Lapsos de Tempo #21

Paz

– Já separei todas as minhas roupas brancas pra celebrar a virada do ano.
Mas porque brancas?
– Porque eu desejo a paz mundial pro ano de 2026!
Poderia explicar a relação entre essas coisas?
– Claro. É super simples. As cores simbolizam nossos desejos para o próximo ano. O branco simboliza a paz. O amarelo é a riqueza. O rosa a felicidade. O vermelho é a paixão. O verde é a esperança. O violeta é inspiração. O azul…
E se você escolhe uma cor, isso quer dizer que todas os outros desejos para o próximo ano ficam em segundo plano?
– Como assim?
Se você escolhe a paz, a felicidade fica em segundo plano? Você abriria mão da sua felicidade ou da sua riqueza se isso possibilitasse a oportunidade de garantir a paz?
– Não é assim que funciona!!
E como é?
– Você veste uma cor que vai apenas simbolizar algo que você quer. Não é uma regra…
E não se pode simbolizar de outra forma?
– Você pode mentalizar alguma coisa também.
E como se mentaliza a paz? O que significa paz?
– Paz é uma situação em que não há estresse, nem violência, nem medo, nem guerras, nem massacres. Todo mundo viveria em paz.
E você teria disposição de abrir mão de qualquer outra coisa para que a paz possa existir?
– Como eu te disse, é apenas simbólico.
Se é apenas simbólico, pra que desejar algo?
– Porque funciona como um rito de passagem, é tradição. Ano novo, vida nova.
Mas se não fazemos ativamente algo para que nossos desejos possam se realizar, de que adianta tudo isso? É só mais uma desculpa pra gastar dinheiro com roupas novas e ficar com a consciência limpa durante a virada.
– Que chatice hein?
Coitado de quem é daltônico, que vai errar o que quer simbolizar enquanto desejo pro próximo ano. Mais fácil vestir preto ou branco, todas as cores ou ausência de cores.
– Affe…

La Idea, 2024 – Olympus Pen-EE, Kodakcolor 200

Último post nesse blog em 2025. Um ano que profissionalmente foi uma merda. Muito aquém de tudo, vários prejuízos em feiras (que eram meu lugar seguro de vendas), lojas de silks deixando de vender as coisas que eu preciso pra trabalhar, vários trabalhos cancelados, dificuldades com agenda, hérnia de disco… Enfim, uma série de coisas que não foram tão legais. Não consegui ler muito, não consegui me engajar na academia, perdi muitos prazos e não dei conta de realizar muitos projetos. Termino o ano num baixo astral enorme, sem cabeça para lidar com várias questões, dívidas de empréstimos, calor, capitalismo, enfim, coisas demais.
Com a mudança de ano surgem os planos, de fazer novas coisas, de fazer diferente, e de tentar depender menos de vender a produção. Tirando as feiras em que já marquei fazer, pode ser que em 2026 eu não circule tanto como em 2025. Acho que preciso colocar os pés no chão e repensar um pouco meus trajetos.
O primeiro é ter mais tempo pra minha pesquisa. Desde que terminei o mestrado eu não consegui fazer mais nada em relação à isso. Acho que em 2026 preciso me organizar melhor, voltar a ter ritmo de leitura, de fichamentos, de reflexões, pra construir um projeto e tentar ingressar em um programa de doutorado.
O segundo é voltar a publicizar as aulas de linoleogravura. Tive alguns alunos em 2025, e acho que foram experiências bem legais. Inclusive, tentar gravar mais vídeos pro youtube, igual fiz no início de pandemia. Acho que eram atividades interessantes e que circularam bastante nas redes.
Em terceiro lugar, eu realmente preciso cuidar da minha vida social. Entre neuroses, inseguranças, baixa-auto estima e um certo desinteresse em fazer algo, preciso sair mais de casa e do meu atelier. Tenho ficado muito tempo aqui, e isso pesou muito nesse fim de ano.
Em quarto, tentar escrever mais e, por consequência, criar publicações com isso. Eu que comecei a escrever porque minha cabeça não andava boa lá em 2017, 2018, acabei gostando demais desta atividade. Esse ano eu acho que postei pouco, escrevi pouco, mas vou tentar ser mais ativo em 2026, materializar essas coisas que estão somente no blog.
Enfim, a hérnia de disco me deixou até repensando se trampar tanto com serigrafia seria uma boa. Isso pesou bastante nos últimos dois meses, vários serviços atrasando, acumulando, enfim, complicado manter a rotina. Então pode ser que isso não seja algo tão frequente em 2026.
Mas é isso, gostaria de agradecer todo mundo que esteve junto em 2025, e que em 2026 possamos nos aproximar mais ainda.
Se quiser deixar uma mensagem aí nos comentários, sinta-se a vontade preu saber que você leu isso, e que você está comigo nessa jornada chamada vida.
Um grande beijo e um grande abraço.
Até 2026.

Lapsos de Tempo #20

Volta

A primeira é suave, você concentra seus esforços em movimentar as pernas da maneira correta. Direita, esquerda, direita, esquerda… A cada perna uma força maior. Você respira fundo, faz cara feia, o ar entra forte, sai pesado.
A segunda ainda é tranquila, já venceu a inércia e agora só precisa aumentar a rotação. Os pés presos permitem que o movimento seja contínuo. A perna esquerda ajuda a direita, e vice-versa. Você ajusta o corpo e respira fundo.
A terceira começa a pesar. A relação fica mais pesada, aparecem as dores nas panturrilhas e nas coxas, a velocidade precisa aumentar de maneira exponencial.
A quarta é controle de respiração puro. Você puxa bastante ar enquanto tenta ignorar as dores das pernas. A velocidade já está alta, agora você só precisa controlar o equilíbrio com cada vez mais rapidez. Você corta o vento e o vento te corta igual. A cada minuto essa barreira fica para trás.
A quinta é adrenalina. Você já tem velocidade o suficiente para fazer curva em um paredão a 45°. A lateral de seu corpo fica quase paralelo ao chão, mas a força centrípeta te mantém no trajeto, sem perder a velocidade.
A sexta você já alcançou 60 km/h. Suas pernas estão latejando, seus olhos lacrimejando por conta da resistência do ar, você já está muito ofegante, mas não consegue parar.
A sétima você alcança 65km/h, está tão rápido que qualquer momento com perda de foco significa um acidente. Você enxerga o trajeto e se concentra, mantém a atenção.
A oitava você não sabe mais qual velocidade está. Na sua visão periférica vários riscos e manchas que sugerem que há algo ali, tudo passa rápido. Você mira apenas na pista, enquanto sente seu quadríceps explodir simbolicamente em dores absurdas.
A nona, você entende que não consegue mais respirar, suas pernas doloridas começam a falhar, é impossível imprimir mais força na rotação. Seus batimentos estão no ápice, fortes e rápidos.
A décima, na hora da curva, você sobe o paredão de 45° e a velocidade reduz instantaneamente. Você sobe, olha pra pista, respira rápido tentando retomar uma certa normalidade, as pernas não respondem tão bem por algum tempo. Foram 2 km intensos.
As próximas voltas serão suaves, tranquilas.
Em breve tudo se repete.

