Ruim demais para ser mentira #11

Camping

Quando eu era pequeno me lembro de ter ido num camping com minha família. Tenho memórias bem difusas deste dia, mas a incredulidade com que as pessoas recebem esta história fazem com que ela tenha algo bastante especial.
Primeiro falaremos sobre o cenário: uma área verde com muitas árvores, que agora me parecem que estavam meio secas, gramado, sol, praia. Uma criança de sunga, vulgo eu, corria para cima e para baixo brincando de algo completamente aleatório. Provavelmente com a pele já muito lastimada pelo sol enquanto me perdia nas marés de água salgada.
Dormíamos em uma barraca bem estruturada, composta de dois quartos e uma varanda, e eu me lembro até de um churrasco ter sido feito na área externa. Quando eu digo dois quartos, pode parecer que é algo bobo e apertado, mas eram dois fucking quartos bastante espaçosos, impensáveis para pessoas que já nasceram na era das barracas que são montadas apenas com uma varinha no iglu feito de lona.
Fico imaginando esse tipo de barraca old school sendo carregada por neohippies brancos de dreads em seus mochilões por regiões indígenas, exigindo brunch de algo que não existe ali. Algo completamente impensável.
A lembrança que eu tenho do lugar traz algo mais especial ainda: o bar. Aquele espaço raiz interiorano, uma janelinha onde se pede bebidas e tira-gostos, um alpendre coberto, nas paredes haviam pinturas e propagandas do que se vendia ali, tudo muito bem ventilado no espaço, mesas de madeira acompanhada de bancos que lembram muito o refeitório de uma universidade. Me lembro de ter música ao vivo e de jogar baralho com minha família enquanto eles se deliciavam com uma cerveja gelada (eu espero) naquele calor praiano de algum lugar que eu não lembro onde era.
No bar todas as pessoas do camping se encontravam, e eu me lembro que iria muito lá. Mas minha memória quer muito me enganar, pregar peças na minha realidade infantil e plantou uma situação muito inusitada. Tenho uma memória muito nítida de uma noite no bar em que foi feita uma encenação da Escolinha do Professor Raimundo. Sim, estávamos sentados na mesa, e os personagens foram se sentando junto da gente nos bancos sem encostos, e todos riam a cada piada que era proferida. Eu não entendia bem o que estava acontecendo, mas me lembro de ter sentido muita raiva nesse momento. O personagem do Seu Boneco sentou-se à minha frente, deu as costas pra mim e eu não possuía nenhum campo de visão que não fosse as costas dele de regata surrada e da nuca vestida com uma meia-calça velha rasgada. Eu não conseguia acompanhar o que estava acontecendo e tratei apenas de esperar que o evento acabasse.
Na minha concepção de tempo aquilo tudo durou uma eternidade, e esses programas besteiróis que simulam escolinhas com atores velhos falando baboseiras é algo que eu não curto nem fudendo. Inacreditável como tudo isso pode ser facilmente inventado por uma mente viajandona como a minha né? Quando eu conto ninguém acredita. Nem eu acreditei em mim mesmo.
***
Recentemente interpelei minha mãe e minha irmã sobre essas lembranças. Eu realmente achava que eu tinha sonhado com isso tudo. Minha irmã sempre me contava histórias aleatórias de como ela enxergava as situações, e eu sempre acreditei em tudo independentemente se fosse verdade ou mentira. Minha mãe me respondeu de forma simples, direta e rápida: “Sim!! Foi na Praia do Siri.” e seguiu com outra mensagem curta: “A barraca tinha 2 quartos e uma varanda.”. Eu comecei a rir muito, porque eu realmente achava que tinha sonhado com isso tudo. Sobre a Escolinha, minha mãe confirmou a veracidade do ocorrido e completou: “Teve. Vc ficou puto e começou a chorar. Foi numa área de camping” enquanto minha irmã se limitou a confirmar com um intenso “Simmmm”. De acordo com elas, existem fotografias deste dia, de uma criança, no caso eu, dormindo na imensa barraca.


