Sobre a relação da educação com o punk rock – parte 2

Dando segmento à minha pesquisa sobre a relação entre o punk rock e a educação, trago mais algumas letras que eu acho que tem a ver com minhas indagações no post anterior. Escreverei sobre algumas letras das bandas Solstício (RJ), Constrito (SP) e Ayat Akrass (PR). Essas bandas não se encaixam no gênero punk rock, estão mais para um Hardcore, Metalcore, Rapcore, e esses subgêneros. São bandas com letras bem coerentes e conteúdos muito politizados. Apesar de não serem “punk rock“, acho que o meio em que estão inseridas, nesse underground politizado, são bem similares, e eu acredito que poderiam muito bem dividir palco e público no mesmo evento. Para além dessa diferença conceitual, o que desejo com esse texto é fazer pequenas análises, relacionando o contexto educacional com algumas letras de hardcore, trazendo a discussão para uma comparação com a conteporaneidade.

Trago algumas referências ideológicas de Louis Althusser, e concordo plenamente de que o sistema de ensino é um aparelho ideológico do estado, e que a educação, sobretudo pública, vai tentar reproduzir ou impor o que ela entende que seja necessário para manter as engrenagens do estado funcionando corretamente. A existência de escolas técnicas, por exemplo, serve exclusivamente para formar mãos de obra para o mercado, e é o lugar onde as disciplinas de humanas e de criação/expressão são completamente ignoradas. O estado, hoje, sugere que toda educação siga uma linha tecnicista, e ataca diretamente qualquer disciplina que incita o pensamento e a reflexão sobre o ser e sobre o que vivemos. Não estou dizendo que o estado sempre age assim, mas a opinião pública, muito preocupada com o desemprego, pesca esse discurso como se fosse uma referência boa, e se como todos os jovens e adultos devessem tomar essa referência como futuro.

A música “Espaço de Conhecimento” da banda Constrito faz uma crítica direta a esse tipo de política. Baseados em princípios neoliberais e apoiados pelas agências de financiamentos mundiais (Banco Mundial, BID, FMI, Unesco, Unicef, etc), o estado de São Paulo propunha uma reforma educacional na segunda metade dos anos 90 e no início dos anos 2000, e ao que me parece gerou calorosos debates sobre a implantação do sistema. Foi uma imposição que veio de “cima para baixo” e hoje sabemos que os governantes lograram com as reformas. Acredito que esse tipo de política educacional que ignora os anseios dos alunos, colocando todos sob o mesmo patamar de desejos seja uma das formas mais cruel de confinamento dos sonhos. Elas ignoram que os jovens possam trabalhar em qualquer área, e não somente servir de uma futura mão de obra sem especialiades. Contudo elas continuam sendo prioridade nas agendas de muitos governos porque são um prato cheio para a manutenção de políticas conservadoras e ligadas à direita. Manter uma sociedade dividida em classes, com diferentes níveis salariais e cargas horárias de trabalho, é essencial para esse tipo de engrenagem funcionar. Faz o funcionário depender do salário, geralmente baixo, e não permite tempo de pensamentos e reflexões. Isso evita reuniões de trabalhadores para reivindicar melhores condições, afinal só querem manter o salário em dia. A política, assim, atua para manter o mercado aquecido e funcionando, com muita gente produzindo para gerar riqueza para poucos.

“Diminuir drasticamente a carga horária semanal
Nas escolas da rede pública do estado
Gera milhões de desempregados,
Além dos desdobramentos funestos à formação
Da cidadania dos alunos do estado de são paulo,
A liberdade de criação e desenvolvimento
Das escolas estaduais públicas
Vem sendo continuamente desrespeitada.
Um cenário de desprestígio, (de) demérito,
Para a formação nas áreas de ciências humanas;
Tal como o regime militar operou em décadas passadas,
Medidas impostas de “cima para baixo” somente anunciaram
E realizaram um futuro melhor para poucos,
Implementando-se às custas de enormes prejuízos sociais,
A eles (o governo estadual) importa estabelecer uma
Nova regulamentação do mercado de trabalho.
Mediante uma desregulamentação de profissões,
Disciplinando as classes subalternas via elementos
Coercitivos geradores de um “mal mercado”.
Para dirigirem o processo de “atualização”
Do país aos ditames da globalização.
É impensável a formação de indivíduo
Adaptado ao mercado globalizado
Sem o concurso de uma sólida formação
No campo das ciências humanas.
Acreditamos numa escola
Que seja um espaço de conhecimento
E não um espaço institucional,
Disciplinador e autoritário…”