La Idea, 2024 – Olympus Pen-EE Kodakcolor 200

Lapsos de Tempo #19

Amor

Você me ama?
Acho que sim.
Você acha que me ama?
Hmmm, acho… Bom, primeiro, talvez, preciso que você defina o que você entenda que seja amar. Para saber se eu te amo nos termos que você entende como amar.
Amar é… é um sentimento muito forte que você tem por outra pessoa, a ponto de querer fazê-la feliz e estar sempre próximo.
Hmmm…
Sabe? Querer viver a vida com essa pessoa em toda sua plenitude, ser feliz juntos.
Bom, tenho minhas dúvidas se penso como você. Acho que amar, na minha concepção, trafega em outras vias.
Como assim? Você ama diferente?
Não que eu ame diferente. Mas acho que amor vai além de querer fazer alguém feliz, ou querer passar a vida com ela.
O que é amar para você?
Acho que para mim o amor é um sentimento muito forte, como você disse, mas extrapola a questão da felicidade ou da companhia.
Como assim?
Acho que se uma pessoa ama outra, ela não precisa fazê-la feliz ou querer toda a plenitude da convivência e do afeto, mas também estar plenamente satisfeito com a felicidade da outra.
E como isso se diferencia?
Acho que se você está feliz, independente do motivo, isso me traz um sentimento alegre, pois eu te amo a ponto de desejar que você seja feliz. E felicidade pode vir de qualquer forma. Podem ser relações sociais, profissionais, viagens, habilidades novas adquiridas, preocupações, cuidados, um momento em que você se sentiu bem, um abraço em qualquer momento e por qualquer motivo, uma pintura bem feita, um livro lido que foi tão bom a ponto de te fazer olhar para o céu por um instante imaginando os personagens na vida real. Se essas coisas te fazem feliz, isso me deixa feliz. E isso me satisfaz enquanto prática do amor.
Mas se você define assim o amor, porque uma pessoa decide se relacionar com alguém por um longo tempo, namorar, morar junto, essas coisas? Isso não é amor?
Acho que sim. Todas estas práticas talvez façam sentido se existe um sentimento mútuo que surge quando compartilhamos as nossas vidas. Acho que o amor permeia esses rios. Em vidas compartilhadas ambas pessoas deveriam desejar a felicidade da outra, e das outras em um contexto mais amplo. Acho que uma forma de pensar e agir não deve se sobrepor à do outro, muito menos largada nas mãos do outro como se lidar com as questões individuais fosse um dever do outro, sabe?
Como assim?
Ahhh, tipo se pensar em ciúmes, por exemplo. Ciúmes é um sentimento que todas as pessoas sentem, sem exceção. Eu sinto, você sente, e todas as pessoas ao nosso redor sentem. E esse sentimento chega em maior ou menor grau. A questão que eu penso é que meus ciúmes devem ser lidados por mim, e não por você. O ciúme nunca deixará de existir, ele pode incomodar bastante e fico pensando em como lidar com isso… Eu posso tentar encontrar o que me causa ciúmes, posso verbalizar isso para você. Mas quem precisa encará-lo de frente sou eu.
Mas se isso fosse uma regra as pessoas não se relacionariam. Os ciúmes existem porque o outro nos causa algo.
Mas esse algo tem a ver com o quê? Insegurança?
Pode ser que sim…
Mas a insegurança é sua. Se a nossa relação, nosso convívio, nossa história, e todos os sentimentos que lidamos mutuamente não são suficientes para que você lide com essa insegurança, eu preciso abandonar minha felicidade por você? Você não se sente feliz ao me ver feliz? Você não é feliz?
Sim, mas, pode ser por medo também.
Medo de que?
Da perda, por exemplo.
Perder a relação? Perder algo que é ou era muito bom? Acho que nos resta entender que as relações vêm e vão. A cada momento faz sentido estar mais próximo de alguém, isso não é algo fixo. Pode ser por um tempo curto, podem ser por várias décadas. Cada pessoa tem seu tempo. As pessoas que eu me interessava na adolescência não são as mesmas pelas quais eu me interesso hoje. O fluxo da vida exige esse tipo de trânsito. A metáfora que eu uso é a da estrada ou das ruas. A gente as segue, vamos fazendo nosso caminho. E outras estradas e ruas vão cortando esse nosso trajeto, encontrando, desencontrando, indo junto, separando… Acontece. A perda também faz parte da ação amar. Entender e deixar ir…
Mas eu quero ser o motivo da sua felicidade. Eu quero te fazer feliz! Isso é amor.
Você quer ser um dos motivos da minha felicidade, mas é impossível você ser o único motivo, a única razão. Se eu reduzir amar ao que sinto por você, ou ao sentimento que você causa em mim, você está me dizendo que eu deveria ser triste em todos os outros aspectos da minha vida. Isso é muito injusto comigo. Isso não é amor.
Não é ser a única razão, mas ser a mais forte.
Eu não consigo entender as razões enquanto uma competição de importância na felicidade de alguém…
Hmmm… Mas então, você me ama?

