Fragmentos #1

INTRODUÇÃO

48 minutos de bicicleta. Esse é o tempo que gastei da minha residência, zona noroeste, para uma entrevista de trabalho, na zona norte. No caminho presenciei um acidente. Um carro entra na contramão e acerta em cheio um motoqueiro que fazia a conversão olhando apenas para o lado em que os carros deveriam vir. É um choque absurdo ver tudo acontecendo. Apesar da rapidez do som do impacto, tudo pareceu em câmera lenta. O motoqueiro é lançado para o alto e cai em cima do capô do carro. A moto é arremessada até o portão fechado da loja da esquina. Várias pessoas correm para ajudar ou para saber o que tinha sido o estrondo. Eu fiquei lá um pouco, mas não podia perder a entrevista.
O dia estava quente, com uma massa de ar seco pairando na paisagem. Comecei a pedalar por volta das 12:30h, pra dar tempo de chegar na entrevista que seria às 14h e retomar o fôlego, secar o suor. Péssimo horário para pedalar.
Cheguei no local, ainda cansado e suado, toquei o interfone e um funcionário me atendeu. Disse que tinha vindo para uma entrevista de oficinas, ele pediu meus documentos e me deixou aguardando ali na rua por uns 12 minutos. Pareceu uma eternidade. Ele me disse para entrar e esperar em uma sala de reuniões onde havia apenas uma mesa e 4 cadeiras em volta. Em seguida entraram duas mulheres para conversar comigo sobre o trabalho. Uma que estava lá somente para anotar e fazer a ata, e outra, terapeuta ocupacional, guiaria a entrevista.
Elas me explicaram que no local funciona uma Casa de Semiliberdade, ligada ao Sistema Socioeducativo. Ali, jovens cumprem penas alternativas e precisam participar de atividades ligadas à cultura e à educação durante a estadia. Minha tarefa seria a de fornecer semanalmente oficinas de artes visuais, mais ligadas ao graffiti, durante 90 minutos. A remuneração era de R$80 por hora de trabalho, ou R$120 por oficina.
Me interessei pela conversa e elas me proporcionaram um tour pelo local. Era uma casa de dois andares, sendo que o de cima, no nível da rua, era a parte de escritório, reuniões e trabalho dos técnicos, e a de baixo, no subsolo, era composto pelos alojamentos e por um pátio grande onde aconteciam as diferentes atividades. Combinamos uma data, daqui dois dias, para uma oficina experimental com a finalidade de avaliação das minhas práticas de oficineiro.
Depois de acertados todos os detalhes burocráticos, peguei minha bicicleta para ir embora. A volta seria mais intensa. O sol já não estava mais tão forte, mas a quantidade de subidas seria maior. 1h12 para chegar em casa. Apesar de mais longo, o tempo passou rápido. Na minha cabeça maquinaram novas ideias do que eu poderia trabalhar naquele local, já planejava uma oficina experimental que pudesse atender à expectativa de jovens naquela situação, ainda com toda preocupação em ser bem avaliado pela Instituição que planejava me contratar.
Já em casa, espalhava as notícias aos meus familiares de que as coisas estavam melhorando. Seria meu terceiro trabalho como oficineiro de forma simultânea, e cada um deles teria sua parcela de contribuição para minha renda mensal.
Essa noite eu dormi bem.