Constrito – Espaço de Conhecimento

Pensando na questão da educação, a interdisciplinariedade de todas as as áreas de conhecimento é fundamental para a libertação individual e coletiva de qualquer sociedade. É preciso entender que tudo que fazemos em nossas vidas são estudos, desde plantar/colher, a escrever/ler, pensar estratégias, dialogar, criar, produzir, refletir. Tudo  faz parte do pressuposto em que várias áreas de conhecimento estão interligadas, e co-dependem umas das outras para se desenvolverem. Pensa em Leonardo da Vinci, que produzia muita coisa em diversas áreas, pesquisava tudo que o deixava curioso, e só assim conseguiu revoluionar vários campos da ciência, como arte, filosofia, medicina, engenharia, e nunca se limitou unicamente a apenas um campo de pesquisa.

A educação, como é hoje na maioria das instituições, priva os alunos desse tipo de ensino, fragmenta o conhecimento e transforma todo o processo em uma disputa meritocrática. Competições de conhecimentos, melhores notas, provas, fracasso escolar, repetência, prêmios e punições. Valorização de algumas áreas em detrimento de outras, e falta de empatia com os alunos que não se adaptam ao modelo. Esse é o tipo de educação voltado exclusivamente para o mercado. Funciona como uma preparação para o que é a vida hoje, essa competição mercadológica pelo melhor cargo, pelo melhor salário, o desprezo pelas áreas de humanas, que costumam pagar menos (nos empregos públicos e privados) que as biológicas e exatas, por exemplo. A música “Taylor” da banda Solstício exemplifica bem essa ideia.

“Não posso calar ou ceder, me entregar ao torpor. Estou tão cheio de ódio, farto do medo e da dor. Noto que sonho acordado, a realidade é ilusão. Moldando os seus pensamentos te mantêm nessa prisão. E conhecer o inimigo para se opor é impossível, com a mídia ao inteiro dispor da estrutura de domínio que ascende às nações. Donos das nossas vidas, grandes corporações.

Somos partes da linha de produção. Peças descartadas com as variações do mercado.
A cada nova tecnologia nos tornamos mais desgraçados. Buscando liberdade nos encantamos com a servidão.

Uns poucos lutam, gritam, mostram sua revolta. Não quero crer que onde estamos já não há mais volta. Mais-valia é um crime e o povo não acorda. A escola não cria cidadãos mas mão-de-obra. E se a família é uma fábrica de competidores, a favela é destinada aos perdedores. Temos as vidas vendidas na bolsa de valores. Nos alienaram ao nosso próprio destino.”

Solstício – Taylor

A minha questão com o ensino por parte do estado ser uma imposição do que os governantes acreditem ser necessários para a manutenção desse tipo de sistema, se deve ao fato de o estado possuir várias opções de ações,  mas que nem sempre ele opta pelo o que é melhor para a população. Pense nos dias de hoje com toda essa questão do corona vírus e quais ações um governante pode adotar para proteger a sociedade. Há experiências de países que já passaram pelo pior, países que estão passando pelo pior e países que irão passar pelo pior. Há recomendações de cientistas, virologistas, médicos e da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o que deve ser feito para que o estrago não seja tão grande. Nesse sentido o governante pode optar por uma quarentena obrigatória, pelo isolamento/distanciamento social e pelo pleno funcionamento de todas as atividades, sem parar nada. Um governante precisa escolher alguma destas alternativas. Ele pode basear suas decisões em estudos científicos, em experiências políticas de países que já estão lidando com o vírus há mais tempo, pelas sugestões da OMS, ou ele pode optar por suas próprias decisões, sem muitos critérios além da convicção pessoal. Cada governante vai decidir pelo que lhe convier politicamente. No sistema de ensino o funcionamento é bem parecido. Os governantes podem optar pelas políticas educacionais que lhe convém, baseado na ciência, na sociedade, nas pesquisas ou no senso comum, que vai funcionar para aquele tempo de mandato. Depois dos 4 anos, pode ser que tudo mude e venha outra política.

