2024 – #23 – Vigilância

Na rua de cima há uma casa sem telhados e sem janelas, somente paredes. As portas fechadas possuem aberturas de vidro, sem vidros. Todo o espaço está tomado por mato. Aí complicaria muito a situação. Virando a esquina há outra casa tomada por matos, mas vários anúncios de vende-se e aluga-se me faz pensar se alguém realmente quer viver neste im´óvel. As paredes estão desgastadas, janelas e portas enferrujadas, difícil ver o que tem dentro. Caminhando mais um pouco há outra casa, velha, de arquitetura neocolonial. Suas janelas e portas estão tampadas por blocos de tijolo formando um grande paredão. As janelas do segundo andar seguem o mesmo estilo de tijolos que tampam o que poderia entrar de luz e ar. Vê-se mofo e umidade escapando por algumas frestas, além de uma vegetação parasitária que dá as caras por várias frestas e fissuras nas paredes. Fios de arame farpado decoram a fachada da casa. Descendo a rua em diagonal há uma casa também tomada por matos e entulhos, oriundos de vários processos de destruição. O teto desabou levando consigo a estrutura de sustentação do forro e do assoalho, revelando mais espaços vazios e abandonados. Aparentemente houve uma enchente, pois há marcas de água barrenta até uma certa altura da parede. Também há restos de móveis largados onde provavelmente seria um quarto de criança. Descendo mais um pouco há uma casinha pequena, o telhado está levemente danificado, com algumas telhas faltando e parte da sustentação está comprometida. Entro, verifico as paredes que estão de pé, com socos e empurrões verifico o estado das colunas de sustentação. Avalio as condições do telhado de maneira pormenorizada. Também observo a quantidade de matos, entulhos e o quanto de energia eu teria que gastar arrumando tudo isto.
Achei minha próxima casa.

2024 – #22 – Manejo

Gire a alavanca para o lado direito segurando com a mão esquerda. Puxe o pino principal e afrouxe o pino auxiliar. Com o peso do ombro aperte o cabo e ajeite-o próximo da costela, mas não em cima. Gire o corpo 35° para que a peça principal seja encaixada na ponta. Puxe o elástico contra o corpo e ajeite dentro do espaço reservado para ele. Carregue com as bombinhas pelo compartimento superior, depois ajeite o objeto no tripé. Fique deitado, com um dos braços apoiado no chão e outro segurando a alavanca do elástico. Pelo orifício superior com lentes você consegue verificar se está tudo correto. A lente reflete ângulo de despejo, engrenagem firme, equilíbrio dos vetores horizontais e diagonais. Cuidado com cabelos e óculos, pois podem atrapalhar o bom funcionamento. Segure a respiração quando estiver pronto. O gatilho estará na lateral direita, preso ao suporte mecânico anterior. Uso único. Use com sabedoria e moderação.

2024 – #21 – Progresso

Anmol governava um pequeno povoado na região dos mares de morros da Península de Wayooth. O povoado possuía uma limitação que estava na ordem da arrecadação de impostos, pois não conseguia desenvolver-se por falta de recursos financeiros. Anmol pegou empréstimos bilionários e começou a transformar todos os morros em terras planas, zoneando em regiões de residências de 3 e 4 pavimentos. Estas residências eram destinadas a receber, principalmente, famílias imigrantes que se refugiavam no local e que se qualificavam para receberem um aporte financeiro do Estado pra se instalarem no local. O sucesso foi tamanho, que a cidade cresceu e se desenvolveu a ponto de saturar a Península de pessoas, veículos, resíduos industriais e domésticos, poluição e áreas impermeáveis. A situação ficou insustentável, gerando um êxodo de pessoas para outros locais, uma escassez de serviços e mão de obra, fazendo com que parte da agora cidade de Wayooth se tornasse completamente abandonada e em ruínas.
O Estado não deu conta de seguir com os aportes financeiros, nem com a manutenção de uma cidade que se desenvolvia e crescia desordenadamente.
Todo o bioma local foi destruído.
Wayooth se tornou um símbolo do progresso e do abandono de forma muito veloz.
Anmol não vive mais em Wayooth.