Ruim demais para ser mentira #10

Água

Quando eu era criança eu achava que toda comida e toda bebida que entrava pela nossa boca era depositada em todo o espaço interno do corpo. Simplesmente, na minha cabeça, o corpo era um grande espaço vazio que era preenchido com comida e bebida. Eu sempre fui muito bom em comer, e essa era minha explicação plausível para nunca ficar devidamente saciado.
Inclusive, vontade de cagar era algo que acontecia somente quando o corpo já estava cheio de comidas e precisava liberar um espaço para a próxima alimentação. Eu não tinha limites quando o assunto era comida, e minha mãe precisou brigar muito comigo para que eu não tomasse Biotônico Fontoura, pois eu adorava o sabor sem saber que isso servia para abrir o apetite.
Claro que eu recusava algumas coisas que eu achava esteticamente feias, tipo couve-flor, ou com cheiro muito forte, tipo pequi. Até jiló ainda é difícil se acostumar com o sabor amargo, mesmo depois de tantos anos, mas o tempo me fez ampliar minhas opções de alimentação.
Com líquidos não era muito diferente, mas na minha cabeça o líquido saía logo depois que ele entrava, e eu tinha uma preguiça enorme de fazer xixi.
Sempre que me dava vontade de “tirar água do joelho” eu ia na cozinha e tomava tudo quanto é água que eu poderia consumir no dia. Virava copos e copos pois aproveitaria a ida ao banheiro para mijar toda essa água e eu não precisar retornar depois. O líquido competia espaço com a comida, e por isso deveria sair mais rápido.
Uma cena frequente que me lembro quando criança era o de beber muita água antes de dormir, pois aproveitaria a última ida ao banheiro para liberar todo o xixi que eu tinha no corpo e, claro que essas coisas não passam ilesas, e uma questão comum da minha infância era eu acordando todo mijado.
Nunca entendi muito bem o porque eu fazia xixi na cama, mas mesmo depois de adulto isso ocorreu algumas vezes. Mais recentemente eu entendi que eu ficava preso no meu próprio sonho. Sabe aquelas vezes que você está sonhando e precisa muito achar um banheiro para mijar? Pois é, em algumas destas vezes eu não conseguia acordar e mijava no meu sonho. Ou seja, mijava na cama.
Eu nunca fui muito bom em lembrar dos meus sonhos, mas esses em que eu mijava eu lembrava com certa frequência. Hoje tomo muito cuidado para não ingerir muitos líquidos depois das 21h, no intento de não ficar preso no meu sonho novamente.
O jovem eu poderia ter se livrado de muitos colchões ao sol e poças de urina no quarto se tivesse desconfiado antes que o corpo funciona de outra maneira.

Ruim Demais Para Ser mentira #9

Estrada

Quando eu era pequeno viajar costumava ser sempre um caos. Eu nunca fui muito de dormir em veículos (isso mudou há pouquíssimos anos) e minha vida acordado em viagens sempre foi bastante criativa.
Eu tinha meus próprios hobbies passatempos de sobrevivência nas estradas.
Eu gostava bastante de imaginar que eu tinha fôlego, velocidade e habilidades o suficiente para correr ao lado do carro, só que passando pelas paisagens que eu via pela janela. Então o pequeno eu corria por pastos, pulava cercas, subia e descia morros, desviava de árvores e de animais, saltava rios e lagos, voava em pontes, subia e descia de imóveis e construções com certa facilidade, sempre acompanhando a velocidade do veículo em que estava.
Também gostava muito de ficar olhando praquele amontado de eucaliptos que faziam tipo linhas de fuga/perspectiva, com uma linha clara ao fundo. Tentava acompanhar a linha clara que sempre mudava de lugar por entre a sequência de árvores. Ahh, claro, o pequeno eu também transitava por ali desviando das árvores.
Outra atividade legal, sobretudo quando eu me sentava ao lado esquerdo do veículo, era contar quantos carros legais passavam pela estrada no outro sentido. O conceito de “legal” nunca foi bem objetivo pra mim, mas era só algo para passar o tempo mesmo. Claro, o pequeno eu saltava todos estes veículos. Inclusive, corria por cima dos longos caminhões com muita destreza.
Outra atividade legal era encarar as pessoas dos outros carros. Quando um carro nos ultrapassava eu fazia careta para seus tripulantes. Quando a gente ultrapassava alguém eu fazia cara de deboche pro veículo ultrapassado. O pequeno eu passava por cima de todos estes veículos também.
Tudo isso era bem divertido.
As longas viagens entre BH e Guriri, no norte do Espírito Santo, se tornavam bem mais agradáveis com minhas brincadeiras inventadas para passar o tempo.
Porém, algo sempre ocorria que não deixavam as coisas tão divertidas assim. Meus hobbies terminavam, com certa frequência, em náuseas e vômitos. Sim, eu concentrava na paisagem e ficava muito mareado. Uma cena comum nas viagens é a parada para lavar o carro que tinha ficado em condições deploráveis após minhas brincadeiras solitárias. O terror da família era visível quando eu dizia que iria vomitar.
Sorte de quem tinha carro de quatro portas, que eu conseguia abrir a janela para vomitar. Nesse caso, apenas a parte externa da porta ficava com aquela sujeira toda escorrida. Secava rápido e a viagem podia seguir sem parar no posto pro banho. A bagunça era menor.
Viajar comigo era sempre algo caótico. Eu tinha que sempre me sentar na janela pra ficar mais perto da saída. Azar da minha irmã, que frequentemente tinha que ficar no meio do carro, sem onde encostar pra dormir. Ela sim conseguia dormir nas viagens.
Depois de um tempo tomar Dramin para viajar foi obrigatório pra mim.
Isso foi o fim do pequeno eu se aventurando em condições criativas absurdas.

