Eu aluno e eu professor.

Nesses tempos de estudo sobre o que é uma educação, o papel da escola e o papel do professor, fiquei tentando trazer um pouco sobre o tipo de aluno que eu fui, tanto no ensino básico como no ensino superior. Foram vários momentos estranhos e ser professor/educador/mediador nunca esteve nos meus planos. Onde foi essa reviravolta?

Durante a minha juventude, fui um aluno que foi do 8 ao 80 em 8 anos. Até a 5ª série eu fui um ótimo aluno. Estudava em casa, fazia os deveres, tirava notas boas e até me lembro de ter ganhado uma medalha de “Melhor Aluno em Geografia” na EM Arthur Versiani Veloso. Me lembro também de ter que ler minha redação para toda turma na 4ª série da EM Dom Jaime de Barros Câmara. Na 6ª e 7ª séries eu já não me interessava muito pelos estudos, comecei a “matar” muitas aulas e a jogar truco com meus colegas, e minhas notas caíram drasticamente. Na 8ª série eu nem consigo lembrar muito bem o que eu fazia na escola. No ensino médio, estudei o 1º e o 2º ano no Colégio Municipal Marconi, que era uma referência em bons colégios em Belo Horizonte. Na época eu já era punk e foi um local onde fiz poucos amigos. Me lembro que no turno noturno haviam apenas 3 horários, não havia educação física, nem artes, e era um colégio legal, em que os professores tinham suas próprias salas, equipadas com laboratórios, e os alunos é que mudavam de sala a cada sinal. Eu estudava no turno noturno, junto com pessoas um pouco mais velhas, e eu dividia o meu tempo diário pegando alguns bicos de trabalho, tempo na rua com alguns amigos e nada de estudos. Todo esse período de educação durou uns 10 anos, e eu só cheguei ao final do ensino médio porque no ensino municipal funcionava um sistema chamado Escola Plural, em que não havia repetência por nota, apenas por faltas. Portanto, bastava apenas frequentar as aulas (ou responder chamada e ir embora) que a situação estava completamente tranquila.

No 3º ano eu fui para rede privada, pois o vestibular se aproximava e assim eu teria mais chances de ingressar em uma universidade. Entrei em um local estranho, onde custei a me adaptar (e até hoje tenho minhas dúvidas sobre isso), não conseguia acompanhar meus colegas de sala, e eu lembro de ver minha redação exposta no projetor como “pior redação da sala/como não fazer”. Foi um local onde fiz pouquíssimos amigos e minha interação era com uma amiga que eu tinha feito nos rolés há mais tempo e que estudava no 2º ano, e com alguns amigos que faziam Cursinho no mesmo horário. A interação que eu tinha era basicamente isso. Consegui ficar de recuperação em todos os bimestres, em diversas matérias e até hoje eu não entendi o milagre deu conseguir me formar. Com certeza “fui passado” por professores que eu imagino que tenham entendido a minha situação, mas não tenho certeza.

Depois de me formar, logo consegui emprego de carteira assinada e passei, pelo menos, 2 anos nessa rotina de passar o dia trabalhando em “empregos de merda” e estudando cursinho a noite. Tentei vestibular para Comunicação Social, Educação Física (2x), Design Gráfico, Geografia (3x) e depois de 4 anos formado eu entrei no curso de Geografia em uma faculdade privada. Durou apenas um semestre. Não achei justo pagar para estudar e o curso me pareceu um pouco burocrático também. Nesse tempo eu comecei a pintar camisas com stencil, e algumas pessoas me incentivaram a fazer um curso de artes. Foi quando eu peguei algumas aulas de desenho com alguns amigos e, estudando por conta própria, consegui passar no vestibular da UEMG, em 2011. Fui estudar Artes Plásticas.

Nesse tempo, entre o final de 2005 e o início de 2011 muita coisa mudou na minha vida. Eu andava já bem desanimado com o punk e com as ideias, comecei a caminhar por um trajeto meio estranho, mas tive meu primeiro contato com as ideias zapatistas e com o EZLN, e acho que esse foi meu ponto chave. Passei a ler muita coisa e a buscar informações sobre o movimento. Descobri uma literatura toda voltada para isso, aprendi o prazer da leitura e isso me ajudou muito a chegar em algum lugar, a tomar decisões, e a começar a traçar algum rumo. Em 2008, quando comecei a namorar com a Natália, nossos interesses eram comuns, e juntos compartilhávamos ideias, livros, filmes, música, e nesse período tive um crescimento pessoal enorme. Finalmente conseguia participar de alguma discussão, ser coerente com as ideias, ou ser incoerente e tentar reconstruí-la. Em 2012, quando fomos de intercâmbio para o México, minha mente se expandiu muito mais. Viver 4 meses em uma cidade marcada pela violência e pela corrupção, e ter contato direto com pessoas que resistem diariamente nesse contexto produzindo arte, música, política, ideias, me exerceram muita influência e eu consegui voltar para o Brasil com as ideias renovadas. Chegamos em BH, produzimos muitas coisas contra a Copa do Mundo e os Despejos, tivemos contato com o COPAC, fizemos vídeos para mandar para o exterior, praticamos muitas técnicas e ideias. Foi um momento de alta produtividade.

