Imaginokupa #4

Vandalismo

Já fazem três décadas que a casa de dois pisos independentes, número 120 no quarteirão da Rua Mitre, entre as ruas Gonzo e Mortos, serve como retiro de escrita. Inicialmente, o conjunto de casas abandonado foi um grande mistério para a comunidade local, que via o abandono tomar conta da estrutura. Havia uma placa de vende-se, porém não há muitos registros de visitas para negociar o imóvel, tornando o espaço um local de acúmulo de lixos e entulhos. Apesar do tempo desocupado, não foi um lugar em que as pessoas costumavam adentrar.
Circulavam na comunidade vários boatos sobre o que poderia ter acontecido com os antigos donos ou ocupantes, além de lendas extraterrestres, mitológicas e folclóricas que permeavam o imaginário da vizinhança. De assassinatos a abduções, sempre surgiam alguma história nos bares presentes ao redor das casas.
Um grupo de pessoas, certa vez, decidiu entrar na casa para tentar encontrar qualquer pista que tirasse a dúvida de vez sobre a história da casa ou dos proprietários, e para isso bolaram planos de invadir pela janela.
A execução foi bem simples, pois as portas se encontravam destrancadas e nem houve a necessidade de acessar por outra abertura, e em poucos minutos todas as portas e janelas já estavam abertas, com a luz natural do sol acessando os cômodos empoeirados.
O grupo de pessoas, começou um processo de limpeza do local, e catalogou tudo que encontravam pelo caminho. Não haviam documentos, nem objetos eletrônicos, a quantidade de móveis era bem escassa, e nem o governo local possuía registros de propriedade das casas. O grupo de pessoas, que inicialmente fora chamados de vândalos por invadir a residência, entenderam que não foi vandalismo se nada foi destruído, muito menos houvera denúncias nas autoridades locais.
Não havia muito o que fazer que não fosse sentar em roda e tentar discutir possibilidades para a existência do imóvel. As pessoas mais velhas da comunidade não se lembram dos antigos moradores, não há fotografias, não há marcas de que alguém já esteve ali.
Mas algo naquela roda de pessoas pensantes acontecia sem que os membros do grupo se dessem conta. Todas as pessoas começaram a ter ideias sobre a biografia da casa, de seus ocupantes, da estrutura, da arquitetura, do porquê da existência dela. Incrivelmente, surgiram várias teorias, complexas e detalhadas, que começaram a serem registradas em cadernos por cada membro.
A cada dia que as pessoas se reuniam, mais e mais folhas de caderno eram escritas, com diferentes histórias, que ultrapassavam os limites temáticos da casa em que se encontravam, formando todo um ecossistema de escrita e criação literária.
O imóvel, ocupado diariamente, ganhou o nome de Casa Vandalismo, pois era como as pessoas foram rotuladas no início da ocupação do espaço. Com o tempo, mais pessoas se juntavam ao grupo, e outras ideias começaram a ser desenvolvidas. Fanzines e publicações independentes começaram a surgir, impressas em diversos meios artesanais, com temáticas sobre aborto, gênero, comunidade, artes, arquitetura, biografias, astrologia, astronomia, engenharia, sociologia, meio ambiente e ecologia. Não podemos esquecer das inúmeras obras de literatura de ficção, e sua irmã a ficção científica, além do clássico realismo mágico. Era como se a casa fornecesse alguma substância para o cérebro em que a produtividade ligada à criação e à imaginação fossem despertas.
A fama daquele local ganhou o mundo, e haviam listas de espera para que escritores de diversos níveis de experiências, passando por processos de bloqueio criativo, pudessem se juntar à roda e começar a confabular ideias e teorias naquele espaço peculiar.
A Casa Vandalismo se tornou patrimônio do bairro, recebendo visitas de turistas curiosos com a mágica do lugar, e mais teorias surgiam sobre como ele poderia funcionar. Com o tempo inaugurou-se um Retiro de Escrita, que alimentaram as editoras, bancas, livrarias e bibliotecas com muitas obras inéditas de jovens escritores.
Apesar do grande fluxo de ideias, o passado do imóvel segue sendo uma página em branco. Não se sabe como surgiu, quem encomendou e porque passara tanto tempo abandonada. Ninguém ousou questionar as razões mágicas que fazem as pessoas começarem a criar.
As pessoas têm medo de que isso acabe quando souberem a verdadeira razão.