Ruim Demais Para Ser mentira #8

Semáforo

Quando eu era pequeno, eu achava que os semáforos presentes nas esquinas das ruas eram controlados por pessoas. A minha ideia era a de que em cada semáforo havia uma câmera, e essa câmera mandava um sinal para uma televisão em uma central de comando, onde um operador decidia ligar a luz verde, a amarela ou a vermelha. Cada operador era responsável por um semáforo. E eles deveriam, sempre, ficar de olho no fluxo de carros.
A ideia era simples na minha cabeça. O sinal ficava verde e os carros aceleravam. A medida que os carros que estão no semáforo vermelho começam a se acumular em demasiado, o operador avisa que ele precisa abrir, ficar verde. Daí, o operador que estava no verde aciona o amarelo, e logo o vermelho. Desta forma, o fluxo dos cruzamentos seguiria sempre bem equilibrado.
Eu ficava encucado quando os semáforos tardavam muito a abrir, e os motoristas precisavam chamar atenção do operador (que pode ter saído para ir ao banheiro, por exemplo), por isso eles começavam a buzinar. Lembro de ficar observando o tempo que demorava entre a sinfonia horrível de buzinas e o sinal ficar verde. Geralmente funcionava e poucos segundos após o início das buzinas o semáforo abria.
Eu também imaginava que nos cruzamentos em que o sinal piscava no amarelo, provavelmente o operador não tinha ido trabalhar ou estava de férias. Então não haviam substitutos praquela função. Daí a responsabilidade do cruzamento seria a dos motoristas. A mesma lógica para as madrugadas, em que muitos semáforos piscam no amarelo ou estão desligados. Falta pessoal para operar.
Me lembro bem de estar dentro do carro com meus pais, o trânsito parado, meu pai reclamando que o engarrafamento era causado por causa dos semáforos, e eu dizendo pra ele:
-É só buzinar que o sinal abre!
Acho que ele nunca deve ter entendido minha colocação.

Ruim demais para ser mentira #7

Corrida

Quando eu era pequeno, eu e minha irmã saímos correndo na rua buscando algo. As ruas eram de terra, chão, alguns poucos cascalhos, estávamos descalços. O sol já havia partido há muito tempo, e me lembro de um ambiente escuro, com poucos focos de iluminação.
Corremos por uns três quarteirões em perseguição. Vários pedregulhos machucavam as solas de nossos pés. No ar, uma mistura curiosa de calor com vento fresco e maresia.
Corremos nos comunicando sobre o alvo a ser perseguido. Parecia até que tínhamos uma estratégia definida. Apenas a troca de olhares já nos fazia saber para onde deveríamos ir.
As pessoas que estavam sentadas no bar da esquina sorriam de maneira irônica. Não nos importávamos com nada disso. Nossa perseguição parecia nunca ter fim. Me lembro de um trajeto curto, apesar de demorado. Tudo se confundia, e de alguma forma eu tinha certeza sobre o nosso destino. Acho que minha irmã também tinha essa certeza.
Fomos extremamente rápidos em um dos momentos mais demorados da minha memória.
Perseguimos uma luz vermelha, que até hoje parece real na minha cabeça. Eu tenho absoluta certeza do que vi e corri atrás.
Os pés sujos e machucados desagradaram aos adultos que nos aguardavam na casa de praia.
Entramos e nos deparamos com adultos lamentando: “Vocês não foram rápidos o suficiente…!”
Olhei para o chão onde estava a árvore de plástico enfeitada, recheada de caixas com embrulho.
Não conseguia acreditar que corremos atrás do Papai Noel, e ainda assim ele deixou os presentes sem que eu pudesse vê-lo.
Foi frustrante saber que a luz vermelha não quis me esperar.