Em 2013, de transferência para a UFMG, tive contato com a educação, e minhas primeiras experiências em gravura depois das que tive no México. Já possuía bastante noção, mas na Casa da Gravura foi onde consegui compreender a interdisciplinaridade que está contida em cada tarefa que praticamos. Aprendi muito sobre química, física, biologia, matemática, educação física somente produzindo gravuras. Nas artes, aprendi um pouco sobre filosofia, sociologia, estética, história, geografia… Foi na prática dos afazeres que comecei a me interessar por estudar diferentes áreas, pois conseguia relacionar várias áreas de conhecimento em apenas uma tarefa.

Pouco tempo depois comecei a treinar rugby. Não comecei a me exercitar do zero, pois já pedalava e fui para o rugby porque a Natália se interessou primeiro. No início eu ficava muito perdido, mas passei a estudar os documentos oficiais da World Rugby e os estudos sobre as funções dos atletas. Boom. Descobri um novo mundo. Estudando rugby eu aprendi sobre alimentação, anatomia, respiração, potência (vários tópicos da educação física) e sobre física. A física está muito presente no rugby. Desde a forma como você passa ou chuta a bola, a forma como corre e a forma como deve ser um contato entre adversários. Me interessei pelas regras do jogo e acabei me tornando árbitro pela Federação Mineira. É impressionante como todas as áreas de conhecimento se conectam em nossos afazeres diários. Passei a contrair o abdômen nas tarefas mais comuns, como lavar louça, e isso me ajudou a ter mais equilíbrio para pedalar, e mais força para estabilizar exercícios isométricos. Contrair o abdômen e compreender os movimentos musculares e de respiração me fizeram produzir litografias com muito menos cansaço e muito mais precisão ao trabalhar na prensa.

Foi com essas informações que passei 2 anos sendo monitor no Atelier de Gravura da Escola de Belas Artes e foi nesse tempo em que comecei a me interessar pela docência. Foi um feedback muito positivo por parte dos alunos que estudaram a disciplina nos meus tempos de monitor que me incentivaram a seguir por esta área. E eu gosto disso. Ser professor/educador na educação formal e não formal, ser professor/treinador de rugby. Essas funções me trazem um certo prazer, pois assim compartilho meu conhecimento com todos que se interessam por isso.

Hoje compreendo que isso só foi possível quando percebi que o conhecimento não é algo rígido, que serve apenas para uma coisa. Meus tempos na escola foram péssimos, e eu achava um local muito careta. E, de fato, falta muito para a escola ser um lugar agradável para os alunos e para o corpo docente. Viver uma cobrança por uma produtividade que não faz sentido. Fragmentar todas as etapas do saber e colocar em caixas separadas só faz crer que o tipo de ensino que temos hoje não vale a pena. O sistema de ensino parece se ligar em políticas de governo, e ignorar os atores que estão presentes no cotidiano das escolas. Hoje eu sou professor, mas tenho pavor de escola. Ontem eu fui um aluno, sem entender a função da escola.

Há um grande vão de experiências que me fizeram compreender a importância dos estudos e do compartilhamento de ideias e de práticas. Ás vezes eu acho que eu entendi isso tarde demais, que eu poderia ter aproveitado muito melhor se eu tivesse descoberto isso antes. Mas acho que cada um tem seu tempo, suas experiências. Em algum momento as coisas passam a fazer sentido, resta a nós seguir estudando nesta grande experiência chamada vida.

E Sobre a Educação?

Queria poder escrever sobre o sistema educacional de uma forma bonita e prazerosa. Desde 2009 dou cursos e oficinas, desde 2009 estou em uma faculdade, e desde 2013 que eu comecei a me interessar pela docência. Apenas em 2018 eu iniciei formalmente meus estudos para me tornar um professor e, desde então, comecei a refletir sobre a atuação no sistema educacional. E existem coisas que não me atraem nesse universo, e talvez, por isso, não conseguirei escrever de uma maneira bonita e prazerosa.

