Leia os capítulos anteriores na seção Fragmentos do Menu
Capítulo 2
Foi em uma terça-feira que combinamos o primeiro dia de oficina. Eu já havia ido à sede para assinar o contrato com a empresa responsável pela gestão da Casa e já estava liberado para iniciar os trabalhos. Passaram-se duas semanas desde a oficina de teste. Era um misto de expectativa com ansiedade, mas não pelo trabalho que eu iria fazer, e sim pela forma como eu me apresentaria para aqueles jovens.
Nunca me entendi como uma autoridade, e ser colocado neste papel me incomoda bastante. A autoridade nunca funcionou comigo durante o meu desenvolvimento e, pelo contrário, o medo e a punição que existe nesta forma de relação me traziam muito mais ódio e rancor que vontade de fazer algo. O conceito de autoridade parece que se mistura com o de ser autoritário, e sempre se torna uma relação violenta de poder, nunca de respeito.
Com tudo isso em mente eu entrei em contato com a Terapeuta Ocupacional para marcarmos o primeiro dia de oficina. Agendamos para a terça-feira seguinte, pois daria tempo de planejar as atividades e me organizar com os horários. A oficina deveria iniciar às 14 horas, um horário não muito bom para mim. Considerando que a distância entre minha residência e o local de trabalho era grande, e eu iria de bike, precisaria pedalar bastante debaixo do sol, logo após o almoço. Mas não havia outro horário disponível e ficou decidido que às 14h das terças eu deveria ministrar as oficinas.
No dia combinado eu antecipei o almoço e saí de casa logo após comer. Minha ideia era chegar cedo e ver os materiais que estavam disponíveis para trabalhar. A Terapeuta havia dito que lá haviam vários materiais de outras oficinas e de outros oficineiros e que eu poderia utilizar em minhas oficinas. Eu precisava verificar o que teria disponível para saber com o que poderia trabalhar. Minha ideia inicial era começar com as formas básicas, quadrados, linhas, círculos, triângulos, trapézios, e moldar a imagem a partir destas referências.
É uma técnica interessante, pois simplificamos as imagens complexas em formas simples, e daí conseguimos compreender as proporções de cada objeto, ou de cada parte do objeto. É como se conseguíssemos sintetizar uma imagem ao máximo, quase um abstracionismo, para logo depois reconstruir a imagem.
Minha ideia era utilizar os próprios elementos clássicos das tatuagens para construir essa imagem, pois percebi que a tatuagem é um elemento em comum entre eles. Portanto eu imaginei que crânios, rosas e adagas seriam elementos presentes. Treinei um pouco a desconstrução destas imagens, pensando nas formas básicas que poderiam dar origem ao desenho final. Na minha cabeça e nos meus planos estava tudo certo.
O trajeto foi tranquilo, não estava muito quente, mas o almoço já estava pesando. Fico pensando que seria interessante comer menos no almoço, e levar uma refeição complementar para comer quando chegar à Casa. Acho que assim pesaria menos. Durante o trajeto fiquei observando o que estava em meu caminho, no asfalto. Desde pequeno eu caminho olhando para o chão, buscando moedas perdidas. Hoje eu pedalo tentando compreender as coisas que estão no meu caminho e que podem me oferecer risco. Pregos, arames, cacos de vidro, tachinhas, pedras, buracos, poças de óleo automotivo. Nunca achei dinheiro pedalando, mas já achei vários animais mortos. Já vi pombos, ratos, gatos e cachorros. Uma vez eu vi um gambá. Outro dia vi um morcego.
É impressionante a quantidade de coisas que se fazem presentes nas vias, enquanto os automóveis passam dominantes ofuscando qualquer outra presença naquele espaço. Parece que nada mais importa para os motoristas. As vias não são locais onde poderiam haver reflexões interessantes. É só um caminho, e pronto.
