Lapsos de Tempo #9

Corrente

Estou seguindo a corrente de ar, direciono os movimentos de corpo para que ela me mantenha no caminho certo. Primeiro, mantenho uma postura firme, mirando pra frente, sem ter um destino certo. Adoto uma forma mais aerodinâmica para subir a velocidade, cortando a resistência do vento. Os ombros estão encaixados para que as asas não fiquem livres, mas elas conseguem girar levemente para acompanhar o impacto invisível da corrente de ar. Assim eu não caio. Depois, sinto cada centímetro do meu corpo receber sua porção de vento que impulsiona e dá velocidade. Não falta destreza nesse pequeno corpo que sobrevoa as vossas cabeças.
Daqui de cima eu vejo tudo, observo tudo. Essas construções novas que surgem em qualquer lugar atrapalham o trajeto. Surgem novas todos os dias. Eles fazem com que os ventos mudem de direção, ou de sentido. Seguimos um pouco errantes neste trajeto sem rumo.
Aqui em cima a vida anda complicada. Existe uma certa competição por espaço entre esse tanto de coisa. São construções, aviões, helicópteros, torres, fios, papagaios e outras aves querendo se guiar pela corrente. Difícil fugir desta lógica quando os trajetos são planejados a curto prazo. Todo mundo aqui tem pressa, o que torna tudo mais complexo. Na corrente não há lugar para todo mundo, mas há outras correntes que guiam até outros lugares. Nunca entendi porque todos vão para os mesmos lugares sempre. A competição é por tempo também.
Sigo firme no meu caminho, desvio de fios com rolinhas, viro a direita para pegar a brisa vespertina que segue via oeste. Aqui é mais escuro, mas é um trajeto que refresca. Mudo para o patamar de cima, desvio de um poste de luz que piscava como filme de terror, a pressão aumenta, e minhas asas não aguentarão muito mais tempo. Volto para o patamar de baixo aproveitando o vácuo deixado por um companheiro, isso me faz descansar. Não sei para onde ele vai, mas preciso aproveitar o máximo possível a chance do descanso. Adiante me desvinculo do companheiro e sigo à direita, próximo de um coqueiro. Tem um tucano que vive ali em cima, hoje ele não estava. Lá embaixo, uma subida íngreme. Aqui, a corrente de ar me leva para cima sem muito esforço.
No horizonte, vejo que o sol começa a baixar. Eu acelero com um voo rasante na diagonal para baixo, pego impulso e subo o viaduto embalado. Subo alguns degraus de ar e alcanço o beiral da Mocadinha. Aqui é o melhor ponto para ver o sol se pôr.
Tem coisas que valem a pena o esforço.

La Idea, 2022 – Lomo Action Sampler, Fujifilm Superia 400

Referências

– Frederico, ultimamente tenho percebido que você está meio para baixo. O que aconteceu?
– Querida, há muitos anos atrás eu achei que minha ideia algum dia seria um sucesso. Mas até hoje eu só coleciono fracassos. Estou atolado em dívidas, o negócio já não é tão mais próspero, e nem o trocadilho com a animação faz mais sentido. Eu investi pesado em marketing, na apresentação de um bom produto. Contratei identidade visual e até adquiri parte dos direitos de imagem junto à empresa gringa. Contratei os melhores funcionários, pagando um salário mais que justo, pensando que o negócio iria prosperar, e hoje, nesta situação em que me encontro, não tenho mais perspectivas. Eu não consigo entender, de verdade, porque o mundo compreendeu que estamos mais próximos dos Jetsons do que dos Flinstones. Nós seguimos as mesmas etiquetas da idade da pedra, e não alcançamos o tráfego aéreo ainda. O mundo que se tecnologizou só o fez por partes. Seguimos tão antiquados e quadrados quanto os nossos antepassados. Apenas substituímos a rocha bruta por uma mistura de metais leves e resistentes, mas ainda assim deixando o rastro de destruição causado pela extração. O solo deixou de ser fértil porque não plantamos mais nada por pura preguiça. Preferimos comer embutidos e enlatados, que são re-fritos em óleos cancerígenos enquanto assistimos a qualquer besteira na televisão. O mundo instala esteiras rolantes nas calçadas das ruas, enquanto obriga alguém a pagar por uma academia para caminhar na esteira. É quase como ter um carro chique, importado, e usar os pés descalços para dar algum tipo de tração. A ilusão do moderno, do tecnológico, do futuro não passa de puros devaneios. A pedra, esse elemento revolucionário que deu origem aos mais diversos momentos da história, foi esquecida. Ela foi lançada contra tanques durante as Intifadas, serviu para erguer pirâmides e templos, suportou durante milênios vários tipos de inscrições e incisões, e reza a lenda que foi usada de suporte para carregar os dez mandamentos. Nada disso mais importa hoje…
– E o que você vai fazer agora?
– Bom, andei pensando e cheguei em algumas conclusões: Nada é para sempre; pedras resistem ao tempo mas não resistem ao humano; Flinstones e Jetsons são animações irrelevantes.
– E daí?
– E daí que me preocupa com qual animação iremos pensar sobre o passado e sobre futuro e em quanto tempo ela ficará obsoleta.
– (???)
– Não te preocupa essas questões?
– Não. O que me preocupa são todas as indenizações que você terá que pagar para seus funcionários, além das contas atrasadas e empréstimos. Você não sabe onde recorrer?
– Sim, vou assistir Galinha Pintadinha.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

Publicado por

La Idea

um gravador, que faz gravuras; um bicicleteiro que anda de bicicleta; um rugbr que joga rugby.

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