Caminhar, uma filosofia – Frédéric Gros

Há muito eu não escrevia minhas impressões sobre um livro. Hoje me deu vontade de fazer isso. Em meio à vida caótica, que meneia entre frustrações, pressões e desesperos, decidi começar a ler este livro no último dia de 2024. Sim, eu tinha uma pilha de outras coisas para ler, mas não consigo organizar minha cabeça para dar conta das coisas que eu realmente preciso.
Conheci esse livro através de um amigo, que leu um texto meu mais antigo e disse que se parecia muito com esta obra de Gros. Ele me mandou um pdf para ler, e eu, completamente de saco cheio de ler coisas virtualmente, acabei comprando o livro.
Ele ficou guardado por alguns meses até que, na minha atual sensação de estagnação, me bateu a vontade de lê-lo. É impressionante como os olhos nadam no fluxo das palavras, como se estivéssemos navegando junto com a corrente, ao termos na nossa frente algo que parece dialogar tanto com a gente.
Eu caminho desde que me entendo por gente, e essa prática foi parcialmente substituída pelo bicicletear na vida adulta, onde precisei de um pouco mais de velocidade e autonomia nos trajetos.
Eu não consegui parar de ler, devorei o livro rapidamente, e agora tenho ganas e vontade de caminhar por todos os cantos do globo terrestre. Essa cidade onde moro ficou limitada demais nos meus planos.

“Tudo o que me liberta do tempo e do espaço me afasta da velocidade.”
“A ilusão da velocidade consiste em acreditar que ela faz ganhar tempo.”

Nunca tinha lido, ou sequer sabia dos hábitos de caminhada de Nietzsche, Rimbaud, Thoreau, Rousseau, Gandhi e outras personalidades citadas no livro. Alguns eu curto, outros não. Mas fiquei impressionado com o fato de que a caminhada era um hábito, e cada um a fazia por suas próprias razões, pois sabiam que geravam mudanças, movimentos necessários para fazer a engrenagem da mente funcionar.
Como descrito no livro, caminhar não é uma ação esportiva, é uma ação básica de todo ser humano (saudáveis, sem dificuldades motoras, de locomoção, etc.). Eu sempre pensei assim, e eu só escrevi o texto do Lapsos de Tempo porque tinha sido questionado, pois não queria sair por causa de um cansaço extremo, mas topei voltar caminhando para casa (em torno de 30 minutos de caminhada).
Esses 30 minutos me revigoram, muito mais que me cansam. O que me cansa é ter que esperar ônibus (que envolve caminhada até a parada, uma longa espera, e outra caminhada da parada até minha casa), ficar esperando um táxi ou ter que lidar com a inconsistência de aplicativos tipo Uber. Se é uma distância plausível, eu realmente prefiro ir caminhando, pensando na vida, observando os elementos do espaço urbano. Não vejo nada disso como um problema.

“O verdadeiro sentido da caminhada não é na direção da alteridade (outros mundos, outros rostos, outras culturas, outras civilizações), mas estar à margem dos mundos civilizados, quaisquer que sejam eles. Caminhar é pôr-se de lado: à margem dos que trabalham, à margem das estradas de alta velocidade, à margem dos produtores de lucro e de miséria, dos exploradores, dos laboriosos, à margem das pessoas sérias que sempre têm algo melhor a fazer do que acolher a doçura pálida de um sol de inverno ou o frescor de uma brisa de primavera.”

Caminhar tem essa coisa de ir contra a forma do sistema mesmo, de você ter uma certa autonomia do caminho, do trajeto, da velocidade, das pausas. Sorte é de quem consegue manter esse hábito. Lendo as páginas deste livro, percorri uma boa parte da minha vida enquanto ser caminhante, que sempre preferiu gastar a sola dos tênis movimentando-se na descoberta de novos e velhos lugares.
Foi a caminhada que me fez o hábito de fotografar coisas quaisquer na ruas, de aguçar a percepção, de entender o que é novo naquele espaço, do que é velho e rotineiro, habitual. Há muito que eu não lia algo tão eu, mas tão eu, a ponto deu achar que foi escrita para mim, pensando em mim. Me sinto próximo de Frédéric Gros, sem nunca ter ouvido falar de sua existência.
Foi caminhando, observando e refletindo sobre tudo isso que envolve o viver, que eu comecei a produzir arte e arriscar escrita. Eu crio a partir do que vivo, do que penso, do que vivencio enquanto um sujeito que almeja descobrir o mundo, e tudo que gira junto com ele.
Enfim, grato por finalizar 2024 e iniciar 2025 com essa leitura. Por mais caminhadas por esses percursos e trajetos tão incertos que compõem a vida.