Fico lembrando quando estava na escola, ótimos anos. De 1994 a 2005 eu frequentei algumas instituições públicas, e sempre me achei um “bom aluno” até certo tempo. A partir da 7ª série, quando eu descobri o que era uma “Escola Plural”, implantada na rede municipal de ensino, eu simplesmente parei de me importar com a escola. Hoje eu entendo o quanto fiquei defasado em várias questões, e isso me custou muitos anos de cursinho para aprender o que eu nunca aprendi. No meu terceiro ano do ensino médio fui parar no Colégio Soma, privado, com aquela promessa de ser aprovado no vestibular da UFMG. Aprendi o que era a UFMG quando eu estava estudando no segundo ano, e minha irmã foi prestar vestibular. No Soma, consegui ir mal em quase todas as matérias, sempre pegava recuperação em várias disciplinas, e até hoje não sei como consegui formar. Foi um período muito pouco proveitoso, e se eu soubesse o que viria nos anos seguintes, teria feito tudo de forma diferente.

Em Julho de 2018 eu iniciei os estudos em Licenciatura em Artes Visuais, continuidade de estudos do meu Bacharelado em Gravura/Litografia. Ao mesmo tempo, trabalhava dando oficinas de arte em uma Unidade de Semiliberdade das Medidas Socioeducativas, dava aulas de xilogravura e serigrafia em meu atelier, e comecei a acompanhar duas escolas da Rede Estadual de Ensino. Uma delas é uma escola grande, famosa, conceituada, estruturada, bairro nobre, muitos recursos, etc. A outra é uma escola de bairro, porém não periférica, situada a duas quadras da minha casa. Posso passar uma eternidade aqui citando diferenças estruturais entre as escolas, mas irei focar na parte que me importa: as pessoas. As pessoas são aquelas que fazem parte da comunidade escolar como um todo, que participam do cotidiano e que, querendo ou não, fazem a escola acontecer. São professores, funcionárixs e alunxs, e eu fico tentando perceber/entender como elxs atuam nesse espaço/tempo.

Apesar da diferença berrante entre as duas escolas, tenho percebido muitas similaridades quando o assunto são as pessoas. Professorxs desmotivadxs por diversos motivos, funcionárixs desmotivadxs por diversos motivos, e alunxs desmotivadxs por diversos motivos. Motivos para a desmotivação é o que não falta. E eu entendo esse sistema indo cada vez mais para o buraco. Não é de hoje que esse formato que chamamos “escola” não funciona. A escola não é atraente, e não oferece mudanças em nenhuma perspectiva. Vejo com frequência alunxs de ambas escolas comparando o local com uma prisão. E eu entendo bem isso. Ali é um local de limitação de liberdades, onde há regras, muitas vezes controversas, e nada daquilo ali dialoga com xs alunxs. Digo isso com clareza, pois entendo que o ambiente escolar também não me atraía quando jovem. Fui entender que era preciso estudar e comecei a buscar conhecimento depois de muitos anos de formado, e hoje, com 31 anos, começo a compreender onde a escola erra. Nas salas de aula vejo várias matérias desconexas, uma falta de interesse dxs alunxs no que está sendo exposto, e uma ideia de que nada daquilo ali importa. A maioria dxs alunxs fazem prova sem nem ler, simplesmente marcam qualquer resposta. A maioria dxs alunxs não se importa com o que x professorx está ensinando, porque nada daquilo ali vai fazer diferença. De fato, tive dificuldades com matemática por muitos anos, até compreender os locais onde eu poderia aplicar uma fórmula matemática. Com a física, a mesma coisa. Também com a química. Também com a biologia, geografia, história. A maioria das disciplinas escolares nunca fizeram sentido para mim quando jovem, e eu só fui compreender na necessidade e na prática, onde esses conhecimentos são importantes.

O formato das Escolas que eu acompanho são muito parecidos. Várias matérias com vários conteúdos, provas bimestrais, recuperação, várixs alunxs fora de sala, várixs alunxs que não levam material, várixs alunxs que nem sequer tiram a mochila das costas, várixs alunxs sendo punidos por indisciplina. E eu entendo perfeitamente a indisciplina. Imagino que eu seria um desses que está de saco cheio disso tudo, e compareço à escola por obrigação, ficaria torcendo para chegar logo o horário de intervalo, e depois a hora de ir embora. Nem sei se o que escrevo faz sentido algum, mas escrevo para que um dia eu chegue a algum lugar com isso.

