Lapsos de Tempo #4

Passagens

Era meados da tarde. O sol vinha na diagonal, forte e intenso. Estou entre automóveis, seguindo a linha tracejada branca que separa as pistas. Tenho olhar atento para setas piscadas e movimentos bruscos. Qualquer coisa pode significar minha queda. Tenho receio de ultrapassar, mas me sinto seguro para acelerar quando vejo os olhos do motorista pelo retrovisor. Ele me observa por tempo curto, segundos que me indicam a segurança da ultrapassagem. Ele me vê, desloca um pouco para a direita deixando vão aberto. Não sei se ele está preocupado comigo em cima da bicicleta e o estrago que eu poderia sofrer em um possível choque, ou com a possibilidade da lataria do veículo dele ser arranhada com meu contato. Eu passo, seguro e confiante, acelero a rotação porque vem uma reta plana. Não há semáforos, mas ainda assim o trânsito de veículos automotores segue em ritmo lento. Atrás de mim uma moto se aproxima. Não há como sair da frente, não há por onde escapar. Eu acelero mais ainda a rotação, pois vejo um vão livre por onde a passagem flui. Conto com minha destreza em costurar para compreender quais os lugares onde posso passar sem maiores problemas. Retrovisores pareados, fluindo a um ritmo lento me trazem tensões, mas ainda consigo passar apertado entre automóveis. A moto fica para trás. Vejo um longo corredor aberto, livre de obstáculos. Foco no ponto de fuga que surge na linha do horizonte, olhar concentrado para a utopia. O vento bate forte na minha cara, secam meus olhos ao mesmo tempo que deixa escapar uma lágrima involuntária. Eu entrefecho as pálpebras para melhorar a visão. Um caminhão ocupa mais espaço de pista que o automóvel a seu lado. Aproveito a brecha deixada por um automóvel, olho para trás, rápido e discreto, e consigo quebrar uma diagonal para mudar de corredor. O carro se assustou e hesitou em frear, mas eu já havia passado. O coração batia forte, a adrenalina estava alta. A respiração começa a falhar pelo esforço, pelo calor e pela poluição. Opto por dar respiradas mais longas, puxando pelo nariz e soltando pela boca. Tarefa difícil de se fazer quando se já está cansado e ofegante. Mas ainda tem muito trajeto pela frente. Neste corredor os automóveis são mais impacientes, mudam de faixa como se fosse adiantar alguma coisa. Não consigo manter velocidade constante. Freio, acelero, freio, acelero, acelero mais, dou a volta. Alguns carros não conseguem mudar de faixa por completo e a parte traseira come parte do corredor. Eu desvio e sigo com rotação intensa. A faixa branca tracejada atropela tampas de bueiro. Me desagrada muito o relevo dos bueiros no meio da pista, instabiliza a bicicleta, fico inseguro. Quero retornar para o outro corredor, mas não encontro espaços para fazer a manobra. Além do que, várias motos já fizeram um grande corredor na pista de lá, com suas buzinas irritantes e escapamentos barulhentos. Decido seguir por cima dos bueiros, pelo menos eles estão com tampa. Mais adiante, vejo um semáforo fechado. Começo a observar se existe algum sinal de que ele irá abrir e eu não precise frear. Estou atento à qualquer mudança de padrão da ordem contextual vigente. Na rua transversal os carros começam a ir mais devagar, o semáforo de pedestres começa a piscar no vermelho, escuto alguns câmbios se encaixando com uma embreagem mal pisada. Escuto controles de embreagem desnecessários em uma reta plana. Aos sinais eu acelero mais ainda a rotação. Confiro se não há pedestres retardatários e me concentro nos próximos movimentos. Quero cruzar todas as pistas, passando pela frente de todos os automóveis que ainda não arrancaram, e acessar a rua transversal. Minha velocidade me permite, minha disposição me encoraja. Eu me arrisco e vou, livre e confiante. Acesso à rua, e um novo corredor se inicia. As pequenas vitórias duram pouco tempo para serem contadas em seus mínimos detalhes.
***
Era fim de tarde, início da noite. Quase naquele momento que gostamos chamar de “luscofusca“. Nem tão claro a ponto de conseguirmos enxergar tudo, nem tão escuro a ponto da luz artificial fazer alguma diferença na luminosidade. Eu andava tranquilo por um viaduto, levemente inclinado para cima. Várias pessoas passavam por mim, todas desconhecidas. Ninguém me cumprimentou, não cumprimentei ninguém. Mal nos olhávamos nos olhos. Ninguém me observou, eu não observei ninguém. Eu olhava para o que seriam meus próximos passos. Olhava os automóveis trafegando em câmera lenta, ora engarrafados. Via os edifícios que se aproximavam a cada passo. Olhava toda a matéria morta que se encontrava ao meu redor. Seguia meus passos sem olhar as pessoas. A gente fica duro quando caminha pela cidade grande…