Imaginokupa #3

Carcaça

Carcaça é o nome pela qual ficou conhecida a antiga ocupação de uma guarita vazia ao lado da linha férrea metropolitana. Nos anos 90 um grupo de jovens artistas e muralistas começou a utilizar o imóvel abandonado para guardar materiais como tintas, rolos, extensores, misturadores e equipamentos de escalada que seriam utilizados nas ações de intervenção que rolavam na cidade. O grupo foi conformado por 20 pessoas que esperavam pacientemente pelo momento perfeito de acessar os trilhos e produzirem grandes murais com motivos políticos nas estações de trens, vagões, construções próximas e nos muros que dividem as ruas dos trilhos. As ações eram coordenadas para que ninguém fosse detido e todo o processo fosse feito em poucos segundos ou minutos.
A guarita, já sem uso pelos oficiais de vigilância devido à modernização e robotização do sistema, era um ponto de observação e planejamento logístico para as intervenções. Ela possuía dois andares, sendo que o de cima, com acesso pela escada externa, era utilizado apenas para observação. Já o de baixo possuía uma porta grossa embaixo da escada, onde eram guardados materiais de pintura, vestimentas, e demais equipamentos necessários para a intervenção. O segredo da ocupação consistia em um piso falso, que dava acesso a um tipo de subsolo, ligado por um túnel até uma caixa de entulhos e materiais de manutenção dos trilhos. Todos os materiais e equipamentos ficavam devidamente escondidos e protegidos até o momento que a ação pudesse ocorrer sem problemas.
A ocupação ficou ativa por alguns anos, e promoveu neste tempo cerca de 275 ações de intervenção que envolviam propaganda política radical e autônoma, gerando guerra contra as empresas publicitárias que colocavam seus outdoors nos mesmos espaços e plotavam os vagões com publicidade de empresas privadas. Iniciou-se uma verdadeira batalha por espaços e durante muito tempo não houve informações de quem estava pintando os murais durante a madrugada.
Uma das táticas utilizadas pelo grupo rebelde foi a de hackear o sistema de segurança automatizado através da frequência de rádio e de um sistema de cabeamento do subsolo grampeado. Foi através das técnicas de contra-informação que as ações puderam ser coordenadas entre os membros, e teve seu relativo sucesso por muito tempo.
Com a virada do milênio, os sistemas de segurança ficaram mais rígidos com o medo do bug internacional que poderia atrapalhar todo o sistema de fluxo de dados, e todo o sistema de hackeio e grampo foi descoberto. Felizmente, a guarita foi desocupada antes que alguém pudesse ser detido. Ainda não se sabe bem quem foram estes ocupantes e jovens, mas suas ações ficaram marcadas, e o resquício do imóvel segue de pé, sendo tomado pela vegetação local.
A Okupa Carcaça foi um marco na subcultura do grafite e da intervenção artística de cunho político, radical e autônomo, e a influência dos murais ficou marcada na memória de muitos habitantes locais e grupos organizados.

Gira Sudaka

É com muita satisfação que eu anuncio que entre os dias 28/07 e 30/08 farei parte da tour sulamericana do livro “Casa Encantada“, do meu amigo Baruq. Será uma jornada corrida, intensa e a expectativa é de que será igualmente maravilhosa.
Durante a tour, além de realizarmos o lançamento do livro, apresentaremos sobre a okupa Kasa Invisível e conversaremos com as pessoas de diferentes centros sociais e ocupações o que andam fazendo em suas regiões, como fazem, como se organizam, seus históricos de luta e de resistência.
O lançamento irá passar por espaços autônomos em cidades do Chile, da Argentina, do Uruguai e por mais cinco estados brasileiros (RS, SC, PR, SP e RJ).
Será uma forma de ampliar a rede de solidariedade entre espaços autônomos e coletivos em processos de luta, sobretudo àqueles que praticam formas de ação direta.