“Escrever deveria ser isto: o testemunho de uma experiência muda, viva. Não o comentário sobre outro livro, não a explicação de outro texto. O livro como testemunho. Mas eu diria “testemunho” no sentido do bastão numa corrida de revezamento: passa-se o “testemunho” a outra pessoa, e esta, por sua vez, começa a correr. Assim, o livro, nascido da experiência, remete à experiência. Os livros não são o que nos ensinaria a viver (esse é o triste programa dos que têm lições a dar), mas o que nos dá vontade de viver, de viver de outra maneira: encontrar em nós a possibilidade da vida, seu princípio. A vida não cabe entre dois livros (gestos monótonos, cotidianos, necessários, entre duas leituras), mas o livro dá a esperança de uma existência diferente. Logo, ele não deveria ser o que permite fugir da monotonia da vida cotidiana (o cotidiano é a vida como o que se repete, como o Mesmo), mas o que faz passar de uma vida a outra.”

“Como é vão sentar-se para escrever quando nunca se levantaram para viver.” Henry David Thoureau

Lapsos de Tempo #13

Nada é linear

Andar e caminhar sem destino.
Acionar o corpo para privilegiar o movimento nem sempre é fácil. Primeiramente, é sempre interessante encontrar uma boa razão para tal ação. Segundo, é importante pensar em alguns critérios. Terceiro, há de saber como desfrutar destes momentos.
Boas razões temos aos montes. O tédio causado pela vida contemporânea que praticamente nos obriga a interagir com uma tela todo o tempo, a falta de motivação para o lazer ou para o trabalho, um passeio externo para ajudar a arejar a cabeça e as ideias, a apatia da vida comum e monótona que nada traz de novidade, solidão.
Critérios, esses sim precisam ser tidos com mais cuidado. É importante pensar em um local com calçadas largas, quarteirões curtos, comércios, áreas verdes, vestimentas e calçados adequados. Sair sem rumo requer que, minimamente, passemos por paisagens agradáveis, sem grandes monotonias, mas também sem a agitação de um centro urbano densamente povoado. A busca pelo equilíbrio entre algo onde absolutamente nada chama atenção, e de onde existem tantos estímulos sonoros e visuais que chega a doer a cabeça. Lugares com muitos obstáculos tendem a ficar cansativos rápidos demais, com seus desvios e trombadas. É importante esse espaço equilibrado, de respiro e atenção ao infraordinário, às coisas que acontecem e que são de uma grandiosidade comum duvidável. Praças, parques, comércios, cafeterias, lugares comuns, pontos de interesse turístico, obras de arte, calçadas, arquiteturas urbanas que fluem o olhar e os trajetos, barraquinhas nas ruas, rios e canais limpos. Qualquer cena que agrade ao olhar e nos faça ter mais vontade de conhecer cada centímetro dos espaços.
O desfrute é algo que cada sujeito desenvolve por si próprio. Um sujeito enxerga a possibilidade de sair da estagnação quando pensa em se movimentar. Os olhos treinam para enxergar as pequenas coisas do trajeto, os rostos familiares, pixações, bancos, lojinhas, pessoas aleatórias, animais, prédios, praças, áreas verdes… Tudo que pode existir no caminho faz parte do movimento. Há alguns que curtem fotografar algumas coisas que lhe chamam atenção, outros se detém por um momento para desenhar ou versar sobre como se sentem. Outros apenas guardam tudo isso na memória, como algo que foi vivido e que fez parte deste momento do corpo em ação, em uma das habilidades mais básicas do ser humano: caminhar.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 PB

Desimportância

Não importa a passagem dos cursos de água, nem das correntes de vento.
Não importa o percurso de quem caminha ou se locomove na urbe ou na imaginação.
Tampouco importa se haverá onde descansar o corpo, as vistas ou a mente.
Tudo é atropelado e sobreposto em camadas e camadas de informação inútil, que se apodera de todos os campos e não nos fornece muitas alternativas.
Subverter não é ir contra o estabelecido, mas criar caminhos outros apresentando a não-linearidade das formas, sejam físicas ou ideológicas.
Subverter é sair da total desimportância de tudo, que mantém a inação dos sujeitos, para dar importância a tudo que construímos e para um local onde somos alguém, onde somos alguém que desejamos ser. Livres e fortes.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

Lapsos de Tempo #10

Movimento

-Você diz estar cansado pra sair com a gente, mas vai embora a pé até a sua casa a essa hora da noite? Meio contraditório isso, não? Ou você está cansado, ou não está…!