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Double-X 200 BW

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Ruim demais pra ser mentira #2

Fantasma

Quando eu era pequeno costumávamos ir em família para um sítio que meu avô tinha aqui na região metropolitana. Eu achava super distante, e era um lugar que não havia muita estrutura. Dois clubes, uma lagoa, casas de fim de semana, bares e pequenos comércios. Boa parte da minha família paterna se encontrava aos finais de semana neste sítio, e era sempre muito legal aquela renca de tios/as e primos/as brincando, correndo pra lá e pra cá e praticando diversas atividades. Entre futebóis, piscinas, pedalinhos, buracos e churrascos, eu gostava mesmo é quando saímos em bando para caminhar pela região.
Algum tio animado sempre nos guiava e éramos várias crianças correndo e inventando brincadeiras pelo caminho de rochas gnaisses encrustadas em gramíneas por onde passavam os automóveis, carroças e bicicletas.
Um local na região que gostávamos de ir caminhando nesta época era um hotel que foi abandonado durante sua construção. No meio do nada as estruturas foram erguidas, vários andares, amplos espaços. Quando íamos, só haviam as colunas que formavam o esqueleto da edificação, bem como seus respectivos pisos e tetos. Tudo muito deteriorado, sujo e entulhado. Nós subíamos e descíamos, brincando de qualquer coisa que achássemos esperando-nos no chão. Meus tios falavam, na época, que as pessoas começaram a furtar as paredes do hotel abandonado para construírem suas casas, enquanto apontavam para moradias precárias que eram avistadas na paisagem. Eu imaginava pessoas, literalmente, levando paredes de tijolos montadas até o local onde seria suas residências.
Me lembro bem de um dia que estávamos eu, minha irmã, meus dois primos e meu tio (pai destes primos) caminhando em direção ao hotel. Subimos as ruas que levavam ao fundo de um dos clubes da região, adentramos em um caminho de mato, e lá vimos a majestosa estrutura abandonada.
Logo, eu e meus primos decidimos apostar corrida para ver quem chegava lá em cima primeiro. Largamos a uma velocidade absurda e deixamos para trás meu tio e minha irmã. Nós três acessamos o que poderia ser um saguão, passamos pelo vão que seria de um elevador, chegamos à rampa externa que fazia uma curva em espiral e findava no segundo andar. Subimos correndo, agitados. No segundo andar, avistamos a escadaria e a subimos correndo, demonstrando a incrível habilidade de subir pulando um degrau para ir mais rápido.
Nós três estávamos exaustos, cansados e suados quando chegamos ao último andar, um zuando a cara do outro pela velocidade, pelos tropicões e pelo jeito desengonçado de correr. Quando nos demos conta, percebemos que meu tio e minha irmã já se encontravam naquele andar. Nós nos entreolhamos e fomos perguntar como que eles haviam chegado antes da gente, já que fomos correndo e havíamos deixado eles para trás.
Meu tio virou para a gente e disse:
– Um fantasma trouxe a gente!
***
Na minha cabeça eu associei a figura do fantasma à imagem do Caronte, barqueiro de Hades, presente no filme Fúria de Titãs de 1981. Neste filme, Perseu é levado ao mundo dos mortos pelo Caronte, aquela figura esquelética silenciosa, que coleta suas moedas para transportar pessoas por essas águas neblinadas. Essa é a figura que eu pensava que meu tio e minha irmã haviam topado no trajeto. Inclusive, cheguei a cogitar um elevador fantasma imaginário que subiu pelo vão antes da gente.
A memória desse filme não é a toa. No sítio havia uma VHS desse filme e nós sempre assistíamos quando estávamos lá. Eu adorava. O imaginário e simbolismos das cenas do filme seguem gravados nesta caixa que chamamos de cérebro.
***
Esse mito ficou martelando na minha cabeça por anos. Eu nunca entendi como eles subiram o hotel abandonado antes de três crianças com muita energia pra gastar. Afinal, eu havia crescido e, finalmente, compreendido que mitologia grega tem esse nome por uma razão bem óbvia. No mais puro espírito investigativo, há pouco decidi questionar minha irmã e meu tio sobre esse fato. Me perguntava se eles lembrariam deste episódio, e, se lembram, como foi que aconteceu.
Ao serem questionados em uma reunião de família, minha irmã disse:
– Não me lembro, mas pode ser que tenha acontecido.
Meu tio disse:
– Foi o fantasma que subiu a gente.