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE, Fomapan 100 PB

Lapsos de tempo #18

Fatalidade

Domingo foi dia de ir na feira, ver as amizades, comprar quitutes e almoçar ao som de pagodes clássicos. Todos os anos eu aguardo ansiosamente a chegada deste dia. Meu roteiro é sempre o mesmo: o mesmo ponto de encontro com as pessoas que sempre me encontram ali uma vez ao ano; comprar caixas de chá mate a granel que vem da agricultura familiar do sul do país; e assistir aos músicos tocando pagode enquanto me delicio com um feijão tropeiro vegano feito por produtores locais. Costuma ser um dia ótimo.
Vem meu amor, não faz assim, você é tudo aquilo que sonhei para mim…
O dia começou com uma cara de chuva, algo que estava fora do meu roteiro. Não que a chuva me impeça de fazer algo, mas quando você tem um evento em espaço aberto planejado, pensar duas vezes antes de sair de casa se torna algo comum. Nuvens carregadas, ventos frescos, clima abafado. Apesar disto tudo, penso que o dia me espera de braços abertos.
Com esse seu jeito faz o que quer de mim, domina o meu coração…
Eu, que sou um grande fã da iguaria indígena denominada cientificamente de Ilex paraguariensis, possivelmente de origem 100% Guarani, aguardo todo ano por este vendedor que vem do sul do país. Ele produz uma leva que possui uma tostagem mais controlada que esses industrializados que se vende em supermercados. O sabor fica mais forte, abraça o corpo por dentro, envolve o paladar de uma maneira que nenhuma outra bebida faz.
Olha nós outra vez no ar, o show tem que continuar…
O tropeiro também é algo especial. Ele é feito com feijão de coloração roxa colhido em terras de agricultura familiar. É misturado com coco torrado, soja graúda não-transgênica frita no molho shoyu, couve com alho na manteiga de castanhas, linguiça de lentilhas artesanal cortadas em rodelas e servidos com arroz branco em um prato de plástico. O molho de pimenta, caseiro, é opcional.
É uma saudade imensa que partiu meu coração…
Penso nisto tudo enquanto caminho em direção ao local da feira. O clima está ruim, fechado, mas eu acho que vale a pena a ida. Encontro com meus amigos e fico batendo papo durante um tempo. Sim, sempre encontro os mesmos amigos. É como se fosse um local onde todos saberemos quem estará presente. Após uns 40 minutos de conversas, começo a buscar nas barraquinhas pelo produtor do chá-mate. Depois de percorrer as 78 barraquinhas, descubro que desta vez ele não foi. O primeiro golpe atingiu meu coração em cheio. Minha compra anual de erva mate tostada pro meu chá diário foi cancelada, e com isso a primeira tristeza do dia.
Quando eu te vi pela primeira vez, me encantei com seu jeitinho de ser…
Passada a primeira frustração, sigo adiante para encarar a imensa fila do feijão tropeiro. Após alguns minutos em uma fila segurando o cardápio, descobri que estava na fila errada. Tive que entrar em uma fila específica do caixa, que demorou bastante até chegar minha vez. Na fila você só fica em pé, aguardando com ansiedade quando será a sua vez de pagar pelo serviço. Quando chegou a minha vez, tentei disfarçar meu descontentamento com o valor da iguaria. R$45 pelo prato de tropeiro. Paguei pensando que eu faria um rango melhor com essa grana em casa, mas achei que valeria a pena me desfrutar por uma última vez deste tropeiro tão fabuloso em minha memória.
Tira a calça jeans, bota o fio dental, morena você é tão sensual…
Com minha ficha em mãos fui na barraquinha onde serviam o feijão tropeiro. Era uma barraquinha bem desorganizada, não haviam filas, mas sim um aglomerado de pessoas gritando e tentando fazer o pedido antes das outras. Um verdadeiro caos. Eu esperei pacientemente até que alguém me atendesse sem eu precisar disputar atenção com pessoas muito mais engajadas na missão do que eu. Um senhora me atendeu com bastante calma e começou a preparar meu prato após pegar minha ficha. Ela serviu a refeição no prato, me deu juntamente com um garfinho de plástico e disse que o molho de pimenta era a parte, que eu poderia me servir a vontade. Assim o fiz.
Eu te quero só pra mim, como as ondas são do mar…
Enquanto voltava para o local onde estavam minhas companhias, observei que o tropeiro não estava tão rechonchudo como o do ano passado. Não tinha coco, e a linguiça não parecia ser a de lentilha que eu tanto gostava. Além disso, a porção de tropeiro era visivelmente menor que a de arroz, me fazendo refletir se realmente valiam os R$45. Enquanto caminhava me desviando das pessoas, dei um passo para o lado e me detive em um lugar seguro cedendo passagem para uma pessoa cadeirante que também tentava atravessar o mar de pessoas, só que para o outro lado. Para o meu azar, me detive atrás de um grupo de pessoas que não haviam percebido a situação, e uma delas deu um passo para trás abrindo os braços para simular alguma situação que conversava com seus amigos. Seu braço foi ao encontro do meu prato, enquanto eu me contorcia todo pra tentar equilibrar minha tão sonhada refeição.
Você só colheu o que você plantou…
Não teve jeito, meu pratinho virou e 89% da porção de tropeiro caiu, indo direto para o chão. Quando olho para o que sobrou praticamente só vejo arroz, pensando que no prato tinha tanto arroz que nem ia fazer falta se eu perdesse um pouco dele ao invés do tropeiro. Não dei conta, um xingamento saiu de minha boca, todo mundo ouviu. Fico olhando para a pessoa que começou toda a confusão, e ela me xinga dizendo que eu estava parado atrás dela. Isso me revolta bastante.
Eu te vejo nos meus sonhos, e isso aumenta mais a minha dor…
Acabei almoçando um arroz de R$45, sem meu mate tostado, ouvindo pagode ao vivo enquanto caía uma garoa disfarçando minhas lágrimas.

