Ruim demais pra ser mentira #2

Fantasma

Quando eu era pequeno costumávamos ir em família para um sítio que meu avô tinha aqui na região metropolitana. Eu achava super distante, e era um lugar que não havia muita estrutura. Dois clubes, uma lagoa, casas de fim de semana, bares e pequenos comércios. Boa parte da minha família paterna se encontrava aos finais de semana neste sítio, e era sempre muito legal aquela renca de tios/as e primos/as brincando, correndo pra lá e pra cá e praticando diversas atividades. Entre futebóis, piscinas, pedalinhos, buracos e churrascos, eu gostava mesmo é quando saímos em bando para caminhar pela região.
Algum tio animado sempre nos guiava e éramos várias crianças correndo e inventando brincadeiras pelo caminho de rochas gnaisses encrustadas em gramíneas por onde passavam os automóveis, carroças e bicicletas.
Um local na região que gostávamos de ir caminhando nesta época era um hotel que foi abandonado durante sua construção. No meio do nada as estruturas foram erguidas, vários andares, amplos espaços. Quando íamos, só haviam as colunas que formavam o esqueleto da edificação, bem como seus respectivos pisos e tetos. Tudo muito deteriorado, sujo e entulhado. Nós subíamos e descíamos, brincando de qualquer coisa que achássemos esperando-nos no chão. Meus tios falavam, na época, que as pessoas começaram a furtar as paredes do hotel abandonado para construírem suas casas, enquanto apontavam para moradias precárias que eram avistadas na paisagem. Eu imaginava pessoas, literalmente, levando paredes de tijolos montadas até o local onde seria suas residências.
Me lembro bem de um dia que estávamos eu, minha irmã, meus dois primos e meu tio (pai destes primos) caminhando em direção ao hotel. Subimos as ruas que levavam ao fundo de um dos clubes da região, adentramos em um caminho de mato, e lá vimos a majestosa estrutura abandonada.
Logo, eu e meus primos decidimos apostar corrida para ver quem chegava lá em cima primeiro. Largamos a uma velocidade absurda e deixamos para trás meu tio e minha irmã. Nós três acessamos o que poderia ser um saguão, passamos pelo vão que seria de um elevador, chegamos à rampa externa que fazia uma curva em espiral e findava no segundo andar. Subimos correndo, agitados. No segundo andar, avistamos a escadaria e a subimos correndo, demonstrando a incrível habilidade de subir pulando um degrau para ir mais rápido.
Nós três estávamos exaustos, cansados e suados quando chegamos ao último andar, um zuando a cara do outro pela velocidade, pelos tropicões e pelo jeito desengonçado de correr. Quando nos demos conta, percebemos que meu tio e minha irmã já se encontravam naquele andar. Nós nos entreolhamos e fomos perguntar como que eles haviam chegado antes da gente, já que fomos correndo e havíamos deixado eles para trás.
Meu tio virou para a gente e disse:
– Um fantasma trouxe a gente!
***
Na minha cabeça eu associei a figura do fantasma à imagem do Caronte, barqueiro de Hades, presente no filme Fúria de Titãs de 1981. Neste filme, Perseu é levado ao mundo dos mortos pelo Caronte, aquela figura esquelética silenciosa, que coleta suas moedas para transportar pessoas por essas águas neblinadas. Essa é a figura que eu pensava que meu tio e minha irmã haviam topado no trajeto. Inclusive, cheguei a cogitar um elevador fantasma imaginário que subiu pelo vão antes da gente.
A memória desse filme não é a toa. No sítio havia uma VHS desse filme e nós sempre assistíamos quando estávamos lá. Eu adorava. O imaginário e simbolismos das cenas do filme seguem gravados nesta caixa que chamamos de cérebro.
***
Esse mito ficou martelando na minha cabeça por anos. Eu nunca entendi como eles subiram o hotel abandonado antes de três crianças com muita energia pra gastar. Afinal, eu havia crescido e, finalmente, compreendido que mitologia grega tem esse nome por uma razão bem óbvia. No mais puro espírito investigativo, há pouco decidi questionar minha irmã e meu tio sobre esse fato. Me perguntava se eles lembrariam deste episódio, e, se lembram, como foi que aconteceu.
Ao serem questionados em uma reunião de família, minha irmã disse:
– Não me lembro, mas pode ser que tenha acontecido.
Meu tio disse:
– Foi o fantasma que subiu a gente.


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Desaparecer virtualmente (ou uma paralaxe analógica)

Outro dia eu me dei conta de que eu nunca me vi. Faço uma ideia de como seja minha aparência, mas eu mesmo nunca conseguirei saber realmente como sou. Bom, através do tato consigo sentir meu rosto, a textura da minha pele, as curvas salientes, meus curtos pelos arrepiados ou a barba grossa. Consigo sentir a gordura da pele, a maciez da carne ou a dureza do osso. Consigo sentir as lágrimas saindo dos meus olhos e escorrendo pelas bochechas, enquanto minhas mãos tentam enxugá-las. E, talvez, próximo disso seja tudo que conseguirei experimentar e descrever sobre minha aparência real.
Quisera eu saber realmente como sou, pois apenas me conheço virtualmente. Necessito da lente de uma câmera, de uma superfície espelhada, dos olhos de outra pessoa que me observa por alguns instantes e marca no papel o que foi registrado em sua memória sobre a minha aparência. Para eu saber como sou, dependo sempre de outra pessoa, de outro objeto, de algo que capte a luz refletida pelo meu rosto.

Outro dia, caminhando pelas ruas de BH, me deparei com algumas vidraças espelhadas. Ainda que eu tentasse fugir do meu reflexo, meus olhos sempre enxergavam minha imagem. Meus olhos são dois globos captadores de luz, dispostos na cabeça de uma maneira que captem luz de diferentes ângulos, e meu cérebro faz o serviço de juntar essas duas imagens em apenas uma imagem coerente. Nossos dois olhos enxergam muito mais do que a gente supõe ser real. Nossos olhos nos tiram da superfície plana e nos fornece algo de profundidade, de forma, de relevo.
No reflexo das vidraças, alguma parte de mim sempre aparecia. Não consegui me esconder por inteiro, meus olhos me enganavam. Decidi registrar essa tentativa frustrada de não aparecer, de ver meu reflexo como eu me vejo.

Portava comigo uma câmera Olympus Pen-EE, com um filme PB Double-X, ISO 200, vencido. Através do visor posso ter apenas uma noção do que será registrado na película. O que eu miro não é o que a câmera capta. Eu sempre via algum reflexo de mim na vidraça, uma parte do corpo cuja luz não escapava aos meus olhos. A câmera, com sua lente única, apenas compreende o sentido de planificar a luz sob o mesmo ângulo. Ela não capta a luz como meus olhos. A fotografia me forneceu o momento de desaparecimento, de não me enxergar virtualmente, de não me enxergar mesmo com ajuda do espelho. Era pra registrar a frustração de enxergar uma imagem sempre virtual, e a câmera possibilitou que eu enxergasse o sujeito que se deteve alguns minutos para registrar o momento. Me encontrei na ausência.

Eu sou real, estou aqui, não me vejo. Todos me veem de alguma forma, sempre diferente do que eu imagino. Nesta fotografia, apenas o eu real, fotógrafo-artista-andarilho-flaneur-amador sem saber o que faz da vida, existe. Ou existiu naquele momento passado analógico.

La Idea, 2023

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