Na Universidade tenho várias aulas sobre educação, e sistemas educacionais, e formas de entender a docência, e a importância da arte no ensino. Mas tudo segue muito distante da realidade que eu experimento. Muitxs professorxs nunca entraram em uma sala de aula de uma escola pública, e os exemplos que trazem sempre são de escolas construtivistas, dessas super elitizadas, como se fosse igual lidar com problemas de ricx e problemas de pobre. Escrevo de uma forma bem xula, não me importo. Aqui são palavras que saem para tentar entender meu papel nessa história. O que estudamos no meio universitário não tem quase nada a ver com as escolas que frequento. Parece ser tudo muito utópico e lindo ao discutir o papel da arte nas escolas, mas as próprias escolas limitam muito a atuação da arte, e talvez não compreendam a importância da arte como campo de conhecimento. Arte não é fazer decoração de festa junina. Eu entendo a arte como um local de construção de sentido, de expressão, de aprendizado e de compreensão do universo, da sociedade e de seus fenômenos de uma maneira crítica. Talvez eu tenha demorado muito a compreender isso dessa forma, e não acho que seja fácil a compreensão por pessoas que não estão ligadas à isso. No ambiente escolar os campos de conhecimento sempre parecem muito distantes entre si, sem diálogo algum entre eles, e realmente deve ser um saco, um porre, ver essas aulas que nada tem a ver com a outra. Não estou falando aqui de existir recursos audiovisuais, aulas online, tecnologia de ponta para realizar aulas, mas de entender que as diferentes disciplinas podem trabalhar assuntos semelhantes, pois tudo está conectado. Com o tempo tudo foi dividido em diferentes áreas, e sumiram as relações entre o que aprendemos e o que vivemos. Fico pensando em Leonardo da Vinci, que exercia diversos ofícios e foi importante para várias áreas: Engenharia, Medicina, Artes Visuais, Botânica, Teatro, Arquitetura, Matemática, e vários outras áreas que hoje não dialogam entre si. Talvez na época de Da Vinci, o conhecimento geral fosse importante e os campos de conhecimento estavam conectados, e tudo que se ensinava construía um sentido, e fazia sentido.

Mas o sistema escolar limita tudo. Tudo tem seu tempo, suas regras, nada faz sentido, nada é atrativo e segue um formato que sufoca muito mais que liberta. Um ambiente fechado, onde xs alunxs não possuem nenhum senso de pertencimento, destroem todo o equipamento, funcionárixs irritadxs todo o tempo porque não aguentam mais a estrutura, e corpo docente de saco cheio sem entender as razões.

Escrevo aqui porque quero tentar entender o que desejo fazer, o que desejo tentar, e como eu posso ajudar a mudar algo. Não vou mudar o mundo, e nem quero. Não me preocupo com Mercado de Trabalho, pelo contrário, estou pouco “me fudendo” para isso. “Mercado de Trabalho” é um termo que me lembra pessoas acorrentadas a um emprego bosta, fazendo o que não gosta, ganhando stress, em troca de um dinheiro qualquer. “Mercado de Trabalho” para mim segue a lógica do nascer, estudar, trabalhar, morrer; e seguir a vida assim, torcendo para chegar o fim de semana ou as férias, porque somente nesses contextos é que se aproveita a vida, e o resto é trabalho e chatice. Eu gostaria que as pessoas fossem livres para fazer o que quiser, e ser o que quiser, e buscar, da forma que quiser, sua felicidade. Começo a compreender que esse formato de escola talvez sirva para se adaptar a esse modo de vida medíocre, pois segue a mesma lógica. Passar o dia em algo que não gosta, torcendo para o fim do expediente chegar logo, torcendo para chegar o fim de semana, e depois reclamando da segunda feira; tudo isso em troca da eterna promessa de uma vida melhor.

Acho que meu texto saiu um pouco do que eu imaginava. Meus devaneios sobre a educação talvez não terminem nunca. Esse formato não me atrai, e eu já entendi que não atrai xs alunxs, nem xs professorxs. Todo mundo reclama, e não pode propor mudanças, porque as mudanças vão criar pessoas livres, e inteligentes, e críticas. E ninguém quer isso.

O que fazer então? Como posso atuar na educação de uma maneira diferente?

Fico pensando que quando for professor terei muito trabalho. Eu sei que vou ganhar mal. Eu sei que irei ficar estressado, revoltado, cansado da estrutura, que vou reclamar por trabalhar muito, torcer para chegar o fim de semana, e reclamar da segunda feira. Eu sei que vou ter um discurso bonito, de conseguir construir sentido com poucxs alunxs, e isso vai fazer valer a pena todo esse processo. Estamos adaptados à isso. Eu estou adaptado à isso.

Ainda tenho tempo, e há muitas coisas para repensar e refletir. Até lá, farei o que puder, apesar de ainda não saber como.