Uma sociedade aborígene de nome Mounga precisou lidar com uma certa dificuldade política. Os regimentos da comunidade eram aplicados à todas as famílias que faziam parte do território comum. Muitas famílias não concordavam com as deliberações vindas de uma força política unitária, e o descontentamento com as regras se tornou algo cotidiano.
Após diversas reuniões entre a comunidade, ficou decidido que as famílias possuiriam livre arbítrio para escreverem e praticarem seus próprios regimentos, além de firmarem suas redes de forma independente.
De início, houve certa resistência, sobretudo porque muitas famílias não conseguiam entender por onde começar a desenvolver sua própria política. Mas, aos poucos, com muito diálogo, muita disposição e muita empatia, a dinâmica de logística e de política começou a dar certo.
Ao invés de centralizar as resoluções em um local, foram criados vários pontos centrais, que se intercomunicavam entre si, com o fito de chegar a resoluções e deliberações que agradassem à todas famílias presentes no território.
Ainda que a insatisfação, a frustração e os conflitos permanecessem, eles possuíam uma intensidade muito menor que não atrapalhava a dinâmica da comunidade. Tardou muito tempo até que esse modelo fosse alcançado.
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2024 – #9 – Poder
Irien nasceu com um gosto pela música. A frequência das notas, o timbre, a sonoridade, o ritmo faziam com que Irien movesse seus músculos e membros em movimentos síncronos e harmônicos. Irien hipnotizava todas as pessoas com suas danças. Podia ficar horas mexendo o corpo, pois se impressionava com seus próprios gestos, que já antecipavam tudo o que viria a seguir.
Irien sentia seu corpo guiado por algo que não conseguia enxergar, ondas abstratas que entravam pelo ouvido e refletiam nos batimentos do coração. Sentia seu sangue pulsar, levando vontade de balançar cada milímetro de seu corpo. A vida ativa não poderia existir sem a música.
Ainda que a dança fosse a razão de sua existência, Irien começou a se perguntar porque dançava tanto, já que poderia tentar criar algo que movesse outras pessoas.
Irien dançava, mas queria experimentar o poder de tocar concomitantemente.
2024 – #8 – Grão
A pequena comunidade de Sasya conseguiu desenvolver um método de organização urbana que compreende espaços de moradia, de vida pública e de produção agrícola de subsistência. O método consiste em criar passagens concêntricas, como se fosse uma espiral, onde às margens dos passeios teríamos locais de moradias alternando com espaços de vida pública, parques, praças, passeios e locais de interesse como bibliotecas, centros de compartilhamento e feiras. No espaço compreendido entre fundos das moradias, existem plantações diversificadas, que vão de hortas a cereais e leguminosas, que se estendem entre passagens espiraladas.
O formato de desenvolvimento concêntrico ficou conhecido por seu habitantes como Grão, pois possui uma estrutura mais externa (locais de vida pública), uma mediana (moradias) e uma central protegida (plantações). Todas conformadas por passagens que, querendo ou não, te fazem trafegar por todos estes ambientes.
Sasyans compreenderam que construindo desta forma, todos seus habitantes poderiam usufruir das plantações e da vida pública, além de conseguirem ter relações aproximadas com seus vizinhos, que nunca estariam longe demais. Não existem passagens retilíneas e esquinas, mas trechos sinuosos que seguem um formato condizente com uma espiral.
Também, desta forma, não há construções que atrapalhem a passagem dos ventos, das águas e nem atrapalha o ecossistema de uma maneira geral. A forma que a comunidade se desenvolve respeita o traçado orgânico do meio ambiente.
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2024 – #7 – Esperança
No Vale do Rio Nancíbio havia um pequeno povoado que, outrora nômade, se instalou na região de várzea para evitar que a comunidade fosse contaminada por um vírus que rondava o mundo. Ficaram sabendo da epidemia através de rumores, e decidiram se isolar por décadas até que seguro fosse retomar a caminhada.
Acontece que com a instalação e criação de residências e hortas, o povoado se complicou para seguir com os hábitos ciganos, e as gerações mais novas desconheceram o hábito do deslocamento para regiões mais prósperas, ou que promovessem o rotatividade de culturas e recuperação do solo. Com o tempo, inclusive, as oralidades e manualidades que eram passadas a cada geração, foi-se perdendo com hábitos cada vez mais rotineiros.
Também a vegetação no entorno cresceu durante décadas a ponto de encerrar o povoado na várzea, próximo da mata ciliar do Rio Nancíbio, promovendo poucas oportunidades de saídas sem equipamentos e ferramentas adequadas para tal.
Certo dia Org, um jovem adulto que nasceu na região e desconhece a vida fora dela, pescava seu almoço quando se perguntou de onde vem a água com esses peixes. Nunca tinha imaginado que a água poderia se originar em outro lugar.
