Pinturona com cenas de filmes

Pouco antes de iniciar o isolamento social em BH, minha querida amiga Fabi me encomendou um trabalho que seria um presente para o marido dela. Ela me passou algumas referências de cenas de filmes, e queria fazer um mosaico, ou algo parecido, com as cenas. Eu dei a ideia de pegar essas cenas e colocar todas no mesmo cenário, como se tudo estivesse acontecendo ao mesmo tempo. Eu tinha uma ideia de uma coisa meio “Onde está o Wally” em que cada cena seria descoberta em cada local do cenário. Pensei em fazer tudo digital, afinal sairia mais rápido e mais barato, mas conversando com ela chegamos a conclusão de que uma pintura seria bem melhor, mais personalizado, mais exclusivo, mais chique. Tudo combinado para iniciar o trabalho e tivemos que adiar a produção, porque faltava comprar tintas, pincéis novos e um painel, e as lojas todas estavam fechadas.

Depois de algum tempo, e com as lojas voltando a funcionar com sistema de entregas, decidi reabrir meu atelier e retomar meu trabalho. Consegui encomendar o painel no tamanho que eu precisava e consegui também algumas tintas (não consegui todas que eu queria porque a distribuidora não tava conseguindo entregar pras lojas). Dei início à pintura. Fiz várias marcações com lápis HB, iniciando com um gradeado de leve, e depois marcando as linhas que funcionariam como guia de perspectiva. Logo após, fiz aguadas de preto bem clarinho, bem diluído, para marcar onde iria cada elemento arquitetônico que eu tinha colocado no esboço. Também aproveitei para fazer uma aguada de azul no local onde ficaria o céu.

Depois de ter as marcações de aguada completamente secas, comecei a trabalhar com a tinta acrílica menos diluída ou pura, aplicando efeitos de pincéis em diversos lugares. Eu gastei muito tempo, talvez mais do que eu deveria gastar, trabalhando o fundo e o cenário. Dei uma caprichada em vários detalhes e tentei colocar várias habilidades em prática. Já faziam alguns meses que eu não pintava, e estava um pouco sem prática.

No meio do processo eu tive algumas questões com algumas limitações que eu tenho em relação à cor. Para mim, é muito difícil clarear/escurecer ou fazer uma passagem entre duas cores de forma suave. Eu consigo pensar o que pretendo fazer, mas quando tento materializar, sai de forma diferente e acaba ficando meio grosseiro. O uso do preto e do branco para criar alguns efeitos de luz e sombra não deu certo nesta pintura, sobretudo em detalhes minuciosos de rostos. No decorrer da pintura, minha esposa Natália me ajudou com algumas questões e chegamos a conclusão de que não fazer os rostos ficaria melhor. Como artista, é difícil compreender as limitações técnicas, pois sempre achamos que tudo é possível de alguma forma. Mas foi importante saber colocar um fim ao processo de pintura, abrir mão de algumas questões para ter outras. Neste caso, eu abri mão dos detalhes dos rostos para ter uma pintura mais delicada, menos grosseira.

Enfim, foi uma pintura cansativa, mas que me deu muito orgulho de fazer. Por ser daltônico, as pessoas dizem que eu costumo ser mais ousado na utilização das cores, e essa é uma característica que eu gosto. Ousadia. O processo foi paralisado em diversas ocasiões, tive que conciliar com outros trabalhos que estavam pendentes também e eu não poderia estar mais feliz.

Pintura finalizada

Acho que eu só tenho a agradecer à Fabi (e Fábio) pela confiança e pela paciência, à Nat, minha companheira, pelo diálogo e sugestões, e à todos que me apoiam de algum forma. O vídeo com o processo de produção pode ser conferido logo a seguir.

Conversando sobre processos e seus tempos

Eu sou uma pessoa lenta para a maioria dos projetos que eu começo a produzir. Conseguir terminar um quadro é um custo, e eu exerço toda a paciência do mundo para conseguir lidar com a tinta acrílica, espero secar, crio efeitos, e esse processo às vezes se alastra por meses, sobretudo se for uma pintura grande. Neste exato momento estou trabalhando com um painel de 110×70 cm, e enquanto esperava as aguadas secarem, pintei 3 quadros menores, de 20×20 cm.

Com gravura é a mesma coisa. Tardo muitos dias/semanas/meses para conseguir terminar uma gravação de uma matriz na madeira. O processo xilográfico para mim é bem lento, com muita concentração. Já demorei quase 1 ano para fazer uma única gravação, pois ficava dias sem dar continuação ao processo da cavucada.