La Idea, 2023 – Canon BF800, Double-X 200 PB

Lapsos de Tempo #17

Tempo

A vida nada mais é do que um tempo que passa. Mas acho que é importante a gente perceber e passar o tempo junto com ele. Talvez a vida assim tenha um sentido.
– E se eu me sentar aqui, consigo ver o tempo passar?
Passam carros, pedestres, animais. A luz muda, as sombras caminham. Eu consigo perceber o vento apenas por conta do balançar das folhas, dos galhos, da sujeira da rua.
Olho para o relógio, mudam os ponteiros que apontam para números que marcam que horas são. O tempo passa rápido quando deveria passar devagar. E vice-versa.
Acho que tento perceber algo para provar se ainda estou vivo, ou se apenas vejo a vida passar enquanto perco tempo. Eu digo que estou preocupado.
– Isso me preocupa!
Mas ninguém me escuta. Não há pessoas tentando perceber o tempo passando.
Imagino que essas pessoas apenas vivem sem se importar com isso.
Talvez, em algum momento, elas se olham no espelho e veem rugas na pele, cabelos brancos. Talvez sintam que estão sem fôlego, que o corpo demora mais tempo para se recuperar de uma enfermidade, que o álcool ingerido embriaga muito mais rápido. Sem falar na dor de cabeça do dia seguinte.
– Maldita dor de cabeça!
Se pensarmos no tempo que passa, pode ser que estejamos perdendo esse tempo.
Talvez tudo isso seja perda de tempo. Pensar, perceber, indagar.
É vida que passa. Será que isso pode mesmo levar à loucura?
– Dar sentido a vida pode levar à loucura, mas uma vida sem sentido é uma tortura da inquietação e do vão desejo. É um barco que anela o mar, mas o teme…
De onde estou não vejo o barco, apenas temo o mar.

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE, Fuji 200

Ow!

Com licença Senhor, alô alô. Me desculpe te interromper, mas sua carteira caiu!
Senhor, sua carteira caiu no quarteirão de trás, vim avisar-lhe!
Diaxo, sai fora daqui!!
Ow, Senhor, não queria te incomodar, mas preciso te avisar da sua carteira, ela está no chão!
Cala a boca!!!
Eu queria pegar e trazer, mas ela tava muito cheia e pesada, eu não dei conta, ia acabar fazendo bagunça. Eu imagino que o conteúdo dela deve ser importante para o Senhor, por vim correndo te avisar!
Maldito seja!!!
Senhor, com licença, não queria atrapalhar seu percurso, mas considero de extrema importância que o Senhor volte e pegue sua carteira que caiu no chão. Aqui é rua, qualquer um pode roubar.
Calado!! Me deixe em paz!!
Senhor, eu sou muito paciente, posso ficar repetindo várias vezes aqui, mas não dá para o Senhor me ignorar assim, eu vim correndo, na maior boa vontade.
Vai embora!!! Vou te chutar daqui!!
Ow, não fiz nada demais, vai me chutar porque?? Eu hein? Não posso nem mais ser gentil.

La Idea, 2024 – Olympus Pen-EE, Kodakcolor 200

Imaginokupa #4

Vandalismo

Já fazem três décadas que a casa de dois pisos independentes, número 120 no quarteirão da Rua Mitre, entre as ruas Gonzo e Mortos, serve como retiro de escrita. Inicialmente, o conjunto de casas abandonado foi um grande mistério para a comunidade local, que via o abandono tomar conta da estrutura. Havia uma placa de vende-se, porém não há muitos registros de visitas para negociar o imóvel, tornando o espaço um local de acúmulo de lixos e entulhos. Apesar do tempo desocupado, não foi um lugar em que as pessoas costumavam adentrar.
Circulavam na comunidade vários boatos sobre o que poderia ter acontecido com os antigos donos ou ocupantes, além de lendas extraterrestres, mitológicas e folclóricas que permeavam o imaginário da vizinhança. De assassinatos a abduções, sempre surgiam alguma história nos bares presentes ao redor das casas.
Um grupo de pessoas, certa vez, decidiu entrar na casa para tentar encontrar qualquer pista que tirasse a dúvida de vez sobre a história da casa ou dos proprietários, e para isso bolaram planos de invadir pela janela.
A execução foi bem simples, pois as portas se encontravam destrancadas e nem houve a necessidade de acessar por outra abertura, e em poucos minutos todas as portas e janelas já estavam abertas, com a luz natural do sol acessando os cômodos empoeirados.
O grupo de pessoas, começou um processo de limpeza do local, e catalogou tudo que encontravam pelo caminho. Não haviam documentos, nem objetos eletrônicos, a quantidade de móveis era bem escassa, e nem o governo local possuía registros de propriedade das casas. O grupo de pessoas, que inicialmente fora chamados de vândalos por invadir a residência, entenderam que não foi vandalismo se nada foi destruído, muito menos houvera denúncias nas autoridades locais.
Não havia muito o que fazer que não fosse sentar em roda e tentar discutir possibilidades para a existência do imóvel. As pessoas mais velhas da comunidade não se lembram dos antigos moradores, não há fotografias, não há marcas de que alguém já esteve ali.
Mas algo naquela roda de pessoas pensantes acontecia sem que os membros do grupo se dessem conta. Todas as pessoas começaram a ter ideias sobre a biografia da casa, de seus ocupantes, da estrutura, da arquitetura, do porquê da existência dela. Incrivelmente, surgiram várias teorias, complexas e detalhadas, que começaram a serem registradas em cadernos por cada membro.
A cada dia que as pessoas se reuniam, mais e mais folhas de caderno eram escritas, com diferentes histórias, que ultrapassavam os limites temáticos da casa em que se encontravam, formando todo um ecossistema de escrita e criação literária.
O imóvel, ocupado diariamente, ganhou o nome de Casa Vandalismo, pois era como as pessoas foram rotuladas no início da ocupação do espaço. Com o tempo, mais pessoas se juntavam ao grupo, e outras ideias começaram a ser desenvolvidas. Fanzines e publicações independentes começaram a surgir, impressas em diversos meios artesanais, com temáticas sobre aborto, gênero, comunidade, artes, arquitetura, biografias, astrologia, astronomia, engenharia, sociologia, meio ambiente e ecologia. Não podemos esquecer das inúmeras obras de literatura de ficção, e sua irmã a ficção científica, além do clássico realismo mágico. Era como se a casa fornecesse alguma substância para o cérebro em que a produtividade ligada à criação e à imaginação fossem despertas.
A fama daquele local ganhou o mundo, e haviam listas de espera para que escritores de diversos níveis de experiências, passando por processos de bloqueio criativo, pudessem se juntar à roda e começar a confabular ideias e teorias naquele espaço peculiar.
A Casa Vandalismo se tornou patrimônio do bairro, recebendo visitas de turistas curiosos com a mágica do lugar, e mais teorias surgiam sobre como ele poderia funcionar. Com o tempo inaugurou-se um Retiro de Escrita, que alimentaram as editoras, bancas, livrarias e bibliotecas com muitas obras inéditas de jovens escritores.
Apesar do grande fluxo de ideias, o passado do imóvel segue sendo uma página em branco. Não se sabe como surgiu, quem encomendou e porque passara tanto tempo abandonada. Ninguém ousou questionar as razões mágicas que fazem as pessoas começarem a criar.
As pessoas têm medo de que isso acabe quando souberem a verdadeira razão.

