2024 – #26 – Memória

Doren passava seus dias pesquisando toda e qualquer informação que pudesse. Percorria montanhas, anotava tudo o que via. Escutava as pessoas falando, escrevia tudo em seu grande caderno. Percorria as selvas, seus habitantes, as cidades, povoados, vilarejos, caminhava e pedalava por estreitos, vielas, becos, navegava em riachos, ribeiros, rios, lagos. Doren registrava tudo o que conseguisse. Desenvolveu habilidades de observar e escutar, memorizar tudo da melhor forma possível, desenhava, escrevia, refletia. Fazia conexões com vários outros fatos que ocorriam em diferentes lugares. Nada podia deixar de ser registrado. Pelo bem do futuro.
Viver era um eterno registro do vivido.

Experimento simples sobre a relação entre observar e desenhar

Se existe algo que eu defendo enfaticamente no mundo da arte, é que não existe uma fórmula secreta para ensinar arte. Não estou falando de teoria, estou falando de prática. Por mais que existam fundamentos técnicos que ajudam, e muito, na hora de desenhar (como perspectiva, luz e sombra, proporção, textura, etc), nada vai te fazer evoluir tanto quanto o poder da observação e da experiência.

Por favor, não quero que com esse post passemos a hierarquizar os estilos de desenhos, ou a dizer se são infantis ou profissionais, não vem ao caso. Eu sou a favor de que todos sabem desenhar, mas falta experiência e observação para que possamos mudar nosso modo de desenhar. Já escutei muitos adultos dizendo que não sabem desenhar, e quando tentam colocar alguma coisa no papel, apenas conseguem rabiscar aqueles desenhos bem infantilizados, de coisas que fizemos na pré-escola e que, sinceramente, não lembro de termos visto com nossos próprios olhos: uma casa com uma chaminé, uma macieira, um barco a vela…

Nosso primeiro instinto é desenhar essas coisas, porque é o que ficou registrado em nossa memória, e quando falamos em desenhar, resgatamos essas memórias de desenhos que fazíamos quando éramos crianças. Com o passar do tempo, essas experiências de desenho são, cada vez mais, colocadas de lado para a maioria dos jovens, pois na escola e na vida, outras áreas de conhecimento são colocadas como prioridades.

Destaco aqui o fator memória, pois é aqui que aprendemos realmente a desenhar. Todo desenho que fazemos depende da memória, do quanto registramos a imagem do objeto em nosso cérebro. Eu olho para uma árvore, por exemplo, e vejo características bem diferentes em relação ao desenho de uma macieira que eu aprendi a fazer quando criança. O formato da árvore é diferente, o tronco é diferente, os galhos e as folhas também são diferentes. Eu nunca vi uma macieira, mas meu desenho de memória é uma macieira. Hoje, quando observo, eu observo outra árvore, uma jaboticabeira (é o exemplo mais próximo que eu tenho). A jaboticabeira tem o tronco estreito, alongado, com manchas. As frutas nascem por todo os galhos. As folhas não são tão abundantes, e não tem nada a ver com uma macieira, nem com o desenho que eu aprendi de uma macieira.

Se eu observo os detalhes de uma árvore qualquer, vejo que cada árvore possui suas próprias características, e essas observações ficam registradas na minha memória para que eu possa desenhar essas árvores em outro momento.

Assim funciona qualquer desenho. Quando eu faço um desenho de observação eu não desenho o que estou vendo, eu desenho o que ficou registrado na minha memória sobre o que eu vi. Eu olho para o objeto, registro na memória e tento reproduzir no papel. Todo desenho é um desenho a partir da memória.

Recentemente, fiz um experimento simples para poder exemplificar o que estou dizendo. Minha esposa diz não consegue desenhar e nunca usou uma mesa digitalizadora (dessas pra desenhar no computador), mas começou a fazer alguns desenhos no Photoshop. Ela fez um prato com bolinhos de falafels, e eu não consegui deduzir o que era (Imagem 1). Logo após, ela fez um sanduíche de falafel, supondo que eu acertaria o desenho, mas eu achei que fosse um rolinho primavera (Imagem 2).

falafel1
Imagem 1

falafel2
Imagem 2

Constantemente ela me dizia que não conseguia desenhar, que não possuía coordenação motora para a tarefa, e eu propus um exercício bem simples.

Busquei no Google uma imagem de um sanduíche de falafel, abri a imagem no Photoshop e pedi para ela desenhar por cima da fotografia (Imagens 3 e 4).

Ultimate-Baked-Falafel-Wraps-with-Citrus-Tahini-Dressing
Imagem 3

falafel4
Imagem 4

Logo depois, abri um arquivo em branco e pedi para ela desenhar um sanduíche de falafel só com as informações que ela possui na memória (Imagem 5).

Imagem 5
Imagem 5

Nota-se que o último desenho do sanduíche de falafel possui uma riqueza de detalhes muito maior em relação ao primeiro sanduíche de falafel. Isto é explicado com o fato de que o último desenho foi feito com a memória do desenho feito por cima da fotografia, onde observou-se os detalhes do alimento, onde tem falafel, onde tem molho, onde tem folhas, onde está a massa enrolada. Quanto mais o objeto é observado e quanto mais uma pessoa tenta desenhar com as informações registradas na memória, mais parecido com a realidade o desenho ficará.

O ato de observar e contemplar um objeto ou uma cena está diretamente relacionado com o ato de desenhar. É na observação que registramos os detalhes em nossa memória, e é na contemplação que esse registro ganha significados. O poder da experiência consiste nessas práticas. Quanto mais você observar um objeto/imagem/cena, mais registros você terá em sua memória para depois poder reproduzir ou criar sem referências visuais dos objetos. Eu garanto que o sanduíche de falafel nunca mais será o mesmo depois desse experimento, e os próximos passos são compreender a parte técnica (textura, cores, luz e sombra, proporção, perspectiva, etc), mas aí já é outra história.