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Lapsos de Tempo #3

Para cima ou para baixo

– Papai, porque as casas ficam umas em cima das outras?
– Como assim filho?
– Eu olho pela janela, e vejo esse amontoado de casas, uma em cima das outras. Porque elas são assim? Porque os prédios são tão altos?
– Filho, os seres humanos possuem duas formas de interagir com o mundo. Elas são interligadas, uma só existe por causa da outra. Uma tem a ver com a destruição, outra com a construção.
– Não entendi…
– Calma que irei te explicar.

– Já fazem muitos e muitos anos que as pessoas decidiram que gostariam de viver umas perto das outras em espaços de terra que chamaram cidades. Nós hoje vivemos em uma cidade considerada grande. Porém, a cidade não pode existir sem que tenha alguma estrutura que a construa, que abrigue as pessoas, que possa funcionar de alguma maneira. Portanto, dois fenômenos não naturais são muito praticados, e de uma maneira que é bem forte se pararmos para pensar sobre isso.
O primeiro deles diz respeito à construção. As cidades ocupam pequenos pedaços de terra que precisam abrigar um número enorme de pessoas. Portanto, essas pessoas decidiram que queriam subir cada vez mais alto, para caber mais e mais pessoas. Os prédios possuem cada vez mais andares, alcançando alturas inimagináveis. As casas começaram a subir os morros, a ter mais andares pra comportar mais famílias, e ninguém considera o impacto dessa concentração populacional em lugares que já não suportam mais pessoas. As bordas dos rios, córregos e ribeirões já estão tomados por concreto e suas águas já são puro dejetos.
Tudo isso também vem acompanhado de uma produção de bens móveis que são consumidos e descartados aos montes. São coisas essenciais e não-essenciais que fazem parte da vida citadina, mantém o comércio aquecido e a economia girando, geram prazer, deleite, ajudam no social e no profissional. Tudo isto que consumimos hoje são essas coisas que logo serão descartadas. Inclusive alimentos, roupas e itens de higiene pessoal.
O segundo fenômeno é o da destruição. Tudo isso que precisa ser construído sai de algum lugar. Os seres humanos decidiram que era uma ótima ideia criarmos crateras gigantes, de onde pudéssemos extrair de forma predatória todos os recursos do planeta terra, para construirmos mais e mais abrigos, mais e mais itens de consumo essenciais e não-essenciais para a vida no espaço urbano. Acabamos dependendo de tudo isso, da destruição do solo, das matas, dos rios, dos recursos terrenos que são nossa sobrevivência.

– Mas, papai, se precisamos disso para construir abrigos e alimentos, é porque é necessário, não?
– Filho, aqui nós precisamos pensar de uma maneira mais profunda. Nós estamos destruindo o solo e a superfície, esgotando todos nossos recursos para chegar cada vez mais alto com nossos estilos de vida.
Pensa em uma analogia que pode ser interessante: Enquanto construímos nossas casas e abrigos cada vez mais perto do céu, nos aproximamos do inferno a cada vez que destruímos a terra para explorar de maneira predatória seus recursos. O meio termo seria um estilo de vida mais equilibrado, que não fosse tão predatório e que não precisasse amontoar tanta gente num mesmo espaço de terra.
É impensável o que nos aguarda no futuro se mantivermos esse ritmo de construção e de destruição. Lembra daquele cientista que disse que nada se cria, tudo se transforma? E se tudo que passa por uma transformação fosse caminhar para algo pior? Embora hoje tenhamos algumas facilidades, ainda não se justifica o caos do porvir.