2024 – #20 – Terreno

Freihsh é um povoado semi-nômade situado na planície costeira de Rash. Suas casas são construídas de forma que um dia, seguramente, serão destruídas pelo tempo. Os habitantes do povoado são relativamente desapegados de bens materiais, pois possuem uma noção de que os objetos não precisam durar para sempre. Isso movimenta a criatividade e a produção e pesquisa no/do bioma local. As famílias possuem terrenos, previamente demarcados, e sempre estão construindo novos lugares para residência enquanto entendem a deterioração natural da atual. Os lotes são revezados entre residências a serem construídas, residências em deterioração, horticultura e plantações diversas, recuperação da mata natural e áreas coletivas, que podem serem utilizadas de forma coletiva para lazer e vida comum. Esta maneira forneceu uma maneira prática de nunca esgotar o solo, além de incentivar a pesquisa de novos materiais e formas de construir que não seja tão agressiva.

2024 – #19 – Artifício

Dihn passava os dias nas ruas da cidade de Roskom aplicando pequenos golpes na elite local. Como muita astúcia desenvolveu habilidades mágicas e ilusionistas, o que ajudaram a ter mãos e movimentos sutis o suficiente para que seus furtos passassem despercebidos. Era muito difícil compreender como fazia, ou mesmo prever seus movimentos. Rápido, ágil e com muita destreza desviava de pessoas, obstáculos e câmeras, e se especializou em furtos de objetos de valor. Furtava de ricos e vendia para eles mesmos através de um mercado paralelo de itens precioso, que circulavam apenas em uma única classe social. Dihn tinha a certeza de que cada uma destas pessoas eram lobos famintos por status e ansiavam fazer de tudo para derrubar outros lobos. Dihn aproveitava a fragilidade da noção de poder que tinham para que com o tempo destruíssem a si mesmos.

2024 – #18 – Luz

Um sistema de comunicação foi desenvolvido entre as comunidades de Sartin e de Tlaxup, na cadeia montanhosa de Concatenipo. Sartin está situada no topo plano do pico de Granem e Tlaxup foi desenvolvida no planalto de Gripome, a 150km aproximadamente de distância entre as comunidades. Entre elas alguns vales e mares do morros, com vegetação densa em algumas partes, matas ciliares e cursos de rios. Para as cidades se entenderem sem a necessidade da mobilidade dificultada, códigos luminosos e coloridos foram combinados para que o diálogo pudesse ser feito. Um sistema de coloração por minério e água é utilizado em canais similares a fibras óticas construídos com canaletas de bambu e cipó. A intensidade da luz, a coloração e o tempo em que fica acesa funciona para representar letras, sílabas e palavras. A recepção do sinal luminoso é feita através de rochas esculpidas em formato de concha, polidas para iluminarem bem e voltadas para a saída de luz da canaleta da outra comunidade. Assim, as duas comunidades se ajudam sempre que necessitam de algo em que a outra possa auxiliar.