CAPÍTULO 1

Passaram-se dois dias desde então. Hoje poderia ser uma data daquelas em que se comemora algo especial. Uma nova experiência se inicia, e com isso novas ideias, novos contatos e novas possibilidades.
No decorrer destes dias, conversando com a Terapeuta Ocupacional, criei um plano de oficina utilizando os materiais que eles disponibilizavam. Eram exercícios simples para eu poder, talvez, conhecer um pouco mais esses jovens. A ideia era usar apenas lápis e papel. Minha intenção era que os jovens se desenhassem no centro e, a partir disso, iniciassem uma série de ligações com coisas que os rodeiam. Poderia ser qualquer coisa: locais, eventos, objetos, situações, memórias…
Me organizei um pouco melhor com os horários, pois já tinha noção do tempo que levava para chegar ao local. Não levei nenhum material específico, pois sabia que não os usaria nessa oficina. O dia estava quente, mas não tão insuportável quanto no dia da entrevista. A ida, repleta de descidas, fornecia uma brisa que aliviava a sensação térmica, seguida por um trecho plano mais fresco que contorna a lagoa rumo à Zona Norte. Enquanto pedalo evito ao máximo trafegar na contramão dos carros, e ciclovia é uma coisa que me dá ojeriza, mas tem vez que não tem jeito. Para evitar um trecho com trânsito mais complexo, ou cortar caminhos, se faz necessário a contramão ou a ciclovia. Muitas vezes a calçada ajuda, mas não gosto da ideia de colocar a integridade física de pedestres em risco.
Quase chegando à Casa existe uma descida em direção a um ribeirão antes do acesso ao bairro de destino. Descida íngreme, repleta de areia que alguma obra ou caminhão derramou na via. Meu pneu traseiro, próprio para uso em asfalto, não dá conta de frear e eu derrapo durante a descida. Não caio no ribeirão por pouco. Um susto apenas. Acho que todas as pessoas que pedalam passam por sustos no decorrer de seus trajetos. Ainda que não tenha acontecido nada demais, o nervosismo sobe com o susto, e vem o receio de sofrer um acidente mais grave.
Chego na Casa ainda com os batimentos um pouco acelerados. Cheguei cedo, com um bom tempo para tomar um gole de água, retomar fôlego e diminuir a umidade na roupa causada pelo suor. A Terapeuta Ocupacional vem me receber, e ela me mostra a sala de materiais enquanto conversamos sobre os jovens. A sala de materiais tem uma janela grande com vista para o pátio de atividades. Lá de baixo os jovens me observam quando me aproximo da abertura. Um frio na barriga toma conta daquela situação e talvez meu nervosismo e ansiedade fiquem bem aparentes. Primeiro dia em uma experiência nova é sempre assim. Você sabe que é capaz, já fez isso várias vezes, está cansado de saber como funciona, mas a ansiedade é inevitável.
Na sala de materiais fico sabendo onde ficam guardados papéis, lápis, tintas guaches, borrachas, apontadores, trabalhos anteriores… Também tem uma mesa redonda com 4 cadeiras dessas que são conjugadas com um apoio lateral, típico de salas de aula, mas que não se encaixam para serem utilizadas com a mesa grande. Também tem uma estante com livros diversos. Muitos livros de projetos de rap que deram certo, livros didáticos escolares, alguma literatura mais complexa, e muitas bíblias. Realmente a quantidade de bíblias me chamou a atenção, porque se destacam muito. Em uma estante de cinco prateleiras, uma delas era só de bíblias, duas de livros diversos, uma de papéis, uma de equipamentos velhos que estavam largados ali, como um projetor quebrado e uma televisão de tubo 14 polegadas.
A Terapeuta me informou que a minha oficina sempre será dividida com outra atividade. A minha será interna e a outra externa. Ela argumentou que fazem dessa forma para alternar as atividades, e os jovens com melhor comportamento na Instituição podem escolher o que querem fazer naquele dia. Essa estratégia também se fazia necessária para diminuir o grupo com que cada oficineiro trabalharia, facilitando a dinâmica das atividades.
A Terapeuta me informou que a minha oficina sempre será dividida com outra atividade. A minha será interna e a outra externa. Ela argumentou que fazem dessa forma para alternar as atividades, e os jovens com melhor comportamento na Instituição podem escolher o que querem fazer naquele dia. Essa estratégia também se fazia necessária para diminuir o grupo com que cada oficineiro trabalharia, facilitando a dinâmica das atividades.
Saímos da sala e fomos descer a escada que ficava no corredor da Casa. Antes de acessar o pátio um funcionário me parou, contou todo o material que eu carregava, recontou e anotou. Na volta, a conta teria que ser igual. A Terapeuta me disse que isso era uma medida para evitar furtos e impedir que qualquer material possa ser usado em caso de conflitos.