Cheguei na Casa com um pouco de cansaço, mas sem maiores problemas no trajeto. Toquei a campainha e aguardei alguns minutos até ser atendido. Novamente quem abriu a porta foi um funcionário que solicitou meus documentos e me deixou esperando lá fora mais alguns minutos. Após ter a entrada permitida, a Terapeuta me recebeu e me apresentou ao restante da equipe técnica que se encontrava no local. Um Advogado, duas Pedagogas, uma Psicóloga, e mais duas funcionárias que eu não me lembro qual função exerciam. Após breves saudações, a Terapeuta me levou ao quarto de materiais, aquele com a mesa redonda, estantes e uma janela grande que dava para o pátio.
Ela me mostrou que haviam muitos materiais ali que poderiam ser utilizados e abriu várias gavetas de uma estante de madeira. Ali haviam vários papéis de diferentes qualidades, um rolo enorme de papel kraft mais espesso, vários potes de tinta guache escolar, um estojo com vários lápis de grafite, um estojo com vários lápis de cor, um estojo de canetinhas hidrográficas com pontas finas e grossas, uma sacola plástica com vários pincéis dentro, borrachas, apontadores, estiletes e 3 latas de spray para uso genérico.
A Terapeuta me disse que eu poderia fazer uma lista de materiais para as oficinas, que ela faria um orçamento em vários locais para solicitar a compra, mas que poderia demorar. Eu disse que dava para trabalhar com o que tinha ali, mas que seria bom ter mais materiais disponíveis no futuro.
Ali na sala eu separei o estojo de lápis e de borracha, uma resma com vários papéis e já me preparava para descer, quando um Agente me abordou dizendo que não era para descer com todo esse material, que era para ser apenas um lápis e uma folha para cada jovem, dois apontadores e duas borrachas. Nada mais que isso. Ele me disse que haviam 15 jovens no pátio e que o material deveria ser a conta. Ele me disse que era uma medida para não haver furtos de materiais e nem brigas. Eu retornei para a sala e separei exatamente o material que ele me disse, além de um lápis e um papel para mim. O Agente conta tudo e anota em um bloquinho de papel. Ele abre o portão e eu desço para o pátio onde alguns jovens me aguardavam na mesa grande, outros estavam em seus leitos e havia um que ainda almoçava. Apenas três dos jovens que estavam ali participaram da primeira oficina há duas semanas atrás.
Eu me apresentei novamente, disse quais atividades faríamos e comecei a distribuir os materiais. Um Agente recolheu os apontadores e me disse que os jovens deveriam ir até a sala dele para apontar seus lápis. Ele me disse que as lâminas dos apontadores poderiam ser armas em caso de conflitos.
Enquanto iniciava algumas explicações sobre as formas básicas e como poderíamos utilizar isso na nossa composição, um dos jovens se lembrou de mim, me chamou de Boy de novo. Ele olhou a minha tatuagem no braço, uma coruja cega pousada em cima de um crânio, e disse que seria legal aprender a desenhar caveiras, para ele virar tatuador. Percebi que muitos dos jovens não estavam compreendendo o exercício, fiquei pensando se a minha explicação foi confusa. Pedi para que prestassem atenção ao meu papel, pois iria demonstrar na prática como poderíamos trabalhar, e que o esboço do papel poderia se tornar um passo a passo para pintar murais nas ruas. Comecei fazendo círculos para demarcar algumas áreas e aos poucos meu desenho de linhas básicas foi se transformando em um crânio. Usei o comentário do jovem para exemplificar a minha ideia de exercício. Disse que a construção do desenho deveria ser uma prática constante, e que nós ficávamos cada vez melhor a cada desenho que fazíamos.
Neste momento a Terapeuta desceu para acompanhar a oficina. Dois jovens começaram a indagar a ela quando poderiam utilizar o telefone. Outros jovens diziam que não queriam fazer a oficina e que preferiam descansar no leito. Ela falou com eles que a participação na oficina é obrigatória, que eles não tinham escolhas.