Imaginokupa #3

Carcaça

Carcaça é o nome pela qual ficou conhecida a antiga ocupação de uma guarita vazia ao lado da linha férrea metropolitana. Nos anos 90 um grupo de jovens artistas e muralistas começou a utilizar o imóvel abandonado para guardar materiais como tintas, rolos, extensores, misturadores e equipamentos de escalada que seriam utilizados nas ações de intervenção que rolavam na cidade. O grupo foi conformado por 20 pessoas que esperavam pacientemente pelo momento perfeito de acessar os trilhos e produzirem grandes murais com motivos políticos nas estações de trens, vagões, construções próximas e nos muros que dividem as ruas dos trilhos. As ações eram coordenadas para que ninguém fosse detido e todo o processo fosse feito em poucos segundos ou minutos.
A guarita, já sem uso pelos oficiais de vigilância devido à modernização e robotização do sistema, era um ponto de observação e planejamento logístico para as intervenções. Ela possuía dois andares, sendo que o de cima, com acesso pela escada externa, era utilizado apenas para observação. Já o de baixo possuía uma porta grossa embaixo da escada, onde eram guardados materiais de pintura, vestimentas, e demais equipamentos necessários para a intervenção. O segredo da ocupação consistia em um piso falso, que dava acesso a um tipo de subsolo, ligado por um túnel até uma caixa de entulhos e materiais de manutenção dos trilhos. Todos os materiais e equipamentos ficavam devidamente escondidos e protegidos até o momento que a ação pudesse ocorrer sem problemas.
A ocupação ficou ativa por alguns anos, e promoveu neste tempo cerca de 275 ações de intervenção que envolviam propaganda política radical e autônoma, gerando guerra contra as empresas publicitárias que colocavam seus outdoors nos mesmos espaços e plotavam os vagões com publicidade de empresas privadas. Iniciou-se uma verdadeira batalha por espaços e durante muito tempo não houve informações de quem estava pintando os murais durante a madrugada.
Uma das táticas utilizadas pelo grupo rebelde foi a de hackear o sistema de segurança automatizado através da frequência de rádio e de um sistema de cabeamento do subsolo grampeado. Foi através das técnicas de contra-informação que as ações puderam ser coordenadas entre os membros, e teve seu relativo sucesso por muito tempo.
Com a virada do milênio, os sistemas de segurança ficaram mais rígidos com o medo do bug internacional que poderia atrapalhar todo o sistema de fluxo de dados, e todo o sistema de hackeio e grampo foi descoberto. Felizmente, a guarita foi desocupada antes que alguém pudesse ser detido. Ainda não se sabe bem quem foram estes ocupantes e jovens, mas suas ações ficaram marcadas, e o resquício do imóvel segue de pé, sendo tomado pela vegetação local.
A Okupa Carcaça foi um marco na subcultura do grafite e da intervenção artística de cunho político, radical e autônomo, e a influência dos murais ficou marcada na memória de muitos habitantes locais e grupos organizados.

2024 – #17 – Harmonia

Blates é uma comunidade construída a partir da noção da pesquisa e autossuficiência nos trópicos. Ela é conformada por um conjunto de casas baixas, intercaladas por jardins, hortas, pomares e vegetações ciliares. As casas, residenciais em sua maior parte, possuem grandes aberturas para entrada de luz, telhados com vegetação para proteção do calor e sistema de coleta e reaproveitamento de água através de canos, filtragem, decantação e reutilização para irrigação em tempos de clima seco e frio. As famílias semeiam e colhem coisas distintas para promover trocas sem a utilização de moedas. Todo o trabalho de construção e desenvolvimento é feito a partir de regras preexistentes e acordadas pela comunidade. O conhecimento é compartilhado entre todos para que seu desenvolvimento não seja comprometido a longo prazo.

2024 – #16 – Distração

Dobro a esquina durante o início da noite, passo pelo portão principal, sigo próximo à cerca agachado, buscando pontos de escuridão. Olho ao redor e memorizo tudo o que se passa. Aguardo toda e qualquer movimentação espontânea. Apuro meus ouvidos, aguço meu olhar. Caminho por entre arbustos e árvores, subo pequenos morros, caminho ziguezagueando, ninguém pode prever meus movimentos. Consigo um local para me deitar, com uma boa visão do evento. Árvores e arbustos me protegem. Fico em silêncio observando. Espero o momento certo.
***
Hoje é um grande dia, eu serei condecorado por bravura de guerra devido às minhas destrezas na batalha campal. Comandei um pelotão de 70 homens, que defenderam com a vida a minha integridade física e demonstraram seu amor ao rei. Hoje eu desfilarei pelo vilarejo com todos os símbolos desta grande vitória do Reino. Ninguém pode me deter.
***
“Fhhhlslslshhww” foi o som da flecha atravessando a cabeça do Comandante Geral dos Guardas do Reino de Angostu.


Gira Sudaka

É com muita satisfação que eu anuncio que entre os dias 28/07 e 30/08 farei parte da tour sulamericana do livro “Casa Encantada“, do meu amigo Baruq. Será uma jornada corrida, intensa e a expectativa é de que será igualmente maravilhosa.
Durante a tour, além de realizarmos o lançamento do livro, apresentaremos sobre a okupa Kasa Invisível e conversaremos com as pessoas de diferentes centros sociais e ocupações o que andam fazendo em suas regiões, como fazem, como se organizam, seus históricos de luta e de resistência.
O lançamento irá passar por espaços autônomos em cidades do Chile, da Argentina, do Uruguai e por mais cinco estados brasileiros (RS, SC, PR, SP e RJ).
Será uma forma de ampliar a rede de solidariedade entre espaços autônomos e coletivos em processos de luta, sobretudo àqueles que praticam formas de ação direta.

