Há muito eu não escrevia minhas impressões sobre um livro. Hoje me deu vontade de fazer isso. Em meio à vida caótica, que meneia entre frustrações, pressões e desesperos, decidi começar a ler este livro no último dia de 2024. Sim, eu tinha uma pilha de outras coisas para ler, mas não consigo organizar minha cabeça para dar conta das coisas que eu realmente preciso. Conheci esse livro através de um amigo, que leu um texto meu mais antigo e disse que se parecia muito com esta obra de Gros. Ele me mandou um pdf para ler, e eu, completamente de saco cheio de ler coisas virtualmente, acabei comprando o livro. Ele ficou guardado por alguns meses até que, na minha atual sensação de estagnação, me bateu a vontade de lê-lo. É impressionante como os olhos nadam no fluxo das palavras, como se estivéssemos navegando junto com a corrente, ao termos na nossa frente algo que parece dialogar tanto com a gente. Eu caminho desde que me entendo por gente, e essa prática foi parcialmente substituída pelo bicicletear na vida adulta, onde precisei de um pouco mais de velocidade e autonomia nos trajetos. Eu não consegui parar de ler, devorei o livro rapidamente, e agora tenho ganas e vontade de caminhar por todos os cantos do globo terrestre. Essa cidade onde moro ficou limitada demais nos meus planos.
“Tudo o que me liberta do tempo e do espaço me afasta da velocidade.” “A ilusão da velocidade consiste em acreditar que ela faz ganhar tempo.”
Nunca tinha lido, ou sequer sabia dos hábitos de caminhada de Nietzsche, Rimbaud, Thoreau, Rousseau, Gandhi e outras personalidades citadas no livro. Alguns eu curto, outros não. Mas fiquei impressionado com o fato de que a caminhada era um hábito, e cada um a fazia por suas próprias razões, pois sabiam que geravam mudanças, movimentos necessários para fazer a engrenagem da mente funcionar. Como descrito no livro, caminhar não é uma ação esportiva, é uma ação básica de todo ser humano (saudáveis, sem dificuldades motoras, de locomoção, etc.). Eu sempre pensei assim, e eu só escrevi o texto do Lapsos de Tempo porque tinha sido questionado, pois não queria sair por causa de um cansaço extremo, mas topei voltar caminhando para casa (em torno de 30 minutos de caminhada). Esses 30 minutos me revigoram, muito mais que me cansam. O que me cansa é ter que esperar ônibus (que envolve caminhada até a parada, uma longa espera, e outra caminhada da parada até minha casa), ficar esperando um táxi ou ter que lidar com a inconsistência de aplicativos tipo Uber. Se é uma distância plausível, eu realmente prefiro ir caminhando, pensando na vida, observando os elementos do espaço urbano. Não vejo nada disso como um problema.
“O verdadeiro sentido da caminhada não é na direção da alteridade (outros mundos, outros rostos, outras culturas, outras civilizações), mas estar à margem dos mundos civilizados, quaisquer que sejam eles. Caminhar é pôr-se de lado: à margem dos que trabalham, à margem das estradas de alta velocidade, à margem dos produtores de lucro e de miséria, dos exploradores, dos laboriosos, à margem das pessoas sérias que sempre têm algo melhor a fazer do que acolher a doçura pálida de um sol de inverno ou o frescor de uma brisa de primavera.”
Caminhar tem essa coisa de ir contra a forma do sistema mesmo, de você ter uma certa autonomia do caminho, do trajeto, da velocidade, das pausas. Sorte é de quem consegue manter esse hábito. Lendo as páginas deste livro, percorri uma boa parte da minha vida enquanto ser caminhante, que sempre preferiu gastar a sola dos tênis movimentando-se na descoberta de novos e velhos lugares. Foi a caminhada que me fez o hábito de fotografar coisas quaisquer na ruas, de aguçar a percepção, de entender o que é novo naquele espaço, do que é velho e rotineiro, habitual. Há muito que eu não lia algo tão eu, mas tão eu, a ponto deu achar que foi escrita para mim, pensando em mim. Me sinto próximo de Frédéric Gros, sem nunca ter ouvido falar de sua existência. Foi caminhando, observando e refletindo sobre tudo isso que envolve o viver, que eu comecei a produzir arte e arriscar escrita. Eu crio a partir do que vivo, do que penso, do que vivencio enquanto um sujeito que almeja descobrir o mundo, e tudo que gira junto com ele. Enfim, grato por finalizar 2024 e iniciar 2025 com essa leitura. Por mais caminhadas por esses percursos e trajetos tão incertos que compõem a vida.
“Escrever deveria ser isto: o testemunho de uma experiência muda, viva. Não o comentário sobre outro livro, não a explicação de outro texto. O livro como testemunho. Mas eu diria “testemunho” no sentido do bastão numa corrida de revezamento: passa-se o “testemunho” a outra pessoa, e esta, por sua vez, começa a correr. Assim, o livro, nascido da experiência, remete à experiência. Os livros não são o que nos ensinaria a viver (esse é o triste programa dos que têm lições a dar), mas o que nos dá vontade de viver, de viver de outra maneira: encontrar em nós a possibilidade da vida, seu princípio. A vida não cabe entre dois livros (gestos monótonos, cotidianos, necessários, entre duas leituras), mas o livro dá a esperança de uma existência diferente. Logo, ele não deveria ser o que permite fugir da monotonia da vida cotidiana (o cotidiano é a vida como o que se repete, como o Mesmo), mas o que faz passar de uma vida a outra.”
“Como é vão sentar-se para escrever quando nunca se levantaram para viver.” Henry David Thoureau
Certo dia eu estava escutando o Podcast História Preta, especificamente a temporada sobre a Carolina Maria de Jesus, e acabei sentindo um certo incômodo. Não é um incômodo ruim, que te paralisa, mas algo que me deixou com uma enorme vontade de produzir e ampliar um pouco a percepção sobre o tema. Escutar podcasts é algo recente na minha vida, começou em 2020 durante a pandemia por indicação das amizades. No meu atelier, trabalhando/estudando/tentando me manter vivo, ficava horas e horas escutando vários episódios de diversos canais. Eu sempre me imaginava surtando qualquer dia desses com tanta informação sem saber o que fazer com isso tudo. Foi escutando o episódio 2 – Diário de Bitita, da temporada sobre a Carolina publicada no início de 2023 no canal supracitado, que uma observação proferida por Thiago André (pesquisador e narrador do Podcast) balançou um pouco meus neurônios da criatividade e da reflexão. Próximo do minuto 26 do episódio é narrado o seguinte:
“Todos os dias ela se sentava na porta de casa, que dava acesso à rua, para ler o tal Dicionário Prosódico, que no contexto daquela cidade, daquele Brasil, aquela era uma cena incomum, quase pitoresca. Uma mulher negra a toa, lendo um livro sobre o sol da tarde. Naquela época, o artigo 399 da lei penal da República, tipificava a vadiagem como crime. A pessoa, geralmente negra, que fosse pega e não pudesse comprovar ocupação ou trabalho, podia pegar até 30 dias de prisão. Carolina ao sentar todos os dias na porta de casa por horas, com seu corpo negro a vista de todos, na rua, sob o sol, desafiava a ordem social vigente, pelo simples ato de ler um livro em público. E não só isso. Por também estar a toa.”
Transcrição feita por mim, pode ser que uma palavra ou outra esteja errada, rs.
Eu sempre fico impressionado com a capacidade que algumas passagens possuem de nos intrigar a ponto de nos dar vontade de produzir alguma coisa. A partir deste trecho, fiquei pensando no conceito de “crime”, e como isso toma uma proporção muito injusta a depender do contexto. Eu cresci desenvolvendo a ideia de “crime” como algo horrível, passível de punição. Algo que prejudicou outras pessoas, o coletivo, a sociedade. Algo que, de tão ruim, deveria ser julgado por pessoas especialistas em crimes. Mal eu sabia que a noção de “crime” pensada e praticada por especialistas é apenas uma ferramenta de controle das massas, de manutenção para que o sistema liberal burguês siga forte e atuante. As repressões, as punições, julgamentos, vigilâncias, encarceramentos, despejos, violências diversas, tudo isso são ferramentas de controle para manter a ordem burguesa. Tudo que é lei é adaptado para fornecer mais poder ou menos poder para determinado grupo. Não se trata do que é justo, mas sim de uma negociação que pretende equilibrar a manutenção dos privilégios de alguns e a fúria exacerbada de outros. A lei é a balança viciada que finda este “equilíbrio”. Uma pessoa sentada na porta de casa lendo um livro é um perigo para quem?
Assumindo discursos
Essas questões entraram muito em foco durante meu processo de reflexão. Bastava alguém ter a ousadia máxima de ler um livro na porta de casa, para encarar 30 dias de cela. Não existe tempo para lazer, diversão, ócio. Se você fosse pobre e não pudesse comprovar um trabalho, você se encaixaria em um perfil criminoso. A situação chega a ser cômica de tão absurda que é. Fiquei pensando muito em várias situações bizarras que outrora foram permitidas, mas que acabaram caindo ao serem pesadas na balança da manutenção dos privilégios. Uma delas é a escravidão. Só de pensar que poucos anos nos separam de um lugar onde comprar e vender pessoas era permitido, torturar era permitido, ser proprietário de pessoas era permitido, me traz uma certa agonia. E tudo isso fazia parte de uma gama de privilégios brancos, elitistas, coloniais, burgueses. Era permitido por lei e os agentes do Estado atuavam para fazer cumprir. Talvez essa prática oficialmente deixou de existir porque a balança pesava demais para o outro lado, e valia mais a pena abrir mão das propriedades humanas para manter o sistema fortalecido. Quem pesa na balança ao lado dos revoltosos contra o sistema não pode descansar. Deixar de lutar significa assumir derrotas. Carolina Maria de Jesus é herdeira de todo esse processo. Negra, pobre e periférica, ousou pesar a balança contra a manutenção dos privilégios e sentiu na pele a injustiça e a repressão. A tipificação do que é “crime” normaliza as práticas dos de cima, enquanto brutaliza as dos de baixo. Qual o propósito por trás disto?
Desenvolvendo a gravura
O ponto de partida para planejar esta gravura partiu do trecho transcrito acima: “Desafiava a ordem social vigente…”. Porque ler um livro na rua configurava uma prática de ousadia? Foi a partir desta pequena reflexão que comecei a fazer os esboços. Pensei em um formato de paisagem, com a Carolina ao centro, sentada numa escadinha junto com uma pilha de livros. A frase, adaptada pra gravura, ficaria no céu, como se fosse um fundo, algo que está latente no ar. De um lado a vida: casas, comunidades, morros, roupas, árvores, trabalho, ócio e espontaneidade. Passagens onde circulam rebeldias e ousadias. Do outro, uma barreira de espadas de São Jorge protegem a escritora da pequena viatura que vem para buscá-la. Lugar rígido, duro, acrítico. A ambiguidade dos espaços conflui na figura central, gigante. Sim, ela é muito maior que o braço armado da lei.
O material escolhido para fazer a gravação foi a matriz emborrachada conhecida aqui como Microduro, que simula algo como o linóleo mas que é mais barato e acessível. O esboço foi feito digitalmente, espelhado, impresso em impressora de toner, e o decalque na matriz foi feito com thinner. Alguns reforços com marcadores permanentes foram necessários para trazer alguns detalhes a tona. A gravação com as goivas começaram logo.
Processo de frotagem para entender como as incisões estão aparecendoClose da matriz ainda em processo de gravação para acertar os detalhes.
Após a conclusão da gravação, foi feita uma impressão de teste para compreender melhor como estava o resultado. Aqui eu utilizei tinta da cor sépia, pois daria um bom contraste para compreender bem as linhas, volumes e detalhes presentes na imagem. A partir daqui, a matriz passou por mais algumas incisões, corrigindo algumas questões de profundidade, e passou por cortes para separar o primeiro plano do fundo. Como a impressão iria receber duas cores, dividir a matriz facilitou muito o processo de impressão, imprimindo as duas cores de uma vez. Também foi medido o espaço de respiro que teria o papel, e uma borda do tamanho adequado foi mantida.
Ainda no esboço virtual, eu tinha feito um teste de cores para compreender uma boa combinação, algo que fosse agradável ao olhar, que chamasse atenção. No final, optei pela combinação de vermelho e de laranja. Cores quentes, ousadas, que não competem por espaço nos nossos olhares. Cores que focavam tudo o que nos é permitido enxergar. Foram utilizadas tintas a base de água, misturadas com medium extensor (para que a tinta pudesse ser esticada) e medium retardador (para aumentar o tempo de secagem) e assim poder imprimir com menos preocupações. A impressão foi feita com baren e colher de pau em papel Marcatto 80g. O tamanho aproximado é de 42 x 21 cm.
Gravura finalDetalhe do centroDetalhe do lado direitoDetalhe do lado esquerdoInício da impressão em massaProva de impressão no papel branco