Um dos jovens começou a escrever letras de rap e funk no papel, outro começou a desenhar uma pomba, três jovens apenas observavam tudo, e alguns se mostraram interessados nas minhas explicações. Estes mais atentos fizeram desenhos muito similares aos meus, como se eu estivesse ensinando um passo a passo de como fazer um crânio. Eu dizia que eles deveriam tentar fazer seus próprios desenhos também, de algo que eles gostem ou se interessem, que não era interessante apenas a cópia.
Um jovem falou que seu desenho estava horrível, amassou o papel e jogou na lixeira. Ele solicitou outro papel e eu disse que não havia, era apenas um papel para cada. Eu dei meu pedaço de papel para ele e disse para ele usar a borracha quando precisasse desmanchar.
Haviam apenas duas borrachas para aproximadamente 15 jovens, em uma mesa retangular extensa isso foi um grande problema. Eles passaram a querer desmanchar tudo o tempo todo. Começaram a jogar borrachas de um lado para o outro. Um dos jovens viu que a borracha estava disputada e segurou uma borracha em sua mão enquanto desenhava. Outros jovens começaram a discutir sobre uma borracha lançada que atingiu o braço de um deles. Os ânimos esquentaram e os jovens passaram a se ofender. Eu disse que haviam duas borrachas e que elas poderiam ficar sempre na mesa, mas que o erro não era uma coisa ruim e que poderia ser usado a nosso favor enquanto desenvolvíamos nossos desenhos. Nós aprendemos com o erro e o utilizamos como comparação para chegar mais próximo ao acerto, ou ao objetivo que almejamos.
Não sei se os jovens compreenderam muito bem essa ideia, mas seguiram com seus desenhos de uma maneira mais calma. Logo após a retomada da atividade, percebi que havia fila na sala do Agente para poder apontar o lápis. Um jovem estava apontando seu lápis e a ponta quebrava dentro do apontador. Com isso, os jovens que estavam aguardando começaram a reclamar que ele estava fazendo hora pra não participar da oficina. O Agente tinha liberado apenas um apontador, e isso gerou um conflito pela utilização da ferramenta.
O jovem que desenhava pombos fez uma marca de dois tiros no peito da ave e disse que a pomba branca tem dois tiros no peito, fazendo alusão à música do Facção Central. O jovem que escrevia letras desistiu de escrever e passou a apenas conversar com os outros jovens. O que ainda almoçava se integrou ao grupo e reclamou que não havia material para ele. Como ele trabalhava no período da manhã, ele almoçou apenas mais tarde e não foi contabilizado pelo funcionário que fez a contagem dos materiais para mim.
Os jovens me perguntam o que significam as minhas tatuagens e eu pergunto o que significam as deles. Eles não me respondem e eu não respondo à eles. Eu disse que tatuagens não precisam de ter significados e um deles diz que toda tatuagem tem significados. Na Quebrada tudo tem um significado.
A oficina começa a chegar em seus minutos finais e os jovens começam a me devolver seus desenhos e os materiais. Dois jovens queriam ficar com seus desenhos e a Terapeuta disse que não poderiam. Eles apontaram o desejo de terminar o desenho na próxima oficina e eu disse que os traria para eles terminarem. Todos precisam assinar o seu desenho, independente do que fizeram. O Agente contou o material devolvido e me autorizou a subir.
A Terapeuta começa a folhear os desenhos na sala de materiais e vai me dizendo tudo que é considerado apologias para o Sistema. Talvez seja melhor evitar a temática do crânio, pois isso teria a ver com a morte e que poderia gerar um simbolismo diferente para aqueles jovens. A letra de rap e funk que um dos jovens escreveu estava repleta de ofensas que poderiam ser apologias. A pomba branca com dois tiros no peito era uma apologia direta e objetiva.