Agora, me impressiona o o quanto sou rápido com gravação em linóleo e com pintura em aquarela. Não sei se são boas habilidades ou falta de paciência, rs, talvez uma mistura dos dois. Para o linóleo eu penso que é um material mais tranquilo de se trabalhar, que dá possibilidades mais objetivas. Para a aquarela, penso que é um conhecimento muito superficial que ainda tenho sobre a técnica, e talvez uma falta de paciência também. Minha migs Prisca Paes sempre diz que devemos ter paciência com a aquarela, seu tempo de secagem, sua forma de trabalho, e eu fico pensando porque eu insisto em tentar fazer rápido.

Coisas da vida de um artista, difícil explicar esses métodos. Mais fácil tentar exercitar novos hábitos de produção. Dar mais tempo ao tempo (muito clichê, mas tudo a ver).

Referências para criar

Uma das coisas mais difíceis na hora de produzir é saber exatamente o que fazer. Vou tentar elencar algumas coisas que me ajudam a movimentar as ideias para tentar chegar a algum lugar. Nesse post tento dialogar, novamente, com Priscapaes que é uma artista que tem me dado alguma luz nesse túnel que é o processo de produção.

1 – Tenha um caderninho de rascunhos, sketchbook, ou o celular sempre disponível. Eu costumo ter ótimas ideias enquanto pedalo, e antes eu sempre perdia essas ideias por esperar o momento certo para anotar. Eu comecei a usar o recurso “Mensagens Salvas” do Telegram para me lembrar dessas ideias. O celular está sempre próximo enquanto pedalo, e acho que não custa nada anotar ou gravar essas ideias para não se perder. Quando preciso esboçar alguma coisa, sempre busco na nuvem do Telegram essas ideias que eu guardei.

2 – Prestenção nas músicas que você escuta e nos livros que você lê. A partir dessas duas dificílimas tarefas é de onde vem várias de minhas ideias. Sou muito influenciado pelas bandas que escuto. Punk, Hardcore, Rap, Cumbia, sempre tem alguma ideia nas letras que te faz querer produzir sobre. Com as leituras acontece o mesmo. Livros são ótimas referências de ideias. Uma boa literatura de ficção, sociedade, contos, registros, tudo isso eu trago para o que eu faço.

3 – E sua rotina, onde entra nisso? Em tudo. Muito do meu trabalho dialoga com os meus afazeres diários. Pedalar, ouvir música, ler, brincar com o cachorro, lavar vasilhas, assistir/jogar rugby. Tudo tem a ver, e por mais que você não perceba, isso aparece nos seus esboços de forma frequente.

4 – Uma das ferramentas mais interessantes para começar a produzir é o diálogo. Diálogo com outros artistas, com sua mãe, seu pai, seu cachorro, com o vizinho, com alguém que você não conhece. Diálogo com o que você lê, com o que você escuta, com o que você vive e com o que sente. Quando você fala sobre seu trabalho, ou sobre o que pretende trabalhar, e escuta sobre o que outras pessoas fazem, produzem, trabalham, pensam, sua mente vai a milhão, fervilhando ideias que dialogam com essas interações. Nunca subestime o poder do diálogo.

5 – Recentemente, em uma oficina de Zines com a Papelícula, descobri sobre a escrita de fluxo. É algo que a gente faz para começar a movimentar as ideias. Consiste em escrever o que está pensando naquele exato momento, ainda que seja para narrar as tarefas do dia, descrever algo para o qual estamos olhando, qualquer coisa. Apenas escreva o que vier na cabeça, sem planejar muito, sem se importar com ortografia. Esse texto pode chegar a lugar algum, mas vai colocar a cabeça para trabalhar um pouco e isso pode ser a faísca que faltava para começar a criar.

6 – Busque referências sempre. Claro que nem tudo vai servir de boa referência, mas é importante entender as soluções estéticas e técnicas que outras pessoas utilizaram para produzir alguma coisa. Isso já dá uma ideia do resultado que você almeja e vai te incentivar a buscar esse conhecimento de produção. O Pinterest é uma fonte interessante, onde você pode guardar no seu banco de imagens as referências que te interessam, mas tem muita porcaria lá também, inclusive muita propaganda, tome cuidado com isso. Mas guardar imagens que sirvam de referências é uma ideia interessante, e você pode, muito bem, fazer isso fora do Pinterest ou da internet. Você encontra muitas referências visuais no ambiente urbano, nos livros, na imaginação, nos encartes de discos. Entenda como discernir as boas referências.