Como muitos sabem a organização autônoma e a criação e gestão de espaços de resistência é o tema de minha pesquisa na pós-graduação em educação (leia a dissertação clicando aqui). Acredito que esta viagem também poderá agregar aos meus estudos mais informações e ideias em como prosseguir com esta pesquisa em outros âmbitos também.
Porém, para uma pessoa autônoma como eu (sem férias, sem 13º, sem descanso), os custos da viagem precisarão ser arcados de outras maneiras. Dito isto, lançamos uma campanha de arrecadação de fundos para que pessoas situadas no continente europeu possam colaborar (conhece alguém que tá lá?, mande este link) e também fizemos alguns eventos para arrecadar dinheiro com a venda de bebidas.
Outra forma de nos ajudar é adquirindo por R$60 o pôster em serigrafia que produzimos fazendo alusão ao tour (imagens logo abaixo) e também a partir da contribuição voluntária de qualquer valor pela chave pix cyco.idea@gmail.com (qrcode aqui).

A ideia é levar esses posters para serem vendidos durante a viagem também e assim arrecadar fundos, sobretudo, para alimentação durante a viagem.
Enfim, a expectativa está alta, a ansiedade também. Se tudo der certo, postarei atualizações da viagem aqui no blog e no Instagram também.

Imaginokupa #2

Armazém Fandango

No encontro de esquina entre as ruas Donati e Kanno Suga há um imóvel que serviu de abrigo, durante décadas, a um antigo armazém gerenciado por duas gerações da família Maldonado. O armazém, bem tradicional, vendia peças de frigorífico, charcutaria, laticínios e embutidos industrializados para os habitantes do bairro Jardim. Com o falecimento precoce do patriarca da segunda geração, os jovens herdeiros do negócio desistiram de continuar no segmento devido ao penoso trabalho de abastecimento, venda e logística que só o Sr. Maldonado conhecia. Outra questão a se considerar foi o fato de que muitos fornecedores, desconfiados da capacidade de gerência dos jovens, passaram a não mais seguir o modelo de consignação, o que gerou dívidas para a família.
Após a desistência de seguir com o negócio ativo, o imóvel ficou abandonado por 17 anos e se tornou alvo de disputas judiciais intrafamiliares que não chegaram a acordo algum sobre a utilização ou venda do antigo armazém. Todos os móveis e equipamentos foram abandonados dentro do espaço, e as portas e janelas foram lacradas para evitar invasões.
Um grupo de jovens moradores da região que costumavam se reunir na porta para ouvir música punk, e que se motivavam pelas escutas das histórias do antigo armazém contadas por seus familiares, certa vez decidiram escalar o imóvel por fora para tentar acessar a parte interna da casa. A construção possui dois pavimentos, sendo que o de baixo tem características de loja, com janelas grandes de vidro, toldos externos e um salão amplo; e o de cima eram cômodos menores, que serviam de armazenamento e preparo dos produtos que eram vendidos no armazém.
Foi através de um cano que desce a partir da calha que os jovens conseguiram acesso à uma pequena varanda situada no segundo andar, onde o buraco no vidro quebrado da janela adentrava logo na despensa. Os jovens ficaram impressionados com a quantidade de alimentos, equipamentos e suprimentos que foram abandonados no local, e se perguntavam como tudo isso poderia funcionar.
Foi através de vídeos na Internet que surgiu a curiosidade sobre o fazer manual, e de aprender a manusear os vários equipamentos e utensílios domésticos que já estavam em desuso por obsolescência. O grupo de jovens se reuniu e decidiram ocupar o armazém para que ele pudesse voltar a funcionar e a fornecer alimentos para a comunidade.
