar tudo o que viu no trajeto, talvez uma possível descoberta.
Muitas histórias ele contaria em seu retorno, quando conseguisse alcançar algo que ele teria certeza de que foi a origem da água.

#literotubro #toranjanews

Lapsos de Tempo #13

Nada é linear

Andar e caminhar sem destino.
Acionar o corpo para privilegiar o movimento nem sempre é fácil. Primeiramente, é sempre interessante encontrar uma boa razão para tal ação. Segundo, é importante pensar em alguns critérios. Terceiro, há de saber como desfrutar destes momentos.
Boas razões temos aos montes. O tédio causado pela vida contemporânea que praticamente nos obriga a interagir com uma tela todo o tempo, a falta de motivação para o lazer ou para o trabalho, um passeio externo para ajudar a arejar a cabeça e as ideias, a apatia da vida comum e monótona que nada traz de novidade, solidão.
Critérios, esses sim precisam ser tidos com mais cuidado. É importante pensar em um local com calçadas largas, quarteirões curtos, comércios, áreas verdes, vestimentas e calçados adequados. Sair sem rumo requer que, minimamente, passemos por paisagens agradáveis, sem grandes monotonias, mas também sem a agitação de um centro urbano densamente povoado. A busca pelo equilíbrio entre algo onde absolutamente nada chama atenção, e de onde existem tantos estímulos sonoros e visuais que chega a doer a cabeça. Lugares com muitos obstáculos tendem a ficar cansativos rápidos demais, com seus desvios e trombadas. É importante esse espaço equilibrado, de respiro e atenção ao infraordinário, às coisas que acontecem e que são de uma grandiosidade comum duvidável. Praças, parques, comércios, cafeterias, lugares comuns, pontos de interesse turístico, obras de arte, calçadas, arquiteturas urbanas que fluem o olhar e os trajetos, barraquinhas nas ruas, rios e canais limpos. Qualquer cena que agrade ao olhar e nos faça ter mais vontade de conhecer cada centímetro dos espaços.
O desfrute é algo que cada sujeito desenvolve por si próprio. Um sujeito enxerga a possibilidade de sair da estagnação quando pensa em se movimentar. Os olhos treinam para enxergar as pequenas coisas do trajeto, os rostos familiares, pixações, bancos, lojinhas, pessoas aleatórias, animais, prédios, praças, áreas verdes… Tudo que pode existir no caminho faz parte do movimento. Há alguns que curtem fotografar algumas coisas que lhe chamam atenção, outros se detém por um momento para desenhar ou versar sobre como se sentem. Outros apenas guardam tudo isso na memória, como algo que foi vivido e que fez parte deste momento do corpo em ação, em uma das habilidades mais básicas do ser humano: caminhar.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 PB

Desimportância

Não importa a passagem dos cursos de água, nem das correntes de vento.
Não importa o percurso de quem caminha ou se locomove na urbe ou na imaginação.
Tampouco importa se haverá onde descansar o corpo, as vistas ou a mente.
Tudo é atropelado e sobreposto em camadas e camadas de informação inútil, que se apodera de todos os campos e não nos fornece muitas alternativas.
Subverter não é ir contra o estabelecido, mas criar caminhos outros apresentando a não-linearidade das formas, sejam físicas ou ideológicas.
Subverter é sair da total desimportância de tudo, que mantém a inação dos sujeitos, para dar importância a tudo que construímos e para um local onde somos alguém, onde somos alguém que desejamos ser. Livres e fortes.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

2024 – #6 – Água

Após décadas de uma seca devastadora que nunca havia acontecido antes, o pequeno povoado de Ariropalo compreendeu que talvez não haveria mais água no local. Foram décadas dependendo da pouca chuva que caía em um período curto de poucas semanas durante o ano e do caule de cactos e nopales, que armazenavam o líquido.
Porém, os recursos ficaram tão escassos, que o povoado decidiu se reunir para discutir e tentar encontrar soluções possíveis para o problema.
A primeira ideia, e a que pareceu mais plausível, foi a perfuração de um poço artesiano. Porém, com quase 1km de profundidade, o lençol freático não havia sido alcançado. Também, o custo para esta operação era demasiado alto, sem condições para o povoado.
A questão que bateu mais forte foi a de que talvez não haveria outra ideia de como conseguir recursos hídricos para a manutenção da vida no povoado.
Com o receio da iminente desaparição das pessoas e dos animais, o povoado se reuniu novamente e decidiram mover-se para outro lado.
Saíram de completa estagnação em busca de um vale onde pudessem existir.

#literotubro #toranjanews