Eu deveria fazer um relatório no Livro de Registros assinalando todos esses fatos, inclusive os conflitos no pátio, os nomes de quem estava presente, quem se destacou e quem deveria ser punido. Eu guardo todo o material na estante, e na hora de preencher eu me recuso a identificar os jovens desta forma. Folheio os papéis, escrevo o nome daqueles que estavam mais interessados e digo que a oficina ocorreu sem maiores problemas. Guardo os papéis com os desenhos em uma pasta destinada para isso na estante.
Na saída eu falo com a Terapeuta que essa tática de limitar a quantidade de materiais poderia gerar mais conflitos, além de barrar o fluxo da atividade e fazer com que o trabalho não renda tanto quanto o esperado. Ela me disse que era algo com que eu deveria lidar melhor, porque os materiais ali sempre seriam limitados. Perguntei também sobre a questão dos jovens que não queriam participar, se eles poderiam fazer outras atividades, e ela me disse que eles não tinham escolhas. Todas as atividades eram obrigatórias, e nos primeiros 45 dias de cada jovem, eles eram obrigados a se manterem reclusos e participativos. Esses 45 dias iniciais serviriam como um período de avaliação e que seriam enviados ao Juiz. Era um período determinante para a pena, para saber se poderia ser mais branda ou mais restritiva e punitiva.
Apesar de saber do período de 45 dias, optei por não alterar o meu relatório. Eu não sabia há quanto tempo cada um daqueles jovens estava ali. Nem me interessava saber por quais crimes eles foram enquadrados. Me dava uma pena o fato de eles serem obrigados a fazer algo que não queriam, e depender disso para saber sobre o futuro naquela Instituição ou no Sistema Penal.
Me despedi dos demais funcionários e saí da Casa. Enquanto pedalava pensava sobre o caos que foi a oficina, como ela não rendeu de acordo com o esperado. Me deu uma agonia saber que os jovens não poderiam ficar com seus desenhos após a oficina, e que não havia a possibilidade deles trabalharem nas práticas artísticas quando eu não estivesse ali. De que então adianta eu falar sobre praticar, sobre o exercício diário de se propor ao treino, ao desenvolvimento de um desenho, de uma ideia, de uma observação, se até disso eles seriam privados?
Acho que a sensação de frustração me distraiu em meu trajeto e quando eu pensava nessas questões, um carro me fechou para virar a próxima esquina. Não me atropelou por pouco. Um xingamento saiu de minha boca, com um ódio que veio do fundo do pulmão, sendo expelido da maneira mais agressiva possível.
O motorista parou o automóvel e disse que ele estava atrás de mim e tinha buzinado avisando que iria passar. Eu disse que se ele iria virar a rua, poderia ter esperado que eu passasse em segurança. Ele argumentou que tinha buzinado antes de fazer isso. Eu disse que a buzina dele não me faria desaparecer da frente do carro e que ele deveria ter esperado para não colocar minha vida em risco. Ele proferiu alguns xingamentos e arrancou o carro.
Eu nunca vou entender um automóvel que está atrás de um ciclista e buzina. Eu não sei o que esta buzina significa. Buzinas talvez sejam a forma de comunicação menos efetiva que existe. Ela pode significar várias coisas, mas pode também significar nada.
Nesse caso, eu estava tão distraído com minhas frustrações que eu nem tinha escutado a buzina. De qualquer forma, um som proferido do volante do carro não me diz nada, não me salva, não me alerta. O sujeito escolheu me ultrapassar e virar a esquina a apenas alguns centímetros da minha bicicleta. Ele escolheu colocar minha vida em risco a troco de alguns segundos.
Esse desrespeito me frustra mais ainda. Chego em casa, cansado e com a cabeça quente. O dia foi cheio e eu precisava repensar a oficina durante a semana. Agora com noção de várias limitações em relação ao material disponível e já entendendo um pouco o comportamento daqueles jovens. A próxima oficina teria que ser mais proveitosa que essa. Não poderia repetir isso de novo.