Ruim Demais Para Ser mentira #9

Estrada

Quando eu era pequeno viajar costumava ser sempre um caos. Eu nunca fui muito de dormir em veículos (isso mudou há pouquíssimos anos) e minha vida acordado em viagens sempre foi bastante criativa.
Eu tinha meus próprios hobbies passatempos de sobrevivência nas estradas.
Eu gostava bastante de imaginar que eu tinha fôlego, velocidade e habilidades o suficiente para correr ao lado do carro, só que passando pelas paisagens que eu via pela janela. Então o pequeno eu corria por pastos, pulava cercas, subia e descia morros, desviava de árvores e de animais, saltava rios e lagos, voava em pontes, subia e descia de imóveis e construções com certa facilidade, sempre acompanhando a velocidade do veículo em que estava.
Também gostava muito de ficar olhando praquele amontado de eucaliptos que faziam tipo linhas de fuga/perspectiva, com uma linha clara ao fundo. Tentava acompanhar a linha clara que sempre mudava de lugar por entre a sequência de árvores. Ahh, claro, o pequeno eu também transitava por ali desviando das árvores.
Outra atividade legal, sobretudo quando eu me sentava ao lado esquerdo do veículo, era contar quantos carros legais passavam pela estrada no outro sentido. O conceito de “legal” nunca foi bem objetivo pra mim, mas era só algo para passar o tempo mesmo. Claro, o pequeno eu saltava todos estes veículos. Inclusive, corria por cima dos longos caminhões com muita destreza.
Outra atividade legal era encarar as pessoas dos outros carros. Quando um carro nos ultrapassava eu fazia careta para seus tripulantes. Quando a gente ultrapassava alguém eu fazia cara de deboche pro veículo ultrapassado. O pequeno eu passava por cima de todos estes veículos também.
Tudo isso era bem divertido.
As longas viagens entre BH e Guriri, no norte do Espírito Santo, se tornavam bem mais agradáveis com minhas brincadeiras inventadas para passar o tempo.
Porém, algo sempre ocorria que não deixavam as coisas tão divertidas assim. Meus hobbies terminavam, com certa frequência, em náuseas e vômitos. Sim, eu concentrava na paisagem e ficava muito mareado. Uma cena comum nas viagens é a parada para lavar o carro que tinha ficado em condições deploráveis após minhas brincadeiras solitárias. O terror da família era visível quando eu dizia que iria vomitar.
Sorte de quem tinha carro de quatro portas, que eu conseguia abrir a janela para vomitar. Nesse caso, apenas a parte externa da porta ficava com aquela sujeira toda escorrida. Secava rápido e a viagem podia seguir sem parar no posto pro banho. A bagunça era menor.
Viajar comigo era sempre algo caótico. Eu tinha que sempre me sentar na janela pra ficar mais perto da saída. Azar da minha irmã, que frequentemente tinha que ficar no meio do carro, sem onde encostar pra dormir. Ela sim conseguia dormir nas viagens.
Depois de um tempo tomar Dramin para viajar foi obrigatório pra mim.
Isso foi o fim do pequeno eu se aventurando em condições criativas absurdas.