Como muitos sabem a organização autônoma e a criação e gestão de espaços de resistência é o tema de minha pesquisa na pós-graduação em educação (leia a dissertação clicando aqui). Acredito que esta viagem também poderá agregar aos meus estudos mais informações e ideias em como prosseguir com esta pesquisa em outros âmbitos também.
Porém, para uma pessoa autônoma como eu (sem férias, sem 13º, sem descanso), os custos da viagem precisarão ser arcados de outras maneiras. Dito isto, lançamos uma campanha de arrecadação de fundos para que pessoas situadas no continente europeu possam colaborar (conhece alguém que tá lá?, mande este link) e também fizemos alguns eventos para arrecadar dinheiro com a venda de bebidas.
Outra forma de nos ajudar é adquirindo por R$60 o pôster em serigrafia que produzimos fazendo alusão ao tour (imagens logo abaixo) e também a partir da contribuição voluntária de qualquer valor pela chave pix cyco.idea@gmail.com (qrcode aqui).

A ideia é levar esses posters para serem vendidos durante a viagem também e assim arrecadar fundos, sobretudo, para alimentação durante a viagem.
Enfim, a expectativa está alta, a ansiedade também. Se tudo der certo, postarei atualizações da viagem aqui no blog e no Instagram também.

2024 – #15 – Medo

Sekram é uma comunidade instalada e desenvolvida em um terreno insular ao sul do continente. Um lugar frio, com densa corrente de ar e pouco explorado por humanos devido à seu terreno muito acidentado e de difícil acesso. Apesar das suas particularidades geológicas, morfológicas e climáticas Sekram e seu entorno possui uma ampla biodiversidade de fauna e flora.
Sekram se desenvolveu inicialmente como base de pesquisas científicas, e alguns cientistas passaram a dedicar-se às pesquisas no local de forma integral ali se instalando. Inicialmente ficavam apenas na base e arredores próximos, pois o restante da área era de difícil acesso. Mas com o tempo e com o aumento do número de habitantes, explorar outras regiões se tornou uma tarefa um pouco mais fácil.
Aprender a conviver com as diferentes espécies da fauna e também domesticar a flora local era essencial para se manterem ali. Tudo era desconhecido e foi durante a convivência e experiência que a vida local passou a prosperar de alguma forma.
De início sentiram um grande temor, receio do ecossistema devorar a todos. Com o tempo se acostumaram.



Lapsos de Tempo #15

Passeio

Vejo o que ele tem na mão, me animo. Me vem uma felicidade extrema que não consigo me conter. Vou até ele e sinalizo que concordo com sua atitude. Ele coloca algo no meu pescoço enquanto olho para o Breno ao meu lado querendo que seja feito o mesmo com ele. Nós, afobados, saímos correndo até a porta de vidro. Ele abre e, por mais que façamos força, não conseguimos correr livremente. Vamos tentando caminhar, mas Breno não consegue andar em linha reta e toda hora me fecha. Breno também faz com que nossas guias se enrosquem, e isso dificulta o andar. De vez em quando eu perco a paciência com Breno, mesmo ele sendo muito maior que eu. Eu cheiro alguns lugares, ele vem atrás de mim fazendo o mesmo. Fico me perguntando se ele tem a própria personalidade e interesses. Deixo um pouco de urina por onde passo. Gosto de marcar alguns lugares e deixar registrada a minha presença ali. Breno me imita em tudo. A cidade é viva, e nós que fazemos ela viver.
Vejo algumas coisas no trajeto, cheiro e não me agrada muito. Já Breno morde tudo antes de saber o que é. Ele morde, baba e cospe fora, não possui muitos critérios. Seguimos pela avenida vendo todo o movimento de automóveis barulhentos, ao mesmo tempo que acompanho o voar silencioso de uma borboleta. Isso me detém um pouco no processo de contemplação. Breno não enxerga nada disso. Passa por cima de qualquer coisa que está no seu caminho.
Na esquina um cheiro chama a minha atenção. Percebo que Breno sentiu a mesma coisa. Nos entreolhamos e fomos correndo, forçando o chão para chegar lá o mais rápido possível. Era um gramado a meia altura, recém cortado, cheirinho de mato molhado, algumas flores solitárias enfeitavam. Eu olhei para Breno, ele me olhou. Fomos até lá, subimos, cheiramos o melhor ponto possível, demos duas voltas em torno de nós mesmos e soltamos o som mais gostoso do mundo: “-ahhhhwwwwff!”.
Sim, o único em que concordamos é que cagar na grama é o melhor momento do dia.