***

Este pequeno texto foi gestado a partir de um exercício proposto na Mediação de Escrita “BORA FALAR DE AMOR”, onde deveríamos descrever uma memória sem dizer ou explanar o que era esta memória. Aqui, eu fiz algumas adaptações para se adequar à esta seção de histórias da minha infância. Minha irmã e minha mãe se lembram deste fato. Minha irmã correu comigo atrás de algo, e minha mãe nos enganou para que saíssemos de casa.


Ruim demais para ser mentira #6

Doppelgänger

Quando eu era pequeno eu tinha a certeza de que em cada país existiam sempre as mesmas pessoas. Não me lembro bem se eu achava que eram exatamente os mesmos núcleos familiares, mas cada sujeito tinha sua versão em cada país. Todos eram sempre contemporâneos e eu sabia que se eu visitasse algum país, eu iria acabar encontrando a minha versão local. A única diferença era a de que existiria uma barreira intransponível da ordem do idioma.
Passei dias e noites a pensar em como seria este encontro. A lembrança que tenho é de que nos encontraríamos na rua. Eu, passeando com minha família em um lugar qualquer, veria alguém exatamente igual a mim, cruzando e me encarando com tanto estranhamento, que eu teria dúvidas sobre o que realmente estava vendo. Eu me via, eu o via ou ele me via?
Talvez nessa época eu não tenha imaginado um contato mais profundo, pois sabia das limitações do idioma. Hoje eu sei que me reconhecer em algum lugar é algo complicado, pois só conheço quem eu sou externamente através de uma imagem planificada e distorcida de mim. Já me vi em fotografia, em vídeos ou em espelhos, mas nunca me vi com meus próprios olhos.
Essa ideia de existir outros eus em cada país faz sentido para mim. Vira e mexe eu vejo ou conheço pessoas que se parecem muito entre si e que, incrivelmente, têm o mesmo nome. Conheci três Andrés em momentos diferentes, e na minha memória, eles eram muito parecidos. Da mesma forma, Annas, Jéssicas e Natálias também conheci duas de nome e aparência parecidas. Inclusive, as Natálias que conheci que eram parecidas, tinham irmãs gêmeas (porém, com outro nome). Acho que eu pensava nisso inconscientemente como um erro da Matrix, ou algo assim. No Brasil, que eu tinha noção de ser um país tão grande, não é possível que não poderiam ter mais de uma versão da mesma pessoa.
Acontece que eu nunca conheci a minha versão estrangeira. Mas vejo fotografias de pessoas e fico com muitas dúvidas se sou eu na foto ou não. Ainda hoje eu acho isso muito incrível.
***
Me lembro de perguntar pro meu pai quando eu encontraria com minha versão dos Estados Unidos. Meu pai não deve ter entendido nada. Hoje nem tenho como tirar essa dúvida, pois meu pai está presente apenas em outros planos. Mas gosto de saber que minha imaginação fértil me fazia querer pensar e perguntar sobre coisas que as pessoas não faziam a menor ideia do que se tratava. Eu criava minhas próprias teorias sobre tudo e seguia com muito afinco as teorias que eram explicadas para mim.