Ruim demais para ser mentira #4

Ondas

Quando eu era pequeno eu tinha muita curiosidade em saber como eram feitas as ondas do mar. Me dava muita curiosidade aquela água que se enrolava e subia, quebrava, chegava na areia e voltava. As ondas sempre me impressionaram.
Íamos muito para a Ilha de Guriri, norte do Espírito Santo, durante minha infância nos anos 90. Eu conhecia cada pedaço daquela ilha, caminhava e pedalava muito por lá, e foi exatamente nas praias desse lugar que meu pai me ensinou a pegar jacarezinho acompanhando as ondas. Ele também me ensinou a não tomar caldo toda vez que a onda crescia na minha frente. A ideia era bastante simples: quando a onda subia, você pulava de ponta no meio dela, cortando a água e saindo do outro lado.
Eu gostava muito de ficar no mar. Eu me sentia super corajoso e costumava nadar sozinho quando não conseguia companhia para entrar na água. Inclusive, uma cena comum da minha infância consistia em eu sair da água sem entender o lugar onde eu estava, e eu sempre parava algum adulto pra me dar a mão e me ajudar a achar meus pais na faixa de areia. Sim, a maré sempre me levava, e aparentemente ninguém se dava conta disso (ou não se importavam).
Minha irmã, alguns meses mais velha que eu, costumava me explicar o funcionamento de várias coisas. Para mim ela era como uma “Sábia da Montanha”, sempre aparecia com as respostas que eu precisava. Especificamente nessa época em Guriri, ao ser perguntada sobre a formação das ondas do mar, ela me disse que no mar haviam mulheres deitadas que ficavam se enrolando na água, e assim surgiam as ondas.
Esse foi um imaginário que ficou na minha mente por muito tempo. Sempre que a onda subia, eu pulava de ponta e abria os olhos dentro da água salgada pra tentar encontrar essas mulheres. Eu fazia isso com uma certa frequência, e na minha memória atual consta apenas uma visão turva e escura da vida aquática. Além da lembrança de ter sempre os olhos muito irritados ao voltar da praia.
Nunca encontrei essas mulheres, mas eu seguia imaginando qual seria o tamanho delas naquelas ondas gigantes que os surfistas ousavam surfar no Hawaii. Eu também ficava imaginando quantas mulheres estavam dentro da água para esse tanto de onda ser formada ao mesmo tempo em vários lugares distintos. Como elas respiravam? Na minha cabeça, as mulheres dentro da água seriam como aquelas atletas de nado sincronizado, que se movem coordenadamente dentro da água. Talvez a modalidade olímpica tenha nascido a partir dessa ideia. Mas acontece que meus esforços em encontrar essas mulheres sempre foram em vão. Nunca as encontrei.
***
Recentemente eu questionei minha irmã sobre essa história, se ela se lembrava disso. Para minha surpresa, ela se lembrava sim. De acordo com ela, essa ideia veio de alguma abertura do Fantástico ou da novela Mulheres de Areia, que mostrava umas mulheres se tonando água ou areia, algo do tipo. Ela via essas coisas na televisão e sempre me contava suas descobertas. Eu cresci achando muitas coisas de forma equivocada e fantasiosa. Talvez eu deva ser mais grato à ela por me fazer viver uma fantasia criativa/racional. Toda vez que escrevo uma memória, me traz uma felicidade por ter uma imaginação fértil. Hoje sabemos que Yemanjá e Poseidon se escondiam das minhas buscas, bem como as sereias encantadoras de marinheiros. Essas pessoas achavam que talvez eu fosse me perder no mar, de uma forma que eu não pudesse pedir ajuda pra achar minha família novamente. E, se assim fosse, eu poderia saber como as ondas são formadas.

Ruim demais pra ser mentira #1

Censura

Quando eu era pequeno, gostava de escutar o disco dos Mamonas Assassinas. Na época era a melhor coisa que podíamos escutar. Me lembro bem de me fantasiar com peças de roupas aleatórias, adereços incomuns e fingir que eu cantava as músicas enquanto corria pela pequena sala, do pequeno apê em que morávamos. Ia da cozinha para os quartos, pulava de cabeça no sofá, rolava no chão. Eu sabia todas as letras de cor e salteadas, e esse momento sempre era o ápice de minha apresentação para um público insano, enlouquecido, fanático, porém imaginário.
Mas uma coisa que eu sempre quis saber é o que significavam as letras das músicas. Eu perguntava para adultos o que significava, e ninguém me explicava. Eu cantava em voz alta com uma alegria imensa, versos que continham analogias que eu não fazia ideia, e na minha cabeça tudo soava bem literal.
Eu tenho um tio que exerceu um papel importante na minha vida de descobertas. Ele me explicava o que significavam as palavras que eu dizia, seja em xingamentos, seja cantando. Uma vez eu disse que ia “arregaçar” alguém na rua. Ele me disse que “arregaçar” significava “dobrar”, e que eu não tinha condições de dobrar ninguém, afinal eu era apenas uma criança, por isso deveria parar de falar isso. Desde então, eu apenas arregaço as mangas, mas não arregaço pessoas, pois não tenho capacidade de dobrá-las.
Certa vez estávamos reunidos em família e começamos a cantar Mamonas Assassinas na sala. Aquela meninada toda berrando os versos “Roda roda vira, solta a roda e vem, me passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém…”. Curiosamente, meu tio começava a falar um som de “pi” horrível, estridente, enquanto cantávamos algumas partes da música: “Roda roda vira, solta a roda e vem, me passaram a mão na PIIII, e ainda não PIIII ninguém…”. De acordo com ele, essas palavras não poderiam ser ditas por crianças. Nós, como crianças responsáveis, passamos a cantar tudo com “pi” estridente, até que os adultos nos proibiram de cantar essa música, pois seus ouvidos já não aguentavam mais esse som horrível proferido pelas crianças.
Eu, como uma criança que investigava o fato, fui atrás do porque das palavras não poderem ser ditas por crianças. A palavra “COMI” eu até entendia a proibição, pois crianças ainda não conseguiam comer outras pessoas, faltavam alguns anos para que virássemos canibais. Logo, se não podemos comer outras pessoas, não podemos falar que comíamos. Mas eu até hoje nunca entendi o porque de não poder falar bunda.
Meu tio nunca explicou.


Gostou da publicação? Anima pagar um cafezinho?

Faça um PIX de qualquer valor para a chave pix@cycoidea.com

Ou considere fazer uma doação voluntária via PayPal:

R$1,00
R$2,00
R$5,00

Ou insira uma quantia personalizada:

R$

La Idea Cyco Punx agradece sua contribuição. Me dá ânimo para seguir em movimentos, sonhando…

Faça uma doação