– Não sei se entendi bem, papai…
– Quer que eu tente explicar de outra forma?
– Não, você fala muita coisa que não dá pra entender. Melhor deixar pra lá…

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Fomapan BW 100

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Lapsos de Tempo #2

Portuñol avançado

– Olá, bom dia! São ameixas?
– Hola mijita, como vá? Son ciruelas, te salen diez Reales la bolsita.
– Mas isso não parece seriguela, parece mais ameixa…
– Pues son ciruelas… Si quieres, las puede elegirlas tu.
– Obrigada… Posso escolher qualquer uma?
– Si, pero estas de la derecha las tengo que botar…
– Botar na sacola?
– No, las tengo que botar, tirar!
– Botar na sacola e tirar da banquinha?
– No, no, no! Ya están malas. No sirven. Hay que desecharlas. No van para la bolsita!
– Hummm… Entendi… Dez Reais, né?
– Diez por la bolsita llena.
– É isso mesmo! Vou pegar o dinheiro!!
Que se sinta segura, pues te cuida el oso!
– Que osso?
El osito, te mira y te guarda.
– Mas onde que tem osso aqui? É tipo um osso da sorte?
No sé si de suerte, pero es una buen línea pa’ que el cliente se sinta seguro!
– E onde que eu acho esse osso?
Te mira desde el vidrio. Le regale una buen sonrisa!
– Óh!! Hahahaha, não tinha percebido.
– A toda la gente él sabe como sacar una sonrisa.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Samsumg 200 color, vencido.

Eu sei o que estou fazendo, Roberto!

– Você está mexendo no lugar errado, Silvano! Essa mangueira liga diretamente no motor!
– Mas eu lembro de como tava antes! O motor pifou, eu vim aqui pra abrir o capô e eu vi essa mangueira soltar!
– Mas eu tô te dizendo que ela liga diretamente no motor. Não faz sentido ligar no reservatório de líquido arrefecedor!
– Não tem líquido arrefecedor aqui, esse motor tem radiador, ele usa água!
– Água? Não tem dessa não! Nenhum carro produzido depois dos anos 60 usa água. Água só se for pra limpar o pára-brisa!
– Deixe eu fazer o trem aqui Sô, cê fica aí dando pitaco errado. Eu sei como estava antes, isso já aconteceu outras vezes.
– Não Silvano, cê tá tentando enfiar uma mangueira onde não tem lugar pra enfiar, deixa de ser ignorante!
– Se bem que o problema parece estar na válvula esquerda, olha como ela está diferente das outras!
– Com certeza não é esse o problema, cê fica testando coisas que não tem a ver nada com nada, e não consegue enxergar o problema principal!
– Bixo, eu consegui arrumar das outras vezes numa boa! Só porque você tá aqui que esse trem num arruma.
– Agora a culpa é minha?
– Sempre foi. Tô te falando que já rolou isso antes e eu consegui arrumar…
– Arrumou tão bem arrumado que deu problema de novo na mesma coisa. Para de fazer gambiarra, Sô!
– Eu sei o que tô fazendo, Roberto! Faria mais rápido se você num tivesse aqui me enchendo!
– O sinal já abriu e fechou 20 vezes e você continua aí achando que sabe de alguma coisa.
– Aqui cê dêxa! Puta merda, eu mereço…

La Idea, 2023. Canon BF-800, Fomapan BW 100

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Ruim demais pra ser mentira #1

