Imaginokupa #2

Armazém Fandango

No encontro de esquina entre as ruas Donati e Kanno Suga há um imóvel que serviu de abrigo, durante décadas, a um antigo armazém gerenciado por duas gerações da família Maldonado. O armazém, bem tradicional, vendia peças de frigorífico, charcutaria, laticínios e embutidos industrializados para os habitantes do bairro Jardim. Com o falecimento precoce do patriarca da segunda geração, os jovens herdeiros do negócio desistiram de continuar no segmento devido ao penoso trabalho de abastecimento, venda e logística que só o Sr. Maldonado conhecia. Outra questão a se considerar foi o fato de que muitos fornecedores, desconfiados da capacidade de gerência dos jovens, passaram a não mais seguir o modelo de consignação, o que gerou dívidas para a família.
Após a desistência de seguir com o negócio ativo, o imóvel ficou abandonado por 17 anos e se tornou alvo de disputas judiciais intrafamiliares que não chegaram a acordo algum sobre a utilização ou venda do antigo armazém. Todos os móveis e equipamentos foram abandonados dentro do espaço, e as portas e janelas foram lacradas para evitar invasões.
Um grupo de jovens moradores da região que costumavam se reunir na porta para ouvir música punk, e que se motivavam pelas escutas das histórias do antigo armazém contadas por seus familiares, certa vez decidiram escalar o imóvel por fora para tentar acessar a parte interna da casa. A construção possui dois pavimentos, sendo que o de baixo tem características de loja, com janelas grandes de vidro, toldos externos e um salão amplo; e o de cima eram cômodos menores, que serviam de armazenamento e preparo dos produtos que eram vendidos no armazém.
Foi através de um cano que desce a partir da calha que os jovens conseguiram acesso à uma pequena varanda situada no segundo andar, onde o buraco no vidro quebrado da janela adentrava logo na despensa. Os jovens ficaram impressionados com a quantidade de alimentos, equipamentos e suprimentos que foram abandonados no local, e se perguntavam como tudo isso poderia funcionar.
Foi através de vídeos na Internet que surgiu a curiosidade sobre o fazer manual, e de aprender a manusear os vários equipamentos e utensílios domésticos que já estavam em desuso por obsolescência. O grupo de jovens se reuniu e decidiram ocupar o armazém para que ele pudesse voltar a funcionar e a fornecer alimentos para a comunidade.
O primeiro passo foi fazer um mutirão de limpeza e descarte dos suprimentos com validade vencida. Foram descartados mais de 250 kg de enlatados e embutidos a vácuo, além de ter sido necessário 27 dias de retirada de entulhos, poeira e lixo que se acumularam durante anos. A energia foi ligada através de uma conexão direta com o poste de energia que se erguia logo em frente ao imóvel. A água canalizada passou a ser fornecida através do rompimento do cadeado que trancava o registro, método antigo praticado pela empresa que gere o abastecimento de água, e foi feito o desvio de um encanamento entupido para que a água pudesse voltar a circular no imóvel. Os equipamentos de corte, preparo e empacotamento passaram por processos um pouco mais trabalhosos: tiveram que ter algumas de suas partes desmontadas e substituídas por peças novas similares, além da limpeza e lubrificação dos mecanismos de funcionamento. A maior parte desta manutenção foi feita lendo manuais antigos e assistindo a vídeos, pois aprender a manusear e a manter o maquinário havia se tornado um interesse coletivo daqueles jovens.
Após a reabertura das portas e janelas, alguns eventos começaram a ser realizados no local como forma de angariar recursos para a manutenção do espaço. Primeiro ocorreu um grande encontro de pessoas que colam adesivos nas ruas. Vários adesivos foram colados nos postes, e a arrecadação com venda de cervejas ajudou a recompor os vidros das janelas. Um DJ local manteve o som tocado em volumes aceitáveis durante todo o dia de evento para convidar pessoas a conhecerem o espaço. Uma segunda atividade, que envolveu músicos espontâneos de qualquer ritmo e instrumento, durou 5 dias ininterruptos e movimentou muitas pessoas que transitavam pelo local e doavam moedinhas para o grupo que tocava sons improvisados, no vai e vem de músicos e de instrumentos. Neste mesmo evento, as paredes externas receberam pinturas novas, além de alguns grafites nos toldos para disfarçar o desbotamento das lonas. Esse evento de improvisação musical ficou conhecido como Fandango Louco, e se tornou o principal evento de arrecadação financeira do local antes do armazém voltar a funcionar.
Com boa parte dos equipamentos em pleno funcionamento, os jovens punks iniciaram uma difícil tarefa de mobilizar a comunidade local para doar alimentos e suprimentos para a nova ocupação. Porém, a iniciativa não foi bem sucedida, pois os olhares de desconfiança da comunidade em relação aos jovens prevalecia em relação à verdadeira intenção dos mesmos.
O jogo virou quando o tio de um dos jovens que pesquisava de forma autodidata fermentação natural e culturas microbiológicas propôs o início dos testes no imóvel, pois ele apresentava condições ideais de manutenção e preparo. Foi através deste mesmo tio que os jovens conseguiram contato com hortas e estufas comunitárias, e o antigo armazém se tornou um ponto de pesquisa, compartilhamento de técnicas e um local para escoar a produção dos vegetais e hortaliças plantados na região.
A iniciativa foi tão bem aceita, que outras pesquisas surgiram no local para produzir os mais diversos alimentos preparados com vegetais, em consonância com as culturas e com os fermentados que já estavam em atividade no local. Daí surgiram tofus, kimchis, kombuchas, “linguiças” vegetais, hambúrgueres vegetais, queijos/leites vegetais, pães, chucrutes, vinagres, cervejas, vinhos, cogumelos, tempehs, missos e uma variada gama de temperos.
A atividade do armazém ocupado chamou atenção da comunidade imigrante oriental, que abraçou a causa e passou a ajudar os jovens nas criações, preparos e vendas dos diferentes produtos.
Após alguns anos de atividade, a ocupação continua existindo, ainda sem o conhecimento da família que abandonou o imóvel. Atualmente, o local é fonte de renda para os jovens que ocuparam e decidiram restaurar o imóvel, além de ser ponto de encontro para atividades musicais espontâneas ao ar livre, onde tudo começou. O bairro Jardim abraçou o antigo armazém, pois é o único que ainda restou no bairro, já dominado por grandes cadeias de supermercados. O nome da ocupação “Armazém Fandango” é uma homenagem à esta atividade musical que trouxe recursos e pessoas para conhecerem o imóvel, e que apostaram forte na potencialidade do espaço em prover alimentos de qualidade, compartilhamento de conhecimentos e técnicas, e de ser um ponto de resistência contra as corporações alimentícias que dominam a região.