Ruim demais para ser mentira #5

Brinco

Quando eu era pequeno eu decidi colocar um brinco na minha orelha. Foi uma decisão bem difícil, eu fui apoiado pelo meu pai, mas não fui pela minha mãe. Minha ideia era simples, colocar um brinco de argolinha com um pequeno crucifixo pendurado, pois era assim que o Romário usava. Era meados dos anos 90 e essa moda imperava naquela época.
Na minha cabeça ia dar tudo certo e eu passaria a jogar bem futebol e a parecer marrento e folgado nas fotos de família. Os paparazzis conhecidos como “minhas tias, tios, primos e amigos” iriam adorar minha pose. Pensando agora, talvez eu tenha ficado com uma vibe mais Vitin Avassalador Sou Foda, mas sei lá, na época eu nem sabia da existência desse sujeito.
Eu poderia dizer o dia certo em que fomos na farmácia, mas podia ser qualquer dia, afinal, meu pai e eu fomos na farmácia do bairro durante uma tarde buscar quem furava orelha e se tinha como furar com argola. Para minha tristeza e decepção, não tinha. Conversando com o funcionário da farmácia, descobrimos que não tinha como. Na farmácia eles utilizam uma pistola de pressão para fazer o furo, e ela somente funciona com brincos pequenos e retos. Minha primeira frustração. Apesar disto, escolhi o brinco com a pedra preciosa mais bonita (pois todas as opções haviam pedras brilhantes no brinco) e fui para os fundos preparar meu lóbulo para receber o impacto da pistola.
O processo é doloroso, mas é bem rápido. Você meio que escuta as camadas sendo perfuradas e atravessadas. O processo é veloz, mas agora parece que foi em câmera lenta. Saí da salinha dos fundos para mostrar para o meu pai o quanto eu estava estiloso e marrento. Agora ninguém me seguraria, eu estava Foda!
Enquanto meu pai pagava pela aplicação, eu escutava atentamente os cuidados que eu deveria ter para uma boa cicatrização. Me lembro de ouvir atentamente o funcionário dizer que eu deveria rodar várias vezes ao dia para cicatrizar bem. Eu levei a sério. Rodava enquanto andava, enquanto dormia, enquanto tomava banho, enquanto estava na escola, enquanto fazia o dever de casa ou brincava com meus amigos. Eu estava dedicado a ter um brinco estiloso, todos meus amigos tinham, e eles eram super estilosos.
O único problema de falar dos cuidados com uma criança, é que ela não faz a menor ideia do que o funcionário disse. Ela não guarda esse tipo de informações e acha que pode fazer qualquer coisa estranha. Claro que eu não entendi que era para rodar o brinco, eu não era esperto o suficiente para isso.
Ao sair da farmácia, comecei a caminhar na rua com meu pai e, de quando em quando, eu dava voltas em torno de mim mesmo. Meu pai ficou sem entender. Mas eu caminhava, girava em torno do meu próprio eixo, e continuava caminhando. Meu pai deveria pensar que era coisa de criança brincando sozinha e viajando na maionese. Foi um comportamento peculiar.
Eu girava em torno do meu próprio corpo várias vezes ao dia, me dediquei profundamente à esta tarefa. E o resultado foi nada surpreendente. O brinco grudou na minha orelha, pois a cicatrização ocorreu e colou o objeto lá. Foi horrível, estava muito preso e ninguém conseguia removê-lo. Por sorte, uma vez em um clube, minha tia que tinha a unha muito grande, conseguiu agarrar o objeto e usar toda sua força e jeito para remover o brinco da minha orelha. Rendeu uma ótima foto minha criança, mostrando a orelha com a língua para fora. Pena que a foto é distante e estes detalhes não são óbvios por quem não conhece a história.
O brinco não deve ter durado um ano sequer, eu nunca tive a argolinha com crucifixo pendurado e até hoje não sei jogar futebol. Ironia do destino ou autosabotagem?
Nunca saberemos. Mas ficou a lição de que crianças entendem o que querem, e eu nunca questionei o fato do giro corporal em volta do próprio eixo auxiliar na cicatrização de um brinco na orelha.
Vai entender…

Ruim demais para ser mentira #4

Ondas

Quando eu era pequeno eu tinha muita curiosidade em saber como eram feitas as ondas do mar. Me dava muita curiosidade aquela água que se enrolava e subia, quebrava, chegava na areia e voltava. As ondas sempre me impressionaram.
Íamos muito para a Ilha de Guriri, norte do Espírito Santo, durante minha infância nos anos 90. Eu conhecia cada pedaço daquela ilha, caminhava e pedalava muito por lá, e foi exatamente nas praias desse lugar que meu pai me ensinou a pegar jacarezinho acompanhando as ondas. Ele também me ensinou a não tomar caldo toda vez que a onda crescia na minha frente. A ideia era bastante simples: quando a onda subia, você pulava de ponta no meio dela, cortando a água e saindo do outro lado.
Eu gostava muito de ficar no mar. Eu me sentia super corajoso e costumava nadar sozinho quando não conseguia companhia para entrar na água. Inclusive, uma cena comum da minha infância consistia em eu sair da água sem entender o lugar onde eu estava, e eu sempre parava algum adulto pra me dar a mão e me ajudar a achar meus pais na faixa de areia. Sim, a maré sempre me levava, e aparentemente ninguém se dava conta disso (ou não se importavam).
Minha irmã, alguns meses mais velha que eu, costumava me explicar o funcionamento de várias coisas. Para mim ela era como uma “Sábia da Montanha”, sempre aparecia com as respostas que eu precisava. Especificamente nessa época em Guriri, ao ser perguntada sobre a formação das ondas do mar, ela me disse que no mar haviam mulheres deitadas que ficavam se enrolando na água, e assim surgiam as ondas.
Esse foi um imaginário que ficou na minha mente por muito tempo. Sempre que a onda subia, eu pulava de ponta e abria os olhos dentro da água salgada pra tentar encontrar essas mulheres. Eu fazia isso com uma certa frequência, e na minha memória atual consta apenas uma visão turva e escura da vida aquática. Além da lembrança de ter sempre os olhos muito irritados ao voltar da praia.
Nunca encontrei essas mulheres, mas eu seguia imaginando qual seria o tamanho delas naquelas ondas gigantes que os surfistas ousavam surfar no Hawaii. Eu também ficava imaginando quantas mulheres estavam dentro da água para esse tanto de onda ser formada ao mesmo tempo em vários lugares distintos. Como elas respiravam? Na minha cabeça, as mulheres dentro da água seriam como aquelas atletas de nado sincronizado, que se movem coordenadamente dentro da água. Talvez a modalidade olímpica tenha nascido a partir dessa ideia. Mas acontece que meus esforços em encontrar essas mulheres sempre foram em vão. Nunca as encontrei.
***
Recentemente eu questionei minha irmã sobre essa história, se ela se lembrava disso. Para minha surpresa, ela se lembrava sim. De acordo com ela, essa ideia veio de alguma abertura do Fantástico ou da novela Mulheres de Areia, que mostrava umas mulheres se tonando água ou areia, algo do tipo. Ela via essas coisas na televisão e sempre me contava suas descobertas. Eu cresci achando muitas coisas de forma equivocada e fantasiosa. Talvez eu deva ser mais grato à ela por me fazer viver uma fantasia criativa/racional. Toda vez que escrevo uma memória, me traz uma felicidade por ter uma imaginação fértil. Hoje sabemos que Yemanjá e Poseidon se escondiam das minhas buscas, bem como as sereias encantadoras de marinheiros. Essas pessoas achavam que talvez eu fosse me perder no mar, de uma forma que eu não pudesse pedir ajuda pra achar minha família novamente. E, se assim fosse, eu poderia saber como as ondas são formadas.