Censura

Quando eu era pequeno, gostava de escutar o disco dos Mamonas Assassinas. Na época era a melhor coisa que podíamos escutar. Me lembro bem de me fantasiar com peças de roupas aleatórias, adereços incomuns e fingir que eu cantava as músicas enquanto corria pela pequena sala, do pequeno apê em que morávamos. Ia da cozinha para os quartos, pulava de cabeça no sofá, rolava no chão. Eu sabia todas as letras de cor e salteadas, e esse momento sempre era o ápice de minha apresentação para um público insano, enlouquecido, fanático, porém imaginário.
Mas uma coisa que eu sempre quis saber é o que significavam as letras das músicas. Eu perguntava para adultos o que significava, e ninguém me explicava. Eu cantava em voz alta com uma alegria imensa, versos que continham analogias que eu não fazia ideia, e na minha cabeça tudo soava bem literal.
Eu tenho um tio que exerceu um papel importante na minha vida de descobertas. Ele me explicava o que significavam as palavras que eu dizia, seja em xingamentos, seja cantando. Uma vez eu disse que ia “arregaçar” alguém na rua. Ele me disse que “arregaçar” significava “dobrar”, e que eu não tinha condições de dobrar ninguém, afinal eu era apenas uma criança, por isso deveria parar de falar isso. Desde então, eu apenas arregaço as mangas, mas não arregaço pessoas, pois não tenho capacidade de dobrá-las.
Certa vez estávamos reunidos em família e começamos a cantar Mamonas Assassinas na sala. Aquela meninada toda berrando os versos “Roda roda vira, solta a roda e vem, me passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém…”. Curiosamente, meu tio começava a falar um som de “pi” horrível, estridente, enquanto cantávamos algumas partes da música: “Roda roda vira, solta a roda e vem, me passaram a mão na PIIII, e ainda não PIIII ninguém…”. De acordo com ele, essas palavras não poderiam ser ditas por crianças. Nós, como crianças responsáveis, passamos a cantar tudo com “pi” estridente, até que os adultos nos proibiram de cantar essa música, pois seus ouvidos já não aguentavam mais esse som horrível proferido pelas crianças.
Eu, como uma criança que investigava o fato, fui atrás do porque das palavras não poderem ser ditas por crianças. A palavra “COMI” eu até entendia a proibição, pois crianças ainda não conseguiam comer outras pessoas, faltavam alguns anos para que virássemos canibais. Logo, se não podemos comer outras pessoas, não podemos falar que comíamos. Mas eu até hoje nunca entendi o porque de não poder falar bunda.
Meu tio nunca explicou.


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Lapsos de tempo #1

Um lado que vem e outro que vai

Me detive sobre uma passarela e observei a paisagem que margeava a ponte suspensa. De um lado vinha o ribeirão, rasgando o concreto, com força, com fluxo. Vinha de edifícios carregados, densos. O ribeirão abria passagem em meio ao caos, sua existência nunca pôde ser ignorada. Chegava a mim de forma abrupta, porém silenciosa. Do outro lado, o ribeirão vai se distanciando, sereno. Seu caminho já está traçado, aberto em uma paisagem tranquila. O horizonte está logo ali, apenas esperando sua passagem.
Onde estou? Exatamente no momento da mudança de humor do ribeirão. Onde a cidade, talvez, começa respirar.

La Idea, 2023. Olympus Pen-EE, Doble-X BW 200, vencido.

Caramelitos

“Qué pasó con esa gente? Me han dicho que este haberia de ser un buen punto pa’ ganar platitas. Estoy todo el dia parado aqui, y todavia no vendí lo que necesito pa’ pagar las cuentas. Ahí viene un auto, voy a ver que sale!”

– Oye Señor, buendía! Te puedo ofrecerle caramelitos para tus ninõs, pa’ que regale a alguien que te gusta? Hay muchos sabores, hay de chocolates, de frutas, hay de eses que dejan la lengua azul, todos muy ricos!! Te gustaria? Con solamente dos reales te puedes llevar una bolsita con 5 caramelos! Que crees?”

“Hijo de la chingada, putamadre. Manejas un auto importado y ni siquiera bajó el vidrio para escucharme! No aguanto más esa gente! Piensan que los pobres no son problemas de ellos. Voy por el otro!”

– Buendía papito, como vamos hoy? Todo al cien? Hay caramelitos que saben bien a toda familia, vamos por una bolsita ahora? Hay de muchos sabores…

“Qué coño!! Viste como me ignoras? Puro mamón! Con el semáforo verde solo puedo aguardar el próximo puto que se detiene ahí en la calle. Voy mirar al inicio de la calle, pues de ahí viene mi próximo cliente.”

La Idea 2