IMAGINOKUPA #1

Comida Popular

“Comida Popular” é como ficou conhecido o imóvel ocupado no beco 77 do bairro periférico Libertador. É uma pequena casa de dois pavimentos transformada em um restaurante com várias peculiaridades.
O imóvel foi abandonado nos anos 70, após o boom econômico da região, o que fez com que várias famílias migrassem para casas maiores ou mais próximas do Centro da cidade. Quase 35 anos depois, um grupo de jovens aventureiros acessaram o imóvel com o intuito de pintar grafittis nas paredes para servir de cenário para um videoclipe, mas se depararam com as paredes completamente tomadas por vegetação, impedindo a prática com as latas de spray. Naquele momento o clima era de frustração e aquelxs jovens se sentaram no segundo andar para traçar estratégias de como transformar o local em um bom cenário para a música de protesto que eles cantavam.
No decorrer das conversas, xs jovens estranharam o fato de haver tamanha vegetação em um local abandonado há anos, e começaram a investigar as plantas que cresciam ali. Algumas foram reconhecidas rapidamente, como a Ora-pro-nobis que subia desgovernada pelas pilastras externas. Outras, como o Peixinho, foram reconhecidas com certa dificuldade por alguns deles que já haviam provado a iguaria.
Acontece que a notícia se espalhou em diversos grupos, e foi montada uma força-tarefa para catalogar as plantas existentes naquele local. No grupo que se formou haviam biólogxs, cozinheirxs, nutricionistas, artistas de diversas áreas, eletricistas e pessoas desocupadas, que não se definiam por uma área de trabalho específica. Após várias reuniões no local, e com o catálogo de plantas quase completo, foi descoberto um sistema de captação de água que mantinha úmida todas as plantas, além de uma certa “fauna” que manteve a reprodução e a adubação dos pequenos vasos por todo esse tempo. As grandes portas de vidro auxiliavam a entrada da luz. Era um verdadeiro ecossistema auto-gerido que havia sido criado pela própria natureza no decorrer dos anos.
O grupo de pessoas, inspirado pela descoberta, decidiu por transformar o local em um restaurante público. A ideia era servir almoço a preços irrisórios ou até de forma gratuita. Formou-se Comitês onde o trabalho do dia era dividido, e havia rotatividade de pessoas entre os Comitês para que todxs pudessem aprender e/ou ensinar novas habilidades, seja na cozinha, no plantio ou na manutenção do local.
79% das refeições servidas na “Comida Popular” têm sua origem na própria ocupação, sendo o restante oriundo de parcerias com outros locais que fornecem arroz, fubá e azeite, por exemplo. O Peixinho frito no fubá é um dos pratos favoritos das pessoas que frequentam o local. O prato vem com 3 folhas grandes, arroz, grão de bico, tomate, alface e ervilha.
O local é mantido apenas com os ganhos da hora do almoço, e isso ajuda a financiar as pesquisas sobre a flora local, também a manutenção e a compra de alguns suprimentos de limpeza e higiene. A ocupação tem sido um ponto de referência na periferia da cidade, e foi acolhido pela comunidade local como um dos espaços mais importante da região. Foi, inclusive, o apoio comunitário que impediu o despejo do grupo gestor e da atividade de restaurante pelo menos em 5 ocasiões, onde os antigos donos do imóvel exigiam, entre outras coisas, que um valor de aluguel fosse pago.
“Comida Popular” segue firme com as atividades, atraindo trabalhadorxs, estudantes e curiosos de diversas regiões que fitam compreender como funciona a ocupação. Atualmente, a Força-Tarefa conta com aproximadamente 17 pessoas que se revezam voluntariamente entre os Comitês de Limpeza e Higiene; de Plantio e Colheita; de Elétrica e de Água; de Preparo e Manuseio e o de Captação e Propaganda. Este último Comitê produz cartilhas sobre plantio, preparo e alimentação com Plantas Alimentícias Não-Convencionais (PANC’s), Nutrição Vegana, formas de gestão coletiva e informes sobre a ampliação das redes de influência formadas juntamente à outros Coletivos e Ocupações.
O beco 77 do bairro Libertador nunca mais foi o mesmo depois da descoberta dos jovens.