2024 – #30 e #31 – Renascer e Morrer

Clyar abriu os olhos e percebeu uma multidão a seu redor. Todas as pessoas encaravam aquele ser recém vindo ao mundo. Não entendia muito bem o que estava acontecendo. Tentou se levantar, mas não tinha certeza de como fazer isto. Seu cérebro ainda não tinha entendido como enviar informações aos membros. Percebeu sua locomoção limitada e entendeu que teria que desenvolver essa noção de corpo aos poucos.
– Porque há tantas pessoas em volta me observando?
A pergunta martelava os pensamentos de Clyar, que conseguia se lembrar vagamente do que acontecera. Sua memória, apesar das falhas e lacunas, trazia fogo, calor, um sentimento muito forte, impossível de ser descrito em palavras.
Dor, agonia, ansiedade, vontade de mudar. Tudo isso era sentido por Clyar, que conseguia descrever perfeitamente enquanto via as pessoas se aproximarem. As pessoas vinham e postavam suas mãos de fuligem em sua cabeça, balbuciavam algo de difícil compreensão, viravam as costas e iam embora para que outras pessoas fizessem o mesmo.
Esse processo tardou alguns dias para que pudesse terminar, até que todas as pessoas repetissem o gesto. Nesse tempo, Clyar tentava se lembrar do que acontecera antes, para compreender a razão de toda aquela comoção social. Conseguiu mexer as articulações, mas ainda não conseguia ficar de pé. Não haviam forças e nem coordenação para tal.
Clyar se lembrou de que estava subindo uma escada de fogo, suas mãos se queimavam a cada degrau. Tal constatação era comprovada pelas feridas de queimaduras em suas palmas. Sentia medo, sentia dor, não entendia porque se lembrava de momentos tão traumáticos. Na sua lembrança a escada não tinha um fim, pelo menos não enxergava para onde iria.
A base da escada era em um lugar limpo, colorido, fresco. Tudo parecia perfeito demais. Clyar se lembra das pessoas sorrirem. Elas possuem casas, trabalhos, salários, televisão, bares, carros, família, todo tipo de alimentação. Mas algo não estava certo. Clyar desconfiava que aquilo não era real.
Se lembrou de encontrar uma escada e começar a subir. A escada não tinha fim. Seus degraus pegavam fogo, e a cada metro alcançado a dificuldade aumentava.
Após semanas de intenso esforço, sua energia estava por terminar. Pensou em desistir e retornar para a base da escada, viver o trajeto que os deuses escolheram, e seguir sem maiores problemas. Mas isso se tornava cada minuto mais impossível, a queda seria demasiada alta.
Clyar tinha a certeza de que toda aquela apatia da vida não era a única possibilidade.
Uma grande explosão surgiu de repente, destruindo todo seu corpo, eliminando toda e qualquer matéria presente. Era o fim da escada e, por conseguinte, da subida.
Clyar transpassou um limite que ninguém jamais havia ousado ultrapassar.
A morte do corpo enquanto matéria revelou algo que até então era completamente desconhecido para Clyar.
Ao abrir os olhos novamente, finalmente compreendeu o que se passava à sua frente. Pessoas livres celebravam a ousadia de alguém que ousou cursar um caminho distinto. Desafiou os trajetos divinos e pagou caro pela escolha. Pagaram caro.
Mas valeu a pena.
Voltou a memória, voltaram os movimentos. Tudo era novidade, vivenciado sem precedentes.
Uma sensação indescritível tomou conta de Clyar.
Foi a primeira vez que sentiu a liberdade.



Lapsos de Tempo #16

Marquinho

Pulo da janela para o telhado. Sigo adiante sem vacilar os passos. Subo em uma clarabóia, vejo um cachorro dormindo no chão ao lado da cama, seus donos não se importam muito com ele ali. Ele fareja algo, eu olho, sorrio, e sigo meu caminho. Não me importo muito com o que acontece ali. Piso de telha em telha sem fazer barulho. Meus passos são leves e firmes. Consigo saltar sem fazer ruído em um parapeito estreito. Caminho com cuidado. Apesar de experiente, qualquer coisa pode acontecer. Impulsiono meu corpo por uma haste metálica de sustentação, me agarro ao fio e consigo chegar no próximo edifício. Subo pelo relevo que os tijolos deixam na superfície, quase quatro andares até algum lugar seguro. Passo por uma entradinha próxima de uma janela cheia de vasos de plantas. Consigo passar sem derrubar. Entro em uma residência grande, raspo um pouco minhas unhas no sofá Ônyx, ele me pareceu ter uma textura interessante, mas só era feio e sem graça mesmo. Atravesso toda a casa até a varanda, ela sempre está aberta para entrar uma ventilação natural, uma brisa vinda do mar que toda noite dá as caras. Da grade da varanda eu salto para a palmeira que está no pátio. Da palmeira, me agarro em um cipó e me encontro com Marquinho, um sagui que me acompanha nos furtos durante a noite. Marquinho me disse que conheceu um novo lugar, maravilhoso. Marquinho diz que hoje é uma noite especial. Subimos pela mata, pulando de galho em galho, às vezes um telhado surgia, mas nada que impeça nosso trajeto. Somos ágeis.
No topo de uma castanheira milenar, vemos a lua cheia e nos deliciamos com o mais belo visual daquela mandala luminosa que se agigantava em nossa frente. Estou feliz por ter vivido o suficiente para ver isto. Adormeço.
Sonho com várias viagens e lugares, outros seres que habitam este espaço. Meu sonambulismo me deixa fabulado com todas as coisas que conheço nessa passagem. Estou com muita preguiça de levantar, por aqui ficarei.
Foda-se o mundo.