O primeiro passo foi fazer um mutirão de limpeza e descarte dos suprimentos com validade vencida. Foram descartados mais de 250 kg de enlatados e embutidos a vácuo, além de ter sido necessário 27 dias de retirada de entulhos, poeira e lixo que se acumularam durante anos. A energia foi ligada através de uma conexão direta com o poste de energia que se erguia logo em frente ao imóvel. A água canalizada passou a ser fornecida através do rompimento do cadeado que trancava o registro, método antigo praticado pela empresa que gere o abastecimento de água, e foi feito o desvio de um encanamento entupido para que a água pudesse voltar a circular no imóvel. Os equipamentos de corte, preparo e empacotamento passaram por processos um pouco mais trabalhosos: tiveram que ter algumas de suas partes desmontadas e substituídas por peças novas similares, além da limpeza e lubrificação dos mecanismos de funcionamento. A maior parte desta manutenção foi feita lendo manuais antigos e assistindo a vídeos, pois aprender a manusear e a manter o maquinário havia se tornado um interesse coletivo daqueles jovens.
Após a reabertura das portas e janelas, alguns eventos começaram a ser realizados no local como forma de angariar recursos para a manutenção do espaço. Primeiro ocorreu um grande encontro de pessoas que colam adesivos nas ruas. Vários adesivos foram colados nos postes, e a arrecadação com venda de cervejas ajudou a recompor os vidros das janelas. Um DJ local manteve o som tocado em volumes aceitáveis durante todo o dia de evento para convidar pessoas a conhecerem o espaço. Uma segunda atividade, que envolveu músicos espontâneos de qualquer ritmo e instrumento, durou 5 dias ininterruptos e movimentou muitas pessoas que transitavam pelo local e doavam moedinhas para o grupo que tocava sons improvisados, no vai e vem de músicos e de instrumentos. Neste mesmo evento, as paredes externas receberam pinturas novas, além de alguns grafites nos toldos para disfarçar o desbotamento das lonas. Esse evento de improvisação musical ficou conhecido como Fandango Louco, e se tornou o principal evento de arrecadação financeira do local antes do armazém voltar a funcionar.
Com boa parte dos equipamentos em pleno funcionamento, os jovens punks iniciaram uma difícil tarefa de mobilizar a comunidade local para doar alimentos e suprimentos para a nova ocupação. Porém, a iniciativa não foi bem sucedida, pois os olhares de desconfiança da comunidade em relação aos jovens prevalecia em relação à verdadeira intenção dos mesmos.
O jogo virou quando o tio de um dos jovens que pesquisava de forma autodidata fermentação natural e culturas microbiológicas propôs o início dos testes no imóvel, pois ele apresentava condições ideais de manutenção e preparo. Foi através deste mesmo tio que os jovens conseguiram contato com hortas e estufas comunitárias, e o antigo armazém se tornou um ponto de pesquisa, compartilhamento de técnicas e um local para escoar a produção dos vegetais e hortaliças plantados na região.
A iniciativa foi tão bem aceita, que outras pesquisas surgiram no local para produzir os mais diversos alimentos preparados com vegetais, em consonância com as culturas e com os fermentados que já estavam em atividade no local. Daí surgiram tofus, kimchis, kombuchas, “linguiças” vegetais, hambúrgueres vegetais, queijos/leites vegetais, pães, chucrutes, vinagres, cervejas, vinhos, cogumelos, tempehs, missos e uma variada gama de temperos.
A atividade do armazém ocupado chamou atenção da comunidade imigrante oriental, que abraçou a causa e passou a ajudar os jovens nas criações, preparos e vendas dos diferentes produtos.
Após alguns anos de atividade, a ocupação continua existindo, ainda sem o conhecimento da família que abandonou o imóvel. Atualmente, o local é fonte de renda para os jovens que ocuparam e decidiram restaurar o imóvel, além de ser ponto de encontro para atividades musicais espontâneas ao ar livre, onde tudo começou. O bairro Jardim abraçou o antigo armazém, pois é o único que ainda restou no bairro, já dominado por grandes cadeias de supermercados. O nome da ocupação “Armazém Fandango” é uma homenagem à esta atividade musical que trouxe recursos e pessoas para conhecerem o imóvel, e que apostaram forte na potencialidade do espaço em prover alimentos de qualidade, compartilhamento de conhecimentos e técnicas, e de ser um ponto de resistência contra as corporações alimentícias que dominam a região.