Chegando no pátio, já haviam cerca de 15 jovens sentados em uma mesa retangular me aguardando. A Terapeuta me apresentou, logo em seguida eu me apresentei. Disse que estava ali para dar oficinas de artes visuais, para praticar um pouco a memória e o desenho e, a partir disso, ir desenvolvendo outras técnicas. A maioria dos jovens tinham tatuagens aparentes nas mãos e antebraços, alguns possuíam tatuagens nos rostos e pescoços. Enquanto eu olhava as tatuagens deles, eles olhavam as minhas. Essa foi a primeira interação onde aconteceu uma identificação entre pares. Era perceptível que naquele espaço havia uma riqueza histórica e cultural enorme, uma diversidade de experiências que me levaram a escrever os fragmentos que narro aqui.
Coloco os materiais na mesa, digo a minha proposta e iniciamos os trabalhos. Não posso me alongar muito, pois 90 minutos de oficina passam bem rápido. Os jovens desenham de acordo com o que falo. Alguns com mais vontade, outros com menos. O vento fica tentando levar as folhas embora, e nota-se o esforço dos jovens para manter os papéis na mesa. Eu olho para o que estão fazendo: uma figura humana no centro, objetos diversos ao seu redor. Vejo armas, números, animais, bolas de futebol, letras de músicas, padarias… Fico feliz em saber que boa parte está interessada na tarefa.
Os jovens fazem muitas perguntas sobre mim: De onde sou? Com que trabalho? Quanto ganho? O que significam minhas tatuagens? Respondo apenas algumas perguntas, pois não tenho intimidade com eles para dizer algo além do profissional, mas acho que o local de origem é importante para criar diálogos. Eu digo e eles me chamam de Boy, porque o bairro onde moro é classe média.
Durante a oficina, a Terapeuta me observa e conversa com os jovens. Uma outra técnica fica mais distante apenas analisando. Há 5 funcionários disciplinadores responsáveis pelos jovens no pátio e nos alojamentos. Os jovens chamam os funcionários disciplinadores de “Agentes”. Ao que parece, toda a interação humana naquele local ocorre sem problemas, pelo menos foi assim à primeira vista.
O tempo de oficina termina e a maioria dos jovens não concluiu seu  desenho. Alguns simplesmente largam o material ali de qualquer jeito. Já outros querem continuar e terminar o que começaram. Os materiais são recolhidos e contados para conferência. A Terapeuta me chama para subir e eu despeço dos poucos que ali ainda estavam, buscando alguma interação comigo, falando algo sobre o desenho ou sobre minhas tatuagens.
Subimos de volta para a sala de materiais e, enquanto eu guardava os materiais utilizados, a Terapeuta me dizia que o Sistema possui algumas regras e deveres, tanto para os oficineiros quanto para os jovens. Lá no pátio os jovens não poderiam se envolver em conflitos, deveriam manter a organização do espaço. Eram obrigados a participar das atividades e não poderiam fazer apologias ao crime. Ao final da minha oficina eu deveria fazer um relatório escrevendo sobre como cada jovem se portou, o que fizeram, quem se destacou ou quem fez apologias. Essa questão da apologia me deixou com uma série de perguntas sobre o tema. A Terapeuta me respondeu que fazer apologia seria falar sobre o crime que cometeram ou sobre o artigo no qual foram enquadrados, falar sobre drogas, facções, escrever siglas, desenhar ou fazer referência a armas, gesticular siglas com as mãos ou apontar gestos para outro jovem, falar sobre morte ou assassinatos, e mais uma série de fatos e situações genéricas.
Ela me disse que os desenhos que eles fizeram na minha oficina estavam repletos destes elementos, e que seria meu dever reprimir no ato e colocar no relatório final para esses jovens receberem as devidas sanções e punições. Eu fico em silêncio, apenas pensando nisso. Ela disse que vai redigir o contrato e que eu terei que ir na sede do Programa para firmar e poder começar a trabalhar.
Vou embora de lá pensando em várias questões. Enquanto pedalo, tenho minhas reflexões sobre como é aleatório o julgamento do que seria apologia. Vários dos exemplos que a Terapeuta me deu, a meu ver, dizem respeito às próprias experiências de vida daqueles jovens, seus contextos, suas atividades. Muitos viveram isso em toda sua trajetória. Isso ficou bem claro para mim, sobretudo quando olhava para seus desenhos. Para mim a arte deveria ser livre, serviria para iniciar diálogos, dotar de sentido as ações e relações, ajudar na cognição e em vários tipos de interações. Os desenhos daqueles jovens poderiam dizer muito mais sobre eles do que qualquer conversa, onde filtramos algumas coisas objetivas que não queremos expressar.
Apesar de um primeiro contato parcialmente frustrante, retorno pra casa pensando em como melhorar a dinâmica destas oficinas, o que poderia fazer para contornar essas situações burocráticas institucionais.
Para os próximos passos eu deveria apenas aguardar, pois teria que assinar contrato e alinhar meus horários com a equipe técnica para as oficinas semanais naquela unidade.
Eram tempos de planejamento.