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE, Fuji 200

Pensei

Hoje é o dia mais chuvoso do ano e eu irei retratar isto.
Pensei em fotografar enchentes, mas não é o dia com maior volume de chuvas do ano.
Pensei em registrar cada gota que escorre nas superfícies urbanas, mas me pareceu utópico demais.
Pensei no espelho d’água gerado pela poça, que reflete perfeitamente a sede luxuosa do governo enquanto pessoas pisam em cima deformando a imagem, mas me pareceu uma crueldade clichê demais.
Pensei no jorro de água que os automóveis lançam contra os pedestres, mas me deu ódio só de pensar na cena.
Pensei na serenidade que são as gotas caindo no piso e deixando marcas que rapidamente somem, mas tenho certeza de que uma fotografia apenas não bastaria para isso.
Pensei em registrar o quão carregadas estavam as nuvens, mas a captação da lente não dava conta de chegar até lá.
Pensei em enquadrar a cena de um grupo de pessoas se espremendo em um abrigo na parada de ônibus, esperando um transporte que parece demorar mais a cada dia, mas percebi que ninguém mais usa ônibus em dias de chuva.
Pensei em captar o momento em que um jovem sacode um galho de uma árvore, o que faz com que seu irmão receba todas as gotas que caíram com o menear dos outros galhos, mas não fui rápido o suficiente.
Pensei naquela gota que escorre de cada folha, nos motociclistas uniformizados com trajes que protegem da chuva, com vendedores de sombrinhas nas esquinas, com aquela criança que olha pro céu e tenta desviar-se das gotas que caem, ou mesmo com aquelas pessoas que ainda não sabem se correr molha mais, menos ou igual que caminhar na chuva.
Pensei em cantar Colligere, que cita Fernando Pessoa, quando o vento cresce parece que chove mais.
Mas vi alguém tentando registrar o mesmo que eu, com mais certezas que dúvidas.

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE Fuji 200

2024 – #29 – Anarquia

O povoado de Afyuha tinha seus habitantes compostos por dissidentes de grandes centros urbanos após o período de destruição total. Todos os grandes centros urbanos foram destruídos por conta de uma revolta que durou algumas centenas de anos, e que culminou na matança de vários líderes políticos e personalidades globais. Muita gente morreu na revolta, cabeças foram cortadas, e o impacto de destruição tornou as cidades completamente inabitáveis. Com a falta de recursos, dos mais diversos tipos, ninguém mais ousou estar no papel de governante, e vários grupos populacionais migraram para outras regiões para reconstruírem suas vidas.
Afyuha foi uma dessas repovoações, começou como um assentamento em uma região semi-árida, e logo seus moradores começaram um processo coletivo de gestão e infraestrutura do local, respeitando o que já existia no bioma. Conseguiram captar água do lençol freático com um sistema de bombas de bambu, e utilizaram todo o sistema de gotejamento para nunca faltar água para as plantações e hortas que serviam de subsistência e escambo com outras comunidades.
A medida que Afyuha crescia, todo o projeto era adaptado, seguindo normas básicas de coletividade e respeito à natureza aos indivíduos. Todas as decisões eram tomadas pelos grupos familiares que ali viviam, e todo trabalho era realizado de forma coletiva. Afyuha crescia em um formato espiralar, de forma que não existia centro, mas caminhos por onde quer que fosse.
Afyuhanes se orgulham muito de viver neste local, ainda que tenham um pouco de dificuldades para resolver conflitos entre seus habitantes. Independente de tudo, o povoado conseguiu prosperar, e o modelo têm sido utilizado de referência em outras repovoações próximas.
Ninguém queria outra guerra.

Ruim demais para ser mentira #11

Camping

Quando eu era pequeno me lembro de ter ido num camping com minha família. Tenho memórias bem difusas deste dia, mas a incredulidade com que as pessoas recebem esta história fazem com que ela tenha algo bastante especial.
Primeiro falaremos sobre o cenário: uma área verde com muitas árvores, que agora me parecem que estavam meio secas, gramado, sol, praia. Uma criança de sunga, vulgo eu, corria para cima e para baixo brincando de algo completamente aleatório. Provavelmente com a pele já muito lastimada pelo sol enquanto me perdia nas marés de água salgada.
Dormíamos em uma barraca bem estruturada, composta de dois quartos e uma varanda, e eu me lembro até de um churrasco ter sido feito na área externa. Quando eu digo dois quartos, pode parecer que é algo bobo e apertado, mas eram dois fucking quartos bastante espaçosos, impensáveis para pessoas que já nasceram na era das barracas que são montadas apenas com uma varinha no iglu feito de lona.
Fico imaginando esse tipo de barraca old school sendo carregada por neohippies brancos de dreads em seus mochilões por regiões indígenas, exigindo brunch de algo que não existe ali. Algo completamente impensável.
A lembrança que eu tenho do lugar traz algo mais especial ainda: o bar. Aquele espaço raiz interiorano, uma janelinha onde se pede bebidas e tira-gostos, um alpendre coberto, nas paredes haviam pinturas e propagandas do que se vendia ali, tudo muito bem ventilado no espaço, mesas de madeira acompanhada de bancos que lembram muito o refeitório de uma universidade. Me lembro de ter música ao vivo e de jogar baralho com minha família enquanto eles se deliciavam com uma cerveja gelada (eu espero) naquele calor praiano de algum lugar que eu não lembro onde era.
No bar todas as pessoas do camping se encontravam, e eu me lembro que iria muito lá. Mas minha memória quer muito me enganar, pregar peças na minha realidade infantil e plantou uma situação muito inusitada. Tenho uma memória muito nítida de uma noite no bar em que foi feita uma encenação da Escolinha do Professor Raimundo. Sim, estávamos sentados na mesa, e os personagens foram se sentando junto da gente nos bancos sem encostos, e todos riam a cada piada que era proferida. Eu não entendia bem o que estava acontecendo, mas me lembro de ter sentido muita raiva nesse momento. O personagem do Seu Boneco sentou-se à minha frente, deu as costas pra mim e eu não possuía nenhum campo de visão que não fosse as costas dele de regata surrada e da nuca vestida com uma meia-calça velha rasgada. Eu não conseguia acompanhar o que estava acontecendo e tratei apenas de esperar que o evento acabasse.
Na minha concepção de tempo aquilo tudo durou uma eternidade, e esses programas besteiróis que simulam escolinhas com atores velhos falando baboseiras é algo que eu não curto nem fudendo. Inacreditável como tudo isso pode ser facilmente inventado por uma mente viajandona como a minha né? Quando eu conto ninguém acredita. Nem eu acreditei em mim mesmo.
***
Recentemente interpelei minha mãe e minha irmã sobre essas lembranças. Eu realmente achava que eu tinha sonhado com isso tudo. Minha irmã sempre me contava histórias aleatórias de como ela enxergava as situações, e eu sempre acreditei em tudo independentemente se fosse verdade ou mentira. Minha mãe me respondeu de forma simples, direta e rápida: “Sim!! Foi na Praia do Siri.” e seguiu com outra mensagem curta: “A barraca tinha 2 quartos e uma varanda.”. Eu comecei a rir muito, porque eu realmente achava que tinha sonhado com isso tudo. Sobre a Escolinha, minha mãe confirmou a veracidade do ocorrido e completou: “Teve. Vc ficou puto e começou a chorar. Foi numa área de camping” enquanto minha irmã se limitou a confirmar com um intenso “Simmmm”. De acordo com elas, existem fotografias deste dia, de uma criança, no caso eu, dormindo na imensa barraca.