Ruim demais para ser mentira #3

Piscina do hotel

Quando eu era pequeno costumávamos viajar para a cidade de Aparecida do Norte, em São Paulo. Eu digo “costumávamos” porque na minha cabeça parece que foram diversas vezes, mas a memória sempre me engana e pode ser que tenham sido 2 ou 3 vezes no máximo. Minha avó paterna faleceu de câncer quando eu tinha uns 3 anos de idade, e eu tenho quase certeza de que essa viagem era feita para prestar as devidas homenagens cristãs à ela. Mal sabiam que a minha relação com as religiões seria destruída alguns anos depois, mas talvez isso não venha ao caso agora.
Lembro de uma viagem bem específica, que saímos de carro eu, meu pai, minha irmã, minha tia e meu avô, e fomos pipocando nessas cidades turísticas do sul de Minas, onde não há muito o que fazer e para todos os lados têm pessoas idosas caminhando com seus suéteres de cores pálidas em busca de águas termais que prometem trazer a juventude de volta. Na frente do veículo sentava meu pai, que dirigia o carro do meu avô, e meu avô sentava no banco do carona. Atrás, eu, minha irmã e minha tia. Eu sempre tinha que ir na janela, pois viajar me dava enjoos e eu sempre vomitava pela janela do carro. Pensando agora, nem sei porque me levavam nestas viagens se eu só sabia ‘dar trabalho’.
Não lembro se ainda iríamos para Aparecida do Norte ou se já estávamos retornando pra Belo Horizonte quando nos hospedamos em um hotel chique no Sul de Minas. Pode ser que tenha sido São Lourenço, Lambari ou Caxambu, não me lembro. Mas a minha família inventou de andar de charrete pra dar uma volta pela cidade. A égua que nos guiava, de nome Malvina, fez questão de cagar o caminho todo, nos deixando bem desconfortáveis durante o passeio. Minha tia, que adorava uma zueirinha leve, logo passou o resto da viagem dizendo que eu namorava a Malvina. O cheiro era horrível e eu me lembro do terror que foi tudo isso apenas de escrever essas memórias. Terror não apenas do cheiro, mas de alguém achar que eu realmente estivesse namorando com uma égua de diarréia chamada Malvina.
Mas talvez esse não tenha sido o fato mais marcante desta viagem. O hotel, com todas suas chiquerezas possíveis, tinha uma piscina gigante, com aquele bares que você pode ficar sentado em bancos dentro da água enquanto toma seus bons drinks e se diverte de montão. A piscina tinha uma rampa em uma das extremidades, era super acessível a qualquer pessoa.
Enquanto eu nadava, uma forte dor de barriga me pegou de jeito, e eu saí correndo da piscina para ir ao banheiro. Saí perguntando onde havia um banheiro por ali e me disseram que no saguão havia. No saguão do hotel, o banheiro estava ocupado e seu ocupante tardava demais para sair. Eu tive a ideia de voltar na família e pedir a chave do quarto em que estávamos hospedados para utilizar o banheiro do quarto sem passar por constrangimentos em público. Eles disseram que estava na recepção, que eu poderia pegar lá. Fui correndo na recepção e me disseram que a chave estava com a funcionária da limpeza, pois ela estava organizando as acomodações. Subi as escadas correndo e cheguei ao quarto, a porta estava aberta. Entrei com uma felicidade imensa já pensando no banheiro limpinho que eu usaria, mas, para o meu azar, o banheiro estava sendo limpo naquele exato momento. Eu fiquei desorientado, sem saber o que fazer naquela situação. A moça disse que ainda iria demorar um pouco, e enquanto isso minha dor de barriga só aumentava.
Eu voltei desesperado pra família que estava na piscina, mas a dor de barriga era tanta que eu me contive na rampa de acesso. Não deu tempo de mais nada, sentei na beiradinha da rampa e fiz o que devia dentro da sunguinha. Ao terminar, ajustei a folga da sunga e liberei os sólidos na piscina enquanto já saía correndo. Não falei nada com ninguém, apenas voltei para o quarto para ver se o banheiro já se encontrava limpo para que eu pudesse tomar banho. Não disse nada, não citei nada, omiti tudo que aconteceu nesse dia. Fui uma criança feliz, e isso seguiu pela juventude toda e até pela fase adulta. Nunca me importei.
***
Há alguns anos atrás, estávamos em um evento de família e minha irmã, inocentemente, perguntou “vocês se lembram de quando a gente estava em um hotel e apareceu um cocô boiando na piscina? Foi o caos, todo mundo saiu correndo, tiveram que desinfetar tudo!” e eu somente consegui rir discretamente enquanto escutava isso. Sim, ela ficou chocada quando ficou sabendo que tinha sido eu o autor desta proeza, ainda mais depois de todos esses anos de segredo absoluto. Foi a única notícia que tive do meu feito infantil. Eu implantei o caos na piscina de um hotel chique do Sul de Minas. Malvina deve ter ficado orgulhosa de mim.