A vida é desafio, já dizia Racionais…

Desde 2009 que eu trabalho com oficinas de arte, mas o trabalho com crianças, jovens e adolescentes é mais recente. Esse tipo de trabalho tem me dado um pouco de ansiedade em seu formato, pois são muitas dúvidas que eu tenho sobre minha atuação, e sobre os jovens que estudam comigo em alguns projetos.

Eu me considero uma pessoa paciente com a maioria das coisas. Acho que muitos processos possuem tempo certo para acontecer, e que tentar acelerar só o transformará em algo ruim, ou não prazeroso. Ter que fazer algo por obrigação torna o processo difícil, e saber que tudo o que você faz será julgado por terceiros também dificulta o processo. Na maioria das coisas que eu faço, tento fazer com tempo e paciência, para conseguir um resultado satisfatório.

Se eu colocar na minha cabeça que eu quero pedalar durante 6 horas seguidas, ou conquistar algum desafio do Strava, por exemplo, eu me preparo para isso, e dedico algum tempo para lograr com meus objetivos. Nem sempre consigo. Há fatores que às vezes me impedem de conseguir pedalar o quanto almejo. Problemas mecânicos, clima, preparo físico, acidentes… Mas não é por falta de paciência, e se não consigo eu entendo que eu me esforcei.

Na arte a mesma coisa. Posso passar horas, dias, semanas e meses trabalhando em uma única coisa, praticando, treinando, buscando alternativas para fazer um único trabalho, tudo feito de forma paciente, pensada, buscando um resultado que seja satisfatório para mim. Às vezes me dá uma agonia precisar criar uma estampa, por exemplo, e saber que ela ficará pronta só depois de algum tempo.

Eu me dedico. Eu pratico, eu treino, e busco aprender o que eu ainda não domino (se é que as técnicas podem ser dominadas). Acho que aí se encontra minha maior dificuldade como professor, educador, oficineiro. Para a maioria dos meus alunos, em apenas uma tarde de aulas eles já deveriam aprender tudo que é possível dentro de um técnica, já sair desenhando e pintando super bem, caprichado. Não se importam com o processo, com o treino, com a prática, com os estudos. Tudo deveria ser imediato. Eu tento pedir paciência, conto histórias sobre o meu processo, começando quando eu era bem novo, copiando com papel carbono os personagens de Cavaleiros do Zodíaco que estavam impressos em revistinhas. Demorou muito tempo até que eu conseguisse desenhar sem copiar. Demorou mais tempo ainda até que eu entendesse que isso é uma coisa que gosto, e que eu gostaria de aprender e compartilhar o conhecimento adquirido. Eu já devia ter meus 23 anos quando decidi cursar artes, mesmo sem saber desenhar. Na Universidade me sentia meio reprimido por estar ao lado de pessoas super talentosas, e eu nem chegava perto de ter habilidades como as de meus colegas.

Eu gostava do processo de produzir, mas não gostava de planejar, nem de criar. Sempre achava que eu estava aquém de todo mundo. Mas o fato de começar a ensinar me deu outra visão sobre tudo isso. Aprendi na marra que o processo é lento, e que devemos ser pacientes. Nunca tive a oportunidade de fazer um curso de desenho antes, meu olho não era treinado para isso, e só depois dos 27 que eu passei a compreender isso melhor.

A prática, o treino, o estudo e, principalmente, a paciência faz com que a gente consiga chegar onde queremos. Isso eu entendo perfeitamente bem. Mas eu ainda questiono como fazer com que xs jovens entendam isso? Tudo tem que ser imediato, tem que ser preciso. Eu realmente não sei como trabalhar isso com elxs. Recentemente eu proibi xs jovens de uma oficina minha de usar borracha, pois eles desmanchavam tudo o tempo todo. Ensinei a fazer esboços, planejar o desenho, ir tratando, fazendo acabamento e arrumando aos poucos, até conseguir chegar no resultado final. Foi uma oficina interessante. Elxs estavam aflitos por não poderem usar borracha, estavam ansiosos por causa da imagem toda embolada e rabiscada. Mas ficaram surpresos com o resultado final, acabado, limpo. Quando fui perguntar à elxs se eles gostaram, se foi interessante ter paciência e construir o desenho aos poucos, elxs me disseram que se tivessem borracha eles teriam feito igual, e de forma mais rápida. Eu sei que elxs não fariam igual, mas elxs não sabem disso. Independente do resultado, o processo delxs é rápido, curto, e talvez essa velocidade em fazer e desmanchar seja mais importante que o resultado final.

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Desenhando rostos

Pensei em fazer alguns trabalhos de desenho de forma mais livre e desapegada, mas eu ainda preciso encontrar uma maneira de fazê-los desapegar dessa coisa realista, desenho e borracha o tempo todo. Fico pensando em várias práticas que fizemos no ambiente Universitário de uma Escola de Artes, e fico pensando se daria certo. Afinal, em uma Escola de Artes, a maioria ali está disposto à esse tipo de experimentação, de reflexão e de discussão. Não sei se os jovens com quem eu trabalho teriam essa disposição de experimentar, de desapegar do desenho tradicional/clássico para surfar em outras ondas. Não sei se o espaço onde trabalhamos seria receptível à isso, pois na Universidade de Artes a maioria dos espaços são de experimentação e provocação. Dentro de uma comunidade, por exemplo, a moral e os costumes estão ligados à outros processos que não se abrem tanto para experimentações.

Ainda que a letra da música tenha pouco a ver com esse dilema onde me encontro, o título é bem propício: A Vida é desafio.