Olympus Pen-EE – Shangai GP3 100 PB – La Idea, 2023


Horizonte

Quando estou caminhando, correndo, pedalando, me locomovendo de uma maneira geral, olho para o horizonte. Acho interessante como que as coisas no primeiro plano passam de maneira muito mais rápida que o fundo da cena.
Fico pensando no que são nossos sonhos, desejos, o que queremos e o quanto nos propomos a buscar o que almejamos.
Fiquei pensando nessa analogia com os planos da paisagem. O que está muito próximo, chega rápido, mas é isso, não tem nada demais além do que está na na cara. Logo é substituído por algo tão efêmero quanto.
O que está a médio prazo, passa a uma velocidade menor, podemos ver com calma, analisar, escolher, temos tempo para observar. O primeiro plano, veloz, às vezes atrapalha um pouco observar o que está a média distância, mas não impede.
Já o que está no fundo, no horizonte, passa tão devagar que nem parece que estamos nos movendo. Ali temos um amplo leque de possibilidades até conseguir chegar lá. E pode ser que nem seja lá onde queremos chegar. Tudo depende do caminho. Mas é um ponto de fuga, algo onde miramos.
Talvez seja por isso que a utopia seja tão metaforizada como a ideia do horizonte.
Ele está longe, mas está ali. Só saber ir com calma.

Olympus Pen-EE – Shangai GP3 100 PB – La Idea, 2023

2024 – #14 – Conversa

Os desafios presentes na relação intercomunitária entre Jantji e Botha passavam, sobretudo, pela forma histórica em como foram conformadas suas políticas.
As duas comunidades eram muito diferentes entre si, mas por muito tempo pensaram fazer política de uma forma saudável.
Historicamente, Jantji foi desenvolvida a partir da dissidência dos habitantes de Botha. Ainda que não houvesse imposições ou penalidades por parte de Botha, os habitantes de Jantji pensaram ser uma boa e respeitosa ideia seguir uma política de sempre aceitar as sugestões de Botha. Assim duraram algumas décadas, até que a população Jantjie compreendeu que seguir desta forma não fazia sentido para uma comunidade dissidente. Ou se tornava independente e soberano, ou seguia as vontades externas.
A comunidade ainda não sabia muito bem como lidar com essa alteração, ou em como seguir prosperando sem o auxílio de Botha, mas deram um primeiro e enorme passo para se pensar outra forma de vida: Aprenderam a dizer “não” e isso gerou perguntas que precisavam de respostas.
Assim seguiram caminhando.


2024 – #13 – Caos

Dizem que viver em liberdade faz com que maiores conexões possam ser realizadas. Dito isto, também podemos dizer que várias conexões podem ser desfeitas a qualquer momento. Uma unidade pode se tornar grande o suficiente se conseguir se conectar com seu par, e com seus pares por conseguinte. Isso é imprevisível. Isso foge à qualquer tipo de regra, limites ou mesmo razões.
O caos é o agente que possibilita um viver em liberdade, em movimento, de forma imprevisível, inconstante, aumentando e diminuindo as conexões com outros. Fornece fronteiras permeáveis que apenas nos dão uma noção do que é aquele limite e se pode ser ultrapassado ou não.
Seu contrário é a completa apatia.


Ruim Demais Para Ser mentira #9

Estrada

Quando eu era pequeno viajar costumava ser sempre um caos. Eu nunca fui muito de dormir em veículos (isso mudou há pouquíssimos anos) e minha vida acordado em viagens sempre foi bastante criativa.
Eu tinha meus próprios hobbies passatempos de sobrevivência nas estradas.
Eu gostava bastante de imaginar que eu tinha fôlego, velocidade e habilidades o suficiente para correr ao lado do carro, só que passando pelas paisagens que eu via pela janela. Então o pequeno eu corria por pastos, pulava cercas, subia e descia morros, desviava de árvores e de animais, saltava rios e lagos, voava em pontes, subia e descia de imóveis e construções com certa facilidade, sempre acompanhando a velocidade do veículo em que estava.
Também gostava muito de ficar olhando praquele amontado de eucaliptos que faziam tipo linhas de fuga/perspectiva, com uma linha clara ao fundo. Tentava acompanhar a linha clara que sempre mudava de lugar por entre a sequência de árvores. Ahh, claro, o pequeno eu também transitava por ali desviando das árvores.
Outra atividade legal, sobretudo quando eu me sentava ao lado esquerdo do veículo, era contar quantos carros legais passavam pela estrada no outro sentido. O conceito de “legal” nunca foi bem objetivo pra mim, mas era só algo para passar o tempo mesmo. Claro, o pequeno eu saltava todos estes veículos. Inclusive, corria por cima dos longos caminhões com muita destreza.
Outra atividade legal era encarar as pessoas dos outros carros. Quando um carro nos ultrapassava eu fazia careta para seus tripulantes. Quando a gente ultrapassava alguém eu fazia cara de deboche pro veículo ultrapassado. O pequeno eu passava por cima de todos estes veículos também.
Tudo isso era bem divertido.
As longas viagens entre BH e Guriri, no norte do Espírito Santo, se tornavam bem mais agradáveis com minhas brincadeiras inventadas para passar o tempo.
Porém, algo sempre ocorria que não deixavam as coisas tão divertidas assim. Meus hobbies terminavam, com certa frequência, em náuseas e vômitos. Sim, eu concentrava na paisagem e ficava muito mareado. Uma cena comum nas viagens é a parada para lavar o carro que tinha ficado em condições deploráveis após minhas brincadeiras solitárias. O terror da família era visível quando eu dizia que iria vomitar.
Sorte de quem tinha carro de quatro portas, que eu conseguia abrir a janela para vomitar. Nesse caso, apenas a parte externa da porta ficava com aquela sujeira toda escorrida. Secava rápido e a viagem podia seguir sem parar no posto pro banho. A bagunça era menor.
Viajar comigo era sempre algo caótico. Eu tinha que sempre me sentar na janela pra ficar mais perto da saída. Azar da minha irmã, que frequentemente tinha que ficar no meio do carro, sem onde encostar pra dormir. Ela sim conseguia dormir nas viagens.
Depois de um tempo tomar Dramin para viajar foi obrigatório pra mim.
Isso foi o fim do pequeno eu se aventurando em condições criativas absurdas.

2024 – #11 – Submissão

Haely vivia no pequeno vilarejo de Jasso, que pertencia à grande comunidade de Fojah e que, por sua vez, fazia parte da sociedade Milanó.
Milanó se desenvolveu durante várias décadas assimilando para si as decisões de todas as comunidades e vilarejos ao redor, impondo restrições e severas punições àqueles governos que decidiam fazer algo por conta própria.
Haely nunca entendeu muito bem como isto funcionou durante anos, pois Milanó foi desenvolvida de forma artificial, sem seguir critérios orgânicos ou naturais para seu crescimento. Tudo de Milanó foi importado de outros lugares.
A alimentação não era com produtos típicos dali, nem as vestimentas e nem os hábitos. As construções eram feitas de materiais escassos na região, a arquitetura não suportava o clima local e as fronteiras impostas não respeitavam as comunidades de Fojah ou de Jasso. Era um ecossistema completamente danificado.
Haely tentou sair várias vezes de forma mal sucedida para compreender outras realidades, tentar buscar outras formas de superar o sentimento de insatisfação e limitação que seus conterrâneos possuem.
Haely sempre foi obrigado a obedecer e a seguir o futuro que algo muito maior planejara.