Org decidiu se jogar na água e nadar contra a correnteza na região de mata ciliar fechada, cheia de raízes e entroncamentos estranhos e complexos para descobrir de onde vem tanta abundância.
Org não conseguia ver o fim do curso de água, pensava o tempo todo em como e quando voltaria para contar tudo o que viu no trajeto, talvez uma possível descoberta.
Muitas histórias ele contaria em seu retorno, quando conseguisse alcançar algo que ele teria certeza de que foi a origem da água.
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2024 – #6 – Água
Após décadas de uma seca devastadora que nunca havia acontecido antes, o pequeno povoado de Ariropalo compreendeu que talvez não haveria mais água no local. Foram décadas dependendo da pouca chuva que caía em um período curto de poucas semanas durante o ano e do caule de cactos e nopales, que armazenavam o líquido.
Porém, os recursos ficaram tão escassos, que o povoado decidiu se reunir para discutir e tentar encontrar soluções possíveis para o problema.
A primeira ideia, e a que pareceu mais plausível, foi a perfuração de um poço artesiano. Porém, com quase 1km de profundidade, o lençol freático não havia sido alcançado. Também, o custo para esta operação era demasiado alto, sem condições para o povoado.
A questão que bateu mais forte foi a de que talvez não haveria outra ideia de como conseguir recursos hídricos para a manutenção da vida no povoado.
Com o receio da iminente desaparição das pessoas e dos animais, o povoado se reuniu novamente e decidiram mover-se para outro lado.
Saíram de completa estagnação em busca de um vale onde pudessem existir.
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2024 – #5 – Controle
Manipular as emoções. Esta foi a forma desenvolvida por Ângelo para construir as relações com os integrantes de sua comunidade.
Certo dia Ângelo acordou e descobriu que suas palavras ecoavam de uma maneira impositiva, e seus vizinhos passavam a internalizar tudo como se fossem ordens. Ângelo não acreditou em sua capacidade logo de início, e precisou de um tempo para se acostumar e aprimorar a forma como proferia cada sentença. Compreendeu, com o tempo, que conseguia facilmente manipular emoções, humores, hábitos, fazer com que toda a vida da comunidade seguisse apenas um parâmetro.
Por um tempo, viu a comunidade crescer, se desenvolver, cultivou a flora e fauna a partir de seus próprio gosto, onde as decisões tomadas sempre foram de acordo com tudo o que pensava.
Certo dia, Ângelo acordou sem sua língua.
Durante uma madrugada, vários membros da comunidade invadiram sua residência e deceparam o músculo de Ângelo. A partir deste dia ele perdeu a habilidade da fala.
Ângelo pensava estar fazendo o melhor para seus conterrâneos, mas não conseguiu compreender a insatisfação e a revolta que se nutria no submundo.
2024 – #4 – Extinção
Tudo começou quando a água deixou de sair da torneira. Moradores estranharam o fato de que, apesar de viverem próximo à regiões de nascente no chamado Morro do Dinheiro, a água havia acabado. O Morro do Dinheiro estava situado em uma região chuvosa, rica em recursos aquíferos, e apropriada para moradias pequenas e sistemas de agricultura familiar.
No local foi desenvolvido todo um sistema de coleta e distribuição da água, onde tudo poderia ser reaproveitado através de um complexo sistema de decantação. O sistema envolvia bambus presos com cipó, circulando entre árvores, estacas e residências. A coleta era feita através de poços estrategicamente localizados.
Desde o surgimento da comunidade no Morro do Dinheiro, toda demanda de lavagem, hidratação e irrigação foi suprida com este sistema.
Quando a torneira deixou de sair água, os moradores da comunidade se reuniram para tentar compreender o que se passava. Subiram aos poços e verificaram que todos estavam secos. A água não chegava mais ali.
Foi decidido, em um primeiro momento, que aguardariam o retorno da água. Esperaram pacientemente até que as torneiras abertas começaram a gotejar novamente.
Mas o líquido era turvo, escuro, com sabor adocicado, bolhas. Imprópria para irrigação, lavagem ou hidratação de qualquer coisa, pois foi percebido que as roupas não ficavam limpas, a pele rachava facilmente, e todas as plantações decresciam.
Os moradores se reuniram, e começaram a buscar a origem do líquido estranho.
Descobriram galpões escondidos no alto do Morro. Tudo foi muito estranho. Os galpões foram construídos com uma espécie de espelho, que fazia com que sua superfície externa se tornasse vegetações densas e complexas, impossíveis de serem percebidas de longas distâncias.
Era ali, possivelmente, que todos os recursos hídricos eram drenados e secados.