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Ruim demais pra ser mentira #2

Fantasma

Quando eu era pequeno costumávamos ir em família para um sítio que meu avô tinha aqui na região metropolitana. Eu achava super distante, e era um lugar que não havia muita estrutura. Dois clubes, uma lagoa, casas de fim de semana, bares e pequenos comércios. Boa parte da minha família paterna se encontrava aos finais de semana neste sítio, e era sempre muito legal aquela renca de tios/as e primos/as brincando, correndo pra lá e pra cá e praticando diversas atividades. Entre futebóis, piscinas, pedalinhos, buracos e churrascos, eu gostava mesmo é quando saímos em bando para caminhar pela região.
Algum tio animado sempre nos guiava e éramos várias crianças correndo e inventando brincadeiras pelo caminho de rochas gnaisses encrustadas em gramíneas por onde passavam os automóveis, carroças e bicicletas.
Um local na região que gostávamos de ir caminhando nesta época era um hotel que foi abandonado durante sua construção. No meio do nada as estruturas foram erguidas, vários andares, amplos espaços. Quando íamos, só haviam as colunas que formavam o esqueleto da edificação, bem como seus respectivos pisos e tetos. Tudo muito deteriorado, sujo e entulhado. Nós subíamos e descíamos, brincando de qualquer coisa que achássemos esperando-nos no chão. Meus tios falavam, na época, que as pessoas começaram a furtar as paredes do hotel abandonado para construírem suas casas, enquanto apontavam para moradias precárias que eram avistadas na paisagem. Eu imaginava pessoas, literalmente, levando paredes de tijolos montadas até o local onde seria suas residências.
Me lembro bem de um dia que estávamos eu, minha irmã, meus dois primos e meu tio (pai destes primos) caminhando em direção ao hotel. Subimos as ruas que levavam ao fundo de um dos clubes da região, adentramos em um caminho de mato, e lá vimos a majestosa estrutura abandonada.
Logo, eu e meus primos decidimos apostar corrida para ver quem chegava lá em cima primeiro. Largamos a uma velocidade absurda e deixamos para trás meu tio e minha irmã. Nós três acessamos o que poderia ser um saguão, passamos pelo vão que seria de um elevador, chegamos à rampa externa que fazia uma curva em espiral e findava no segundo andar. Subimos correndo, agitados. No segundo andar, avistamos a escadaria e a subimos correndo, demonstrando a incrível habilidade de subir pulando um degrau para ir mais rápido.
Nós três estávamos exaustos, cansados e suados quando chegamos ao último andar, um zuando a cara do outro pela velocidade, pelos tropicões e pelo jeito desengonçado de correr. Quando nos demos conta, percebemos que meu tio e minha irmã já se encontravam naquele andar. Nós nos entreolhamos e fomos perguntar como que eles haviam chegado antes da gente, já que fomos correndo e havíamos deixado eles para trás.
Meu tio virou para a gente e disse:
– Um fantasma trouxe a gente!
***
Na minha cabeça eu associei a figura do fantasma à imagem do Caronte, barqueiro de Hades, presente no filme Fúria de Titãs de 1981. Neste filme, Perseu é levado ao mundo dos mortos pelo Caronte, aquela figura esquelética silenciosa, que coleta suas moedas para transportar pessoas por essas águas neblinadas. Essa é a figura que eu pensava que meu tio e minha irmã haviam topado no trajeto. Inclusive, cheguei a cogitar um elevador fantasma imaginário que subiu pelo vão antes da gente.
A memória desse filme não é a toa. No sítio havia uma VHS desse filme e nós sempre assistíamos quando estávamos lá. Eu adorava. O imaginário e simbolismos das cenas do filme seguem gravados nesta caixa que chamamos de cérebro.
***
Esse mito ficou martelando na minha cabeça por anos. Eu nunca entendi como eles subiram o hotel abandonado antes de três crianças com muita energia pra gastar. Afinal, eu havia crescido e, finalmente, compreendido que mitologia grega tem esse nome por uma razão bem óbvia. No mais puro espírito investigativo, há pouco decidi questionar minha irmã e meu tio sobre esse fato. Me perguntava se eles lembrariam deste episódio, e, se lembram, como foi que aconteceu.
Ao serem questionados em uma reunião de família, minha irmã disse:
– Não me lembro, mas pode ser que tenha acontecido.
Meu tio disse:
– Foi o fantasma que subiu a gente.