2024 – #12 – Útil

Irigo explorava o solo de uma região fechada há décadas pelo governo central. Por fora, uma barreira murada com concreto armado, com vários furos e buracos onde se podia ver um campo cinzento, com muita névoa em um altiplano árido.
Na barreira constavam várias placas que diziam ser proibida a entrada, e as torres altas funcionavam como um tipo de panóptico, nunca se sabe se realmente há alguém vigiando de lá, mas o medo era sentido por todos os habitante da pequena cidade universitária de Savjiol.
Irigo passara suas tardes buscando maneiras de desafiar o sistema de controle, e desenvolveu técnicas de acessar a região sem ser notado. Através de túneis, roupas de cor parecida à do solo e movimentos que se camuflassem à névoa, Irigo passou a fazer pequenas escavações na região semi-desértica para entender o que havia de tão importante ali.
Encontrou vários fragmentos aleatórios, os levava para casa em segurança e descobriu que, juntos, não faziam sentido algum. Quanto mais escavava, mais encontrava objetos.
Nos laboratórios da universidade tampouco encontrava algo que pudesse ajudá-lo. Queria entender a funcionalidade de cada um daqueles objetos, fragmentos de algo que outrora passou por ali e que não poderia ser descoberto. Separados não faziam sentido, e juntos não combinavam.
Irigo recolhia restos, desejando ser um sujeito predestinado a fazer uma grande descoberta.
Mal sabia que o rastro de fragmentos deixados ali eram apenas descartes aleatórios.



Lapsos de Tempo #14

Topo

Outro dia li em algum lugar que a pessoa sem ter para onde ir só a restou chegar ao topo. Eu fiquei pensando o que é este topo que as pessoas tanto buscam.
O que me chamou atenção foi esse lugar imaginário, o alto, o cume, o ápice, a ponta, mas sempre pensando em um grau elevado. O que significa alcançar essa quimera?
Primeiramente, óbvio, busquei ajuda no dicionário: TOPO pode significar esse ponto mais alto, mas também significa “extremo”. Essa segunda definição talvez passe despercebida e oculta na maioria dos casos.
Eu entendo quando “topo” é usado como esse lugar que desejamos. O lugar da figura do sábio, alguém que está em uma posição elevada, e nós como seres humanos buscamos também ter o papel de certa referência. O pico da montanha, o topo da pirâmide, o céu.
Lugar onde reside um conhecimento e uma energia sublime, logo quem está lá se torna alguém superior.
Mas também é uma posição inventada: reis, políticos, religiosos, imperadores, empresários, charlatães de um modo geral… Todos clamam ocuparem estes locais. Desejam uma superioridade autoproclamada.
Mas acho que se pensarmos que também que topo pode ser um extremo, de forma genérica mesmo, as coisas tomam outra dimensão.
Chegar no extremo da dor, das emoções negativas, da [in]sanidade mental, da violência, da manipulação. No extremo até onde podemos suportar alguma coisa.
Parece demasiado trágico restar apenas o extremo, como se não pudéssemos mais ter escolhas.
Será que é o topo mesmo que estamos buscando?
Depois deste extremo é o fim? Depois do cume vem o declínio?
Nosso trajeto é feito de sobes e desces, de um lado para o outro, de vais e vens.
Prefiro acreditar na caminhada.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE – Shangai GP3, BW 100

Pikachu – FIGHT THE POWER

Está aberta a pré-venda da camiseta do Pikachu FIGHT THE POWER!!!
Ilustração original La Idea, com estampa produzida no submundo da autonomia gráfika.
Adquira a sua até 15/04/2025, com a possibilidade de comprar o pano de prato também com um descontinho maroto.
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La Idea na Feira da Delícia Impressa, Rio de Janeiro

Alou alou pessoal, tudo certo por aí? Passando para anunciar minha participação na Feira da Delícia Impressa que vai rolar nos dias 15 e 16 de março de 2025, das 12 às 20h, no Solar dos Abacaxis (Rua do Senado 58). Estarei com banquinha cheia aguardando a visita de vocês. Será minha primeira feira no Rio de Janeiro e a expectativa está bem alta!!