2024 – #28 – Lei

Juston, um governante muito querido, certa vez teve a brilhante ideia de criar uma assembleia popular unificada. Ele reuniu todas as pessoas que viviam em seu país, um enorme território de oito milhões de quilômetros quadrados, e escutou atentamente cada sujeito que se apresentava. Ele dividiu a escuta em duas partes: a primeira ele escutava todo o histórico de vida daquela pessoa. A segunda ele registrava todas as sugestões das pessoas de como melhorar a vida naquele país.
Depois de passar vários anos escutando todos os habitantes, Juston compilou um livro que continha sugestões e de como deveríamos viver, baseados em um senso comum de respostas que se repetiam. Ele tinha a certeza de que se a maioria concordava que o que estava no livro fossem coisas positivas, todos prosperariam. As populações passaram a seguir tudo o que estava escrito no livro de Juston.
Pouco tempo se passou e vários conflitos começaram em diferentes partes do território. As motivações eram várias, infinitas, difusas. Juston achou que o que potencialmente é bom para a maior parte das pessoas, seria o melhor para todas os habitantes. Queria ser um bom governante, fazer algo realmente eficaz para o país.
Juston finalmente entendeu que unificar o senso comum ignorava todas as particularidades da população, da geografia e da história de cada contexto regional.
Juston fracassou dentro dos limites em que ele podia atuar.

2024 – #27 – Ordem

Pela primeira vez na história do grande país Nugas, uma manifestação foi composta por todos os setores da sociedade civil. Muitas centenas de artistas se apresentaram nas mais diversas expressões artísticas, milhões de pessoas ocuparam as ruas de 8.967 cidades levantando as mais diversas bandeiras. Foi uma unificação nunca vista antes. A quantidade e multiplicidade de cartazes e frases de efeito deram o tom de insatisfação da maior parte da população contra o atual governo unificado. A manifestação durou várias semanas, aglomerou todos os tipos de pessoas, das mais diversas castas sociais e econômicas. Foi uma festança magnífica, digna de entrar para todos os livros de história. Várias fotos e vídeos registraram o momento único na história.
Os governantes de Nugas, por sua vez, seguiram seus jantares se deliciando com o banquete que era servido no Palácio do Governo.

2024 – #26 – Memória

Doren passava seus dias pesquisando toda e qualquer informação que pudesse. Percorria montanhas, anotava tudo o que via. Escutava as pessoas falando, escrevia tudo em seu grande caderno. Percorria as selvas, seus habitantes, as cidades, povoados, vilarejos, caminhava e pedalava por estreitos, vielas, becos, navegava em riachos, ribeiros, rios, lagos. Doren registrava tudo o que conseguisse. Desenvolveu habilidades de observar e escutar, memorizar tudo da melhor forma possível, desenhava, escrevia, refletia. Fazia conexões com vários outros fatos que ocorriam em diferentes lugares. Nada podia deixar de ser registrado. Pelo bem do futuro.
Viver era um eterno registro do vivido.

2024 – #25 – Ilusão

Através de um aparelho eu vejo números. Hoje tudo pode ser quantificado. As distâncias, as economias, as amizades. Seu trabalho, seus estudos, seu lazer, tudo que você faz ou pensa em fazer é quantificado de alguma forma. São dados que estamos seguindo cegamente, pensando em chegar a algum lugar. Nada disto é vida.
Vemos um plano difuso, mas dá muita preguiça percorrê-lo com nossos próprios pés. São muitos obstáculos. Ver números é mais confortante.

Ruim demais para ser mentira #10

Água

Quando eu era criança eu achava que toda comida e toda bebida que entrava pela nossa boca era depositada em todo o espaço interno do corpo. Simplesmente, na minha cabeça, o corpo era um grande espaço vazio que era preenchido com comida e bebida. Eu sempre fui muito bom em comer, e essa era minha explicação plausível para nunca ficar devidamente saciado.
Inclusive, vontade de cagar era algo que acontecia somente quando o corpo já estava cheio de comidas e precisava liberar um espaço para a próxima alimentação. Eu não tinha limites quando o assunto era comida, e minha mãe precisou brigar muito comigo para que eu não tomasse Biotônico Fontoura, pois eu adorava o sabor sem saber que isso servia para abrir o apetite.
Claro que eu recusava algumas coisas que eu achava esteticamente feias, tipo couve-flor, ou com cheiro muito forte, tipo pequi. Até jiló ainda é difícil se acostumar com o sabor amargo, mesmo depois de tantos anos, mas o tempo me fez ampliar minhas opções de alimentação.
Com líquidos não era muito diferente, mas na minha cabeça o líquido saía logo depois que ele entrava, e eu tinha uma preguiça enorme de fazer xixi.
Sempre que me dava vontade de “tirar água do joelho” eu ia na cozinha e tomava tudo quanto é água que eu poderia consumir no dia. Virava copos e copos pois aproveitaria a ida ao banheiro para mijar toda essa água e eu não precisar retornar depois. O líquido competia espaço com a comida, e por isso deveria sair mais rápido.
Uma cena frequente que me lembro quando criança era o de beber muita água antes de dormir, pois aproveitaria a última ida ao banheiro para liberar todo o xixi que eu tinha no corpo e, claro que essas coisas não passam ilesas, e uma questão comum da minha infância era eu acordando todo mijado.
Nunca entendi muito bem o porque eu fazia xixi na cama, mas mesmo depois de adulto isso ocorreu algumas vezes. Mais recentemente eu entendi que eu ficava preso no meu próprio sonho. Sabe aquelas vezes que você está sonhando e precisa muito achar um banheiro para mijar? Pois é, em algumas destas vezes eu não conseguia acordar e mijava no meu sonho. Ou seja, mijava na cama.
Eu nunca fui muito bom em lembrar dos meus sonhos, mas esses em que eu mijava eu lembrava com certa frequência. Hoje tomo muito cuidado para não ingerir muitos líquidos depois das 21h, no intento de não ficar preso no meu sonho novamente.
O jovem eu poderia ter se livrado de muitos colchões ao sol e poças de urina no quarto se tivesse desconfiado antes que o corpo funciona de outra maneira.

