Lapsos de Tempo #16

Marquinho

Pulo da janela para o telhado. Sigo adiante sem vacilar os passos. Subo em uma clarabóia, vejo um cachorro dormindo no chão ao lado da cama, seus donos não se importam muito com ele ali. Ele fareja algo, eu olho, sorrio, e sigo meu caminho. Não me importo muito com o que acontece ali. Piso de telha em telha sem fazer barulho. Meus passos são leves e firmes. Consigo saltar sem fazer ruído em um parapeito estreito. Caminho com cuidado. Apesar de experiente, qualquer coisa pode acontecer. Impulsiono meu corpo por uma haste metálica de sustentação, me agarro ao fio e consigo chegar no próximo edifício. Subo pelo relevo que os tijolos deixam na superfície, quase quatro andares até algum lugar seguro. Passo por uma entradinha próxima de uma janela cheia de vasos de plantas. Consigo passar sem derrubar. Entro em uma residência grande, raspo um pouco minhas unhas no sofá Ônyx, ele me pareceu ter uma textura interessante, mas só era feio e sem graça mesmo. Atravesso toda a casa até a varanda, ela sempre está aberta para entrar uma ventilação natural, uma brisa vinda do mar que toda noite dá as caras. Da grade da varanda eu salto para a palmeira que está no pátio. Da palmeira, me agarro em um cipó e me encontro com Marquinho, um sagui que me acompanha nos furtos durante a noite. Marquinho me disse que conheceu um novo lugar, maravilhoso. Marquinho diz que hoje é uma noite especial. Subimos pela mata, pulando de galho em galho, às vezes um telhado surgia, mas nada que impeça nosso trajeto. Somos ágeis.
No topo de uma castanheira milenar, vemos a lua cheia e nos deliciamos com o mais belo visual daquela mandala luminosa que se agigantava em nossa frente. Estou feliz por ter vivido o suficiente para ver isto. Adormeço.
Sonho com várias viagens e lugares, outros seres que habitam este espaço. Meu sonambulismo me deixa fabulado com todas as coisas que conheço nessa passagem. Estou com muita preguiça de levantar, por aqui ficarei.
Foda-se o mundo.

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE, Fuji 200

Pensei

Hoje é o dia mais chuvoso do ano e eu irei retratar isto.
Pensei em fotografar enchentes, mas não é o dia com maior volume de chuvas do ano.
Pensei em registrar cada gota que escorre nas superfícies urbanas, mas me pareceu utópico demais.
Pensei no espelho d’água gerado pela poça, que reflete perfeitamente a sede luxuosa do governo enquanto pessoas pisam em cima deformando a imagem, mas me pareceu uma crueldade clichê demais.
Pensei no jorro de água que os automóveis lançam contra os pedestres, mas me deu ódio só de pensar na cena.
Pensei na serenidade que são as gotas caindo no piso e deixando marcas que rapidamente somem, mas tenho certeza de que uma fotografia apenas não bastaria para isso.
Pensei em registrar o quão carregadas estavam as nuvens, mas a captação da lente não dava conta de chegar até lá.
Pensei em enquadrar a cena de um grupo de pessoas se espremendo em um abrigo na parada de ônibus, esperando um transporte que parece demorar mais a cada dia, mas percebi que ninguém mais usa ônibus em dias de chuva.
Pensei em captar o momento em que um jovem sacode um galho de uma árvore, o que faz com que seu irmão receba todas as gotas que caíram com o menear dos outros galhos, mas não fui rápido o suficiente.
Pensei naquela gota que escorre de cada folha, nos motociclistas uniformizados com trajes que protegem da chuva, com vendedores de sombrinhas nas esquinas, com aquela criança que olha pro céu e tenta desviar-se das gotas que caem, ou mesmo com aquelas pessoas que ainda não sabem se correr molha mais, menos ou igual que caminhar na chuva.
Pensei em cantar Colligere, que cita Fernando Pessoa, quando o vento cresce parece que chove mais.
Mas vi alguém tentando registrar o mesmo que eu, com mais certezas que dúvidas.

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE Fuji 200