7 – Registre o processo de produção sempre. Quando você ver que as coisas começam a fluir, escreve sobre isso, anote, deixe registrado. Isso pode te ajudar a desembolar alguma outra ideia, é sério. O que você tentou fazer para uma determinada imagem não deu certo, mas pode dar muuito certo em outra imagem, em outra ideia. É sempre bom revisitar esses registros de processos e eu, pelo menos, considero uma parte importante da produção.

Eu escrevo aqui essas coisas até para me ajudar a me lembrar de todas essas táticas para conseguir sair do lugar. Produzir não é fácil, eu acho bem difícil, mas essas coisas ajudam a sair um pouco do lugar da inércia.

Diálogos com Prisca Paes

Para quem não sabe, Prisca Paes é uma grande amiga e artista, e também escreve em um blog sobre seus processos e suas ideias. Recentemente, ela escreveu um post falando um pouco sobre o que é a vida de um artista e como se preparar melhor para isso.

Essa publicação dela contém, de fato, muitas coisas que alguém que quer viver de arte deveria correr atrás ou, pelo menos, já dá uma ideia do que esperar quando você estiver nesse meio. Por mais que eu saiba o quão coerente são as afirmações dela, comigo o processo se deu de uma forma um pouco distinta, e a maioria das vezes essa culpa cabe única e exclusivamente a mim.

Não vou ficar repetindo aqui o que ela escreveu (entra no blog dela para ler, deixa de ser preguiçoso), mas vou falar das minhas experiências e frustrações com algumas das questões que ela colocou. Acredito que de vida acadêmica nós temos, mais ou menos, o mesmo tempo. Ingressamos na mesma faculdade de artes juntos, em 2011, mas em turnos diferentes. Fiquei sabendo da Prisca através de outra artista, Mariana Zani, que estudava nos dois turnos, e na época (2013 ou 2014) iriam utilizar minha estrutura de atelier para fazer serigrafias. Ainda assim, o projeto não foi para frente, e eu fui conhecer a Prisca Paes somente em uma feira de arte e publicações no Maletta, onde estava outra amiga em comum, Fabi Santana.

Apesar de sempre ter um pé nos quadrinhos e na arte urbana, seguir essa carreira nunca foi algo de meu interesse. Ingressei em uma faculdade de artes, porque alguém viu que eu pintava camisas à mão e disse que eu me daria bem na Escola Guignard. Eu acreditei nisso, afinal, depois de vários vestibulares de Comunicação Social, Design, Educação Física e um semestre em Geografia, me agradou a ideia de fugir um pouco dos meus planos.

Depois de 4 semestres estudando Artes Plásticas na Escola Guignard/UEMG me transferi para o curso de Artes Visuais da UFMG. As duas Escolas de Arte possuem características bem diferentes, e um perfil de idade dos alunos também. Se na época eu era um dos mais novos da minha sala na Guignard, na UFMG eu entrei como um dos mais velhos. E como estudante de arte, eu entendi que talvez eu não goste de ser artista, nesse molde contemporâneo, e viver o que as pessoas vivem. Ir em eventos e exposições é algo que me dá muita preguiça, e quando eu vou é para dar moral ou ver algum amigo. Ir nesses eventos é algo que me traz um certo repúdio, esbarrando em ego muito inflado de vários artistas, e sendo julgado o tempo todo por várias pessoas. Eu não gosto disso. E isso tem a ver com a questão de se inscrever em editais também. Durante a faculdade eu vi vários amigos que enviavam seu portfólio para ser julgado nesses editais, e muitos não conseguiam passar. Muitas vezes, o portfólio recebia uma avaliação ruim, e eu me perguntava se quem julgou utilizou de aspectos formais do trabalho ou de mero gosto pessoal, pois nunca há um retorno sobre onde você poderia melhorar. Inclusive eu vi professores que participaram de bancas e que disseram que o trabalho “ao vivo” eram bem melhor que as fotografias do portfólio, quando questionados os critérios de avaliação. O que me deu a entender que quem julga nem coragem possui para dizer sobre o trabalho na frente dos próprios artistas.

Nesse caso, me restam as redes que tecemos no nosso meio artístico para que possamos crescer juntos. É uma ideia interessantíssima, e ela funciona de verdade. Criando coletivos, grupos de discussão, diálogos positivos, isso tudo te faz ser um artista melhor, e também contribui para que a produção local seja melhor. Tenho inúmeros nomes que posso citar e ter a certeza de que são pessoas que me fizeram crescer de muitas formas enquanto artista, Prisca Paes é uma delas (sim, esse post é um diálogo com ela, ela é migs). Mas também é muito frustrante você achar que possui uma rede sólida e ainda assim “tomar na cara”, ver que sua rede funcionou apenas unilateralmente. Isso aconteceu comigo várias vezes, tive muitas decepções com isso, e talvez a minha mágoa em relação aos artistas belorizontinos (aqui eu generalizo, mas não são todos, rs).