Os moradores se reuniram novamente e decidiram colocar em prática um plano para lidar com a situação. Primeiramente, e de forma silenciosa, iniciaram um movimento de transpor a comunidade para outro local próximo, e com condições adequadas de moradia e de plantio. Posteriormente, utilizaram os antigos poços para iniciar uma série de túneis, que ligavam de forma clandestina e escondida a nova comunidade com os galpões secretos. O sistema de distribuição e de decantação foi todo readaptado para coletar a água antes da chegada delas no galpão, levar os recursos para a nova comunidade, e despejar os restos da decantação de volta para a água que chegava ao galpão.
O líquido turvo se tornou uma fonte inesgotável de coliformes fecais, sujeiras, minerais e partículas diversas.
Os galpões deixaram de existir pouco tempo depois, sem nenhuma explicação aparente.
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2024 – #3 – Liberdade
Desconhecer tudo aquilo que a impede de chegar a algum lugar. Foi assim que Nena deu os primeiros passos para uma mudança radical em sua vida. O desconhecimento a fez perder o receio de tentar, de experimentar, de redescobrir os possíveis caminhos e trajetos até qualquer coisa.
Desconheceu barreiras, limites, desconfianças. Reconstruiu tudo que poderia servir de útil no percurso e deixou de lado o inútil para servir apenas de auxiliar para se pensar em algo diferente.
Assim desconheceu o tempo, a neurose, as correntes que a prendiam em um lugar concreto. O mesmo lugar concreto que deixou de existir, pois caiu no ostracismo com o desconhecimento.
À esta atividade de conhecer tudo novamente, Nena nomeou Liberdade.
No desconhecimento, tudo ganhou um novo significado.
Nena se tornou livre.
2024 – #2 – Ilegal
Joan não entendia muito bem como foi que chegou naquele lugar. Tudo começou com uma curiosidade.
Joan morava em um pequeno povoado no interior. Este povoado sobrevivia da extração clandestina de metais preciosos do solo, que eram exportados para a metrópole. O pequeno povoado era constituído por cerca de cinquenta famílias, que trabalhavam exaustivamente na extração dos metais. Os pólos extrativistas situavam-se cerca de quinhentos metros da borda do povoado, e eram constituídos de dois grandes tambores, camuflados de montanhas, com vegetação abundante. Uma paisagem deslumbrante ao lado de uma pequena população.
Dentro destes tambores, que possuíam entrada através de uma gruta, uma série de escadarias e passarelas foram construídas para que os trabalhadores pudessem descer e acessar a região extrativista. A vista interna parecia um espaço completamente oco, um túnel horizontal vazio com um complexo de estruturas de metal para circulação de pessoas e de metais.
Mas Joan não sabia nada disso. Joan tinha uma curiosidade específica na entrada da gruta, um lugar tão precário e abandonado, mas sempre tão vigiado por câmeras.
Certa madrugada, Joan subiu o morro e começou a cavar a vegetação, pois queria acessar a gruta para entender como era sua cavidade.
Joan cavou tanto que provocou um enorme deslizamento de terra, que abalou a estrutura dos tambores. Tudo desmoronou.
Joan foi soterrade juntamente com toda matéria que escondia a extração clandestina. Joan abriu os olhos sob escombros e viu os cadáveres de antigos trabalhadores que haviam desaparecido.
Sem empregos, a população local passou a se dedicar à agricultura.
2024 – #1 – Futuro
Juliana olhava para o horizonte enquanto pensava em Eduardo e suas belas palavras. Eduardo havia falado com ela sobre passos, que caminham rumo a algum lugar que, talvez, nunca chegue. Juliana entendeu como se fosse um processo de não saber para onde ir ou qual o caminho percorrer.
Imaginou uma bifurcação sem placas, sem direcionamentos, sem sentidos. Ambos trajetos levariam a algum lugar, ou poderiam levar a lugar algum. Ela imaginou se dividindo, e cada metade de seu corpo percorria um dos lados da bifurcação. Ela se bifurcou para entender qual a melhor forma de seus passos alcançarem o horizonte.
Os trajetos se entrecruzaram por várias vezes, passavam por cima, por debaixo, ficavam paralelos, seguiam juntos, desapareciam e voltavam a aparecer sem motivo aparente. Possuíam diferentes obstáculos, impedimentos, perigos diversos. O corpo bifurcado enfrentava tudo isso, se deteriorava, se recuperava quando encontrava com sua metade, e voltava a se destruir no percalço do trajeto.
O horizonte nunca chegou. Juliana não conseguiu entender para onde seus passos a levavam. Descobriu que o horizonte é imprevisível, o trajeto até lá é difícil e custoso, imaginar o porvir é sempre muito complexo.
Mas ela bem que curtiu.
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