A música “Quadro Negro” da banda Ayat Akrass traz um pouco dessa perspectiva. Políticas de estado e de governo que asseguram a manutenção do sistema de acordo com suas próprias convições políticas. É ignorado o que os indivíduos almejam, os estudantes não são escutados e tudo o que irão saber é somente o que o plano político de ensino determina. Óbvio que alguns professores têm ou sentem autonomia e confiança o suficiente para criar seus próprios planos de estudos, mas é difícil fugir do que é imposto, e atualmente a sociedade exige muito mais nesse sentido (isso é uma antítese da participação da comunidade da escola). Eles exigem coisas que não são dever da escola, e reclamam por algo que não sabem o que é, por exemplo, “doutrinar os alunos”.

“Rachaduras e cacos de vidro estilhaçados pelo chão, em frente às mesmas paredes cinza que insistem manter-se erguidas.
O medo conflitando com a perseverança, a esperança e o amor conflitando com a desestruturação e a ruína. A dinâmica neoliberal sangra o ensino defasando o professorado, alienando e destruindo as possibilidades de progresso do proletariado, assegurando a hegemonia burguesa. A mesma parede cinza por trás do quadro negro, silencia perante genocídio previamente calculado da organização popular. Desconstruindo sonhos e programando futuros corpos-bomba.”

Ayat Akrass – Quadro Negro

Pensando um pouco na questão coletiva nesse momento de incertezas quanto ao futuro e de paralização das atividades educacionais como forma de conter a contaminação por Corona Vírus, a educação entra em discussão novamente. Em Minas Gerais o governo suspendeu as aulas sob pressão social, mas a todo tempo tenta criar alguma política de retorno às aulas, ao ensino por distância, ou dar afazeres para os professores que estão de férias obrigatórias nesse período. Incomoda muito o governo manter os professores parados, e há também uma pressão por parte dos pais, que não sabem o que fazer com os filhos em casa. Se você não acredita, basta ver as várias notícias sugerindo atividades e afazeres para praticar com os filhos dentro de casa. Talvez por isso a cobrança em cima da escola sobre a educação com os filhos. Os pais parecem não saber o que fazer, em como educar, e delega isso ao sistema educacional. Mas não é apenas deixar na escola para que a escola ensine. Eles colocam na escola e querem que a escola ensine o que eles acham adequado. Isso inclui não somente as disicplinas tradicionais, mas ideologias e costumes, travestidos de moral. Essa é a minha ideia sobre o que a sociedade entende por papel da escola.

Eu penso, e volto a repetir aqui, que a escola deveria sim existir, porém como um lugar de construção de liberdade, autonomia, respeito e coletivismo. A educação acontece dentro e fora do embiente escolar, e o aprendizado existe em todas as tarefas que exercemos como indivíduos e em nossa interação com outros. Imagine o que estaríamos passando se não houvesse essa competição por insumos médicos, essa pressão de ter que ficar em casa entediado e, sobretudo, essa briga política na corrida pelo bem estar (ou mal-estar) social? Tudo parte da educação e o reflexo dessa sociedade que vemos hoje são resultados das políticas educacionais que vivemos. A relação com os professores é importante, bem como a relação com os colegas, com a família, com a cidade, com os amigos e com os inimigos. Tudo é educação.