Apesar dos pesares, foram as minhas redes que me fizeram conseguir caminhar por esses trajetos e muitos trabalhos que eu fiz foram por conta destas redes. Inclusive, conheci a Prisca através das redes que fomos tecendo. Estou longe de conseguir uma independência financeira através do que faço, geralmente termino o mês com a quantidade certa para pagar as contas e as dívidas, e muitas vezes preciso me ocupar em outras tarefas (pintar casas, fazer transcrição, etc) para minimamente me manter.

Dentro da faculdade de artes existem três questões, que para mim são muito relacionadas entre si, e que dialogam diretamente com os itens 1, 3 e 9 citados pela Prisca. Pelo menos na UFMG, a Escola de Belas Artes propõe um certo elitismo intelectual artístico, que compara a aptidão e competência dos alunos o tempo todo, transformando em uma disputa algo que era para ser um crescimento coletivo. Vi muitos amigos saírem da Escola de Belas Artes por conta disso. Sem contar o fato de que nem todo mundo tem grana para sustentar os gastos com os estudos e com a produção. De fato, se você não tem grana, seu trabalho é dobrado. Você vai custar a conseguir chegar em algum lugar se não tiver uma rede estável e apoiadora. Da mesma forma, tive muitos colegas de sala que possuíam um discurso muito conservador sobre as artes, levando todo tempo ao classicismo moralista de outrora e criticando aqueles que produzem arte para o comércio, para vender e poder se manter. Esses, geralmente, são os que possuem famílias muito ricas, e que não terão problema algum em ganhar dinheiro sendo intelectuais.

Quanto ao segundo item citado por Prisca, existe um grande paradoxo na minha opinião. Todo artista tem (ou deveria ter), pelo menos uma noção, de quanto vale o seu trabalho. Pelo menos aqueles que pretendem viver disso sabem o quanto gastam com material, o quanto tarda para produzir, a quantidade de esforço, e os gastos indiretos (espaço, equipamento, água, luz, internet, tempo de estudo) e acaba totalizando no valor final de cada peça. Esse não é um cálculo bobo, é bem complexo, e nós devemos, como afirmou Prisca, saber matemática sim. Porém, se você é um artista que não possui status, rede forte ou contatos ricos, fica muito complicado conseguir vender alguma peça.

Já passei por vários momentos de perder venda por causa do preço, e inclusive já vivenciei situações de pessoas que falaram que meu trabalho é “barato”, mas mesmo assim pediram desconto pra finalizar a compra. Ou aquela recorrente situação em que faço o orçamento para alguma prestação de serviço, impressão de serigrafia por exemplo, para uma pessoa que deseja um trabalho artesanal, mas compara o preço com um trabalho gráfico, de uma empresa que consegue baratear os custos devido ao equipamento que possuem. Nesses casos, nós artistas nos situamos em uma retórica que até dói um pouco, que é vender mais barato e conseguir pagar as contas ou não vender e passar perrengue por mais um tempo até conseguir outro trabalho. Tem muita gente que não valoriza a produção artística independente (e gasta muita grana com as graaandes empresas), mas foca seu olhar em quem já conquistou muita coisa e hoje, talvez, nem precise mais daquela venda. Fico me perguntando como ter um trabalho acessível financeiramente (que as pessoas da minha rede, que não são ricas e geralmente são amigos e família, possam comprar) e que não me traga prejuízos (afinal, cê já viu os preços dos materiais de arte?).

Ah, e não vamos esquecer o tanto de vezes que eu escutei: “você precisa se valorizar mais”, “as pessoas não dão valor a trabalhos muito baratos, acham que não tem qualidade”. Mas aí voltamos ao paradoxo inicial, como me valorizar se as pessoas não o fazem e como precificar sem elitizar meu trabalho?

No mais, Prisca foi muito feliz em suas afirmações. Cuide das suas contas e finanças, seja organizado, saiba dar valor ao seu trabalho e ao seu tempo. Fortaleça suas redes e estude muito, o tempo todo. Trate tudo que você faz como se fossem estudos e não dê ouvidos à nada que não seja positivo para si, pois muita gente nos machuca com palavras nesses ambientes, mesmo sem o propósito para tal.

Espero não ter sido rude aqui, e estou sempre aberto a diálogos.

Abraços firmes distanciados.