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Ruim demais pra ser mentira #1

Censura

Quando eu era pequeno, gostava de escutar o disco dos Mamonas Assassinas. Na época era a melhor coisa que podíamos escutar. Me lembro bem de me fantasiar com peças de roupas aleatórias, adereços incomuns e fingir que eu cantava as músicas enquanto corria pela pequena sala, do pequeno apê em que morávamos. Ia da cozinha para os quartos, pulava de cabeça no sofá, rolava no chão. Eu sabia todas as letras de cor e salteadas, e esse momento sempre era o ápice de minha apresentação para um público insano, enlouquecido, fanático, porém imaginário.
Mas uma coisa que eu sempre quis saber é o que significavam as letras das músicas. Eu perguntava para adultos o que significava, e ninguém me explicava. Eu cantava em voz alta com uma alegria imensa, versos que continham analogias que eu não fazia ideia, e na minha cabeça tudo soava bem literal.
Eu tenho um tio que exerceu um papel importante na minha vida de descobertas. Ele me explicava o que significavam as palavras que eu dizia, seja em xingamentos, seja cantando. Uma vez eu disse que ia “arregaçar” alguém na rua. Ele me disse que “arregaçar” significava “dobrar”, e que eu não tinha condições de dobrar ninguém, afinal eu era apenas uma criança, por isso deveria parar de falar isso. Desde então, eu apenas arregaço as mangas, mas não arregaço pessoas, pois não tenho capacidade de dobrá-las.
Certa vez estávamos reunidos em família e começamos a cantar Mamonas Assassinas na sala. Aquela meninada toda berrando os versos “Roda roda vira, solta a roda e vem, me passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém…”. Curiosamente, meu tio começava a falar um som de “pi” horrível, estridente, enquanto cantávamos algumas partes da música: “Roda roda vira, solta a roda e vem, me passaram a mão na PIIII, e ainda não PIIII ninguém…”. De acordo com ele, essas palavras não poderiam ser ditas por crianças. Nós, como crianças responsáveis, passamos a cantar tudo com “pi” estridente, até que os adultos nos proibiram de cantar essa música, pois seus ouvidos já não aguentavam mais esse som horrível proferido pelas crianças.
Eu, como uma criança que investigava o fato, fui atrás do porque das palavras não poderem ser ditas por crianças. A palavra “COMI” eu até entendia a proibição, pois crianças ainda não conseguiam comer outras pessoas, faltavam alguns anos para que virássemos canibais. Logo, se não podemos comer outras pessoas, não podemos falar que comíamos. Mas eu até hoje nunca entendi o porque de não poder falar bunda.
Meu tio nunca explicou.


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