-O cansaço não é algo que me impeça de caminhar. Desde jovem eu aprendi que minhas pernas poderiam me levar onde quisesse nesta cidade. Quando estava na quinta ou sexta série, passei a ir e voltar da escola caminhando, atravessando uns 4 ou 5 bairros. Comecei a fazer isso para economizar vale-transporte e poder gastar com alguma outra coisa. A cidade ficou pequena para mim, pois tomei gosto pelas calçadas, pelas ruas e por esta vida que surge e se movimenta em meio ao concreto cinza e rígido. Passei a observar cada elemento que surgia no meu trajeto. Pixações novas e antigas, portas, portões, janelas, lojas, graffitis, pequenos fragmentos de qualquer coisa que eu achava no chão. Tudo era motivo preu seguir me movimentando e observando. Quando eu estava no ensino médio arrumei um trabalho de office-boy. Minha tarefa consistia em colocar vários envelopes com boletos na minha mochila jeans cheia de patches punks e entregar para clientes da empresa em vários pontos da cidade. Eu criava uma rota analisando o mapa da cidade que vinha nas primeiras páginas do catálogo telefônico, decorava cada esquina que eu deveria virar, e para onde seguir depois de entregar algum envelope. De noite, eu ia para o colégio escutando walkman enquanto observava cada elemento que me chamava atenção no caminho. Não, eu nunca fui um bom estudante. Tive minha educação básica completamente negligenciada, mas caminhar sempre foi algo que me fazia aprender sobre o espaço em que eu me situava. Eu era um observador de tudo que acontecia no trajeto, de qualquer coisa que fugisse do padrão e atravessasse meu olhar. Você começa a perceber a rotina de cada pessoa que cruza o seu caminho, e acha estranho se em algum dia a pessoa não passou por ali, naquela hora. Você passa a enxergar as atividades das pessoas, você sabe em qual velocidade elas caminham, e começa a se perguntar para onde estão indo. Você sabe quando um outdoor foi trocado, quando a lixeira é esvaziada ou quando a rua será varrida. Você conhece os buracos e imperfeições, e comemora quando a passagem de pedestre foi consertada. Você olha o número das casas, percebe sua diversidade estética, e acha ruim quando a placa de número fica em algum escondido. Você presencia os locais de dormitório das pessoas em situação de rua, como arrumam aquele espaço público em um pequeno local aconchegante, e se questiona o que pode ter acontecido quando elas não mais estão ali… Minha vida sempre foi movimentada pelo ato de caminhar. Vieram outros trabalhos, cursinhos pré-vestibular, viagens, eventos punks em diferentes locais da cidade e da região metropolitana. Lá estava eu indo a pé, sozinho ou acompanhado. Caminhar não me traz cansaço como um trabalho repetitivo e exaustivo, ou uma roda de conversa no bar onde dez pessoas gritam para se fazerem ouvidas em meio à tanto estímulo sonoro, visual e alcoólico. Talvez algum dia você me compreenda. Caminhar, para mim, não é uma atividade física, não é algo que me desgasta, não é algo que eu faça apenas quando estou descansado, não é algo que eu faça para emagrecer, ser saudável ou manter a forma. Caminhar é um modo de locomoção ativa, que faz com que eu não dependa de recursos financeiros, aplicativos, tecnologias digitais. Caminhar é vivenciar outras formas de sentir a pulsão da cidade, de descobrir trajetos e curiosidades, de observar elementos que compõem o espaço, de refletir sobre o quanto a cidade odeia seus habitantes, de deixar que algo diferente te faça escapar da normalidade e da apatia. Caminhar, para mim, é descansar enquanto consigo organizar meus pensamentos durante o trajeto. Quando eu caminho, eu sinto que eu empurro o mundo para trás enquanto me lanço adiante em cada passada. É isso que me move. Talvez você nunca entenda…

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW


Boletim de Ocorrência

Fui roubado, furtado, expropriado, larapiado, escamoteado, surrupiado, usurpado e assaltado das piores formas possíveis. Levaram meus desejos, meus sonhos, minhas vontades, minha disposição, meu apetite, meus anseios, meus interesses, minhas aspirações, ambições, pretensões e intenções. Já não me resta nada além de desespero, frustração, rancor, mágoas, decepções, desencantos, desilusões, desgostos, tristezas, fracassos, derrotas e descontentamentos. Queria muito saber se vocês podem me ajudar, me auxiliar, me assistir, me socorrer, acolher, amparar e contribuir para resolver este meu grande, gigante, imenso, enorme, colossal, extenso, vasto, profundo e complexo problema, adversidade, dificuldade, sufoco, imbróglio, revés, transtornante contratempo trágico.
Como farei para retomar minha vida nesta imensidão louca e insana que é viver sem o mínimo possível? Eu quero de volta minha esperança.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW