Relatos ressuscitam

Vou descrever algo que na hora me soou indescritível
Minha memória falha a esta hora, mas juro que irei tentar
Era uma cena, um quadro, uma fotografia ou uma pintura
Nela, eu via um conjunto de ossos, um ossário
Estavam repousando em uma maca reclinada
No entorno haviam pessoas, talvez também um bestiário
Eram poucas pessoas, atentas
Muitas criaturas, dispersas
Logo à frente havia uma grande janela
Nela se viam construções naturais e sintéticas
As naturais tinham cores quentes e vibrantes
As sintéticas, frias e duras, predominavam
Atrás, só havia escuridão
Neste ato de lembrança, trago um relato do que vivi
Ou talvez sonhei
Nesta época estava diante de um combate que não foi adiante
Fôlego distante de estar disposto naquele instante
As criaturas carregam em direção ao sol que nasce
Algo que não enxergo, não reflete luz
Não é matéria
Me lembro daquela claridade oriunda do calor cromático
Seus raios nos atingindo, tentando iluminar a escuridão
Poucas pessoas não podiam nada fazer
A não ser assistir e esperar
Isto não é tudo, pois nada jamais é tudo.
***
Em outra cena as cores são quentes
Não há nada sintético, nada é rígido
A ossada agora é cinza, com uma memória do calor
São muitas pessoas, poucas criaturas
As criaturas, desta vez, apenas assistem
As pessoas movimentando o vento
Carregam a matéria, e a despejam na água
Que flui
No que vejo, uma caixa de correios flutua na corrente
Ali as criaturas pegam cartas
Cartas que nós escrevemos, cartas que nós escutamos
Aqui, te ressuscitamos
Só para dizer que não acabou, porque jamais terminaria.
São os mortos que reclamam a necessidade de serem lembrados?
Somos nós que lhes imputamos esse desejo?


25/01, dia em que me dedico a escrever sobre a morte. Tomei a liberdade de te trazer mais uma vez, pai, neste quarto ano de seu falecimento. A cada ano, dedico este dia para pensar sobre a morte, sobre o luto, sobre a ausência. Sobre os processos que me fazem lembrar de celebrar a vida.
Hoje, me inspirei no texto “Pesquisar junto aos mortos” de Vinciane Despret, que chegou até mim nos encontros do Bora Falar de Amor que tive a honra de participar ano passado. Maria Caram, a mediadora, me fez pensar no luto enquanto processo de amor. Hoje escrevo sobre isso de maneira mais leve.

P.s.: Os destaques em itálico são citações diretas do texto de referência. O desenvolvimento dele foi uma espécie de cut-out desconstruído. Outro conhecimento adquirido no Bora Falar de Amor.
P.s.2: Tô testando um formato novo de escrita, rs. Não estranhem.