2024 – #24 – Fator

Teoria e prática precisam sempre caminhar lado a lado. As vezes se distanciam, as vezes se juntam, mas elas não conseguem se separar. Elas constituem parte do leque, que também chamamos processo, de possibilidades para alcançar algo que se almeja. Eles possuem uma certa alternância a depender do tempo e da disponibilidade de recursos. Ora a teoria está mais forte, ora é a prática. Elas se contradizem todo o tempo, se refutam e concordam entre si. São elementos indissociáveis a qualquer modo de vida. Tudo que fazemos segue esta lógica, ainda que não nomeemos desta mesma maneira. Quando tentamos separar um do outro, tudo perde o significado. A questão não é saber o que vem primeiro ou que vem depois. É saber o que mais a gente precisa em determinado momento, em alguma situação. Alternância é movimento.

2024 – #23 – Vigilância

Na rua de cima há uma casa sem telhados e sem janelas, somente paredes. As portas fechadas possuem aberturas de vidro, sem vidros. Todo o espaço está tomado por mato. Aí complicaria muito a situação. Virando a esquina há outra casa tomada por matos, mas vários anúncios de vende-se e aluga-se me faz pensar se alguém realmente quer viver neste im´óvel. As paredes estão desgastadas, janelas e portas enferrujadas, difícil ver o que tem dentro. Caminhando mais um pouco há outra casa, velha, de arquitetura neocolonial. Suas janelas e portas estão tampadas por blocos de tijolo formando um grande paredão. As janelas do segundo andar seguem o mesmo estilo de tijolos que tampam o que poderia entrar de luz e ar. Vê-se mofo e umidade escapando por algumas frestas, além de uma vegetação parasitária que dá as caras por várias frestas e fissuras nas paredes. Fios de arame farpado decoram a fachada da casa. Descendo a rua em diagonal há uma casa também tomada por matos e entulhos, oriundos de vários processos de destruição. O teto desabou levando consigo a estrutura de sustentação do forro e do assoalho, revelando mais espaços vazios e abandonados. Aparentemente houve uma enchente, pois há marcas de água barrenta até uma certa altura da parede. Também há restos de móveis largados onde provavelmente seria um quarto de criança. Descendo mais um pouco há uma casinha pequena, o telhado está levemente danificado, com algumas telhas faltando e parte da sustentação está comprometida. Entro, verifico as paredes que estão de pé, com socos e empurrões verifico o estado das colunas de sustentação. Avalio as condições do telhado de maneira pormenorizada. Também observo a quantidade de matos, entulhos e o quanto de energia eu teria que gastar arrumando tudo isto.
Achei minha próxima casa.

2024 – #22 – Manejo

Gire a alavanca para o lado direito segurando com a mão esquerda. Puxe o pino principal e afrouxe o pino auxiliar. Com o peso do ombro aperte o cabo e ajeite-o próximo da costela, mas não em cima. Gire o corpo 35° para que a peça principal seja encaixada na ponta. Puxe o elástico contra o corpo e ajeite dentro do espaço reservado para ele. Carregue com as bombinhas pelo compartimento superior, depois ajeite o objeto no tripé. Fique deitado, com um dos braços apoiado no chão e outro segurando a alavanca do elástico. Pelo orifício superior com lentes você consegue verificar se está tudo correto. A lente reflete ângulo de despejo, engrenagem firme, equilíbrio dos vetores horizontais e diagonais. Cuidado com cabelos e óculos, pois podem atrapalhar o bom funcionamento. Segure a respiração quando estiver pronto. O gatilho estará na lateral direita, preso ao suporte mecânico anterior. Uso único. Use com sabedoria e moderação.

2024 – #21 – Progresso

Anmol governava um pequeno povoado na região dos mares de morros da Península de Wayooth. O povoado possuía uma limitação que estava na ordem da arrecadação de impostos, pois não conseguia desenvolver-se por falta de recursos financeiros. Anmol pegou empréstimos bilionários e começou a transformar todos os morros em terras planas, zoneando em regiões de residências de 3 e 4 pavimentos. Estas residências eram destinadas a receber, principalmente, famílias imigrantes que se refugiavam no local e que se qualificavam para receberem um aporte financeiro do Estado pra se instalarem no local. O sucesso foi tamanho, que a cidade cresceu e se desenvolveu a ponto de saturar a Península de pessoas, veículos, resíduos industriais e domésticos, poluição e áreas impermeáveis. A situação ficou insustentável, gerando um êxodo de pessoas para outros locais, uma escassez de serviços e mão de obra, fazendo com que parte da agora cidade de Wayooth se tornasse completamente abandonada e em ruínas.
O Estado não deu conta de seguir com os aportes financeiros, nem com a manutenção de uma cidade que se desenvolvia e crescia desordenadamente.
Todo o bioma local foi destruído.
Wayooth se tornou um símbolo do progresso e do abandono de forma muito veloz.
Anmol não vive mais em Wayooth.

2024 – #20 – Terreno

Freihsh é um povoado semi-nômade situado na planície costeira de Rash. Suas casas são construídas de forma que um dia, seguramente, serão destruídas pelo tempo. Os habitantes do povoado são relativamente desapegados de bens materiais, pois possuem uma noção de que os objetos não precisam durar para sempre. Isso movimenta a criatividade e a produção e pesquisa no/do bioma local. As famílias possuem terrenos, previamente demarcados, e sempre estão construindo novos lugares para residência enquanto entendem a deterioração natural da atual. Os lotes são revezados entre residências a serem construídas, residências em deterioração, horticultura e plantações diversas, recuperação da mata natural e áreas coletivas, que podem serem utilizadas de forma coletiva para lazer e vida comum. Esta maneira forneceu uma maneira prática de nunca esgotar o solo, além de incentivar a pesquisa de novos materiais e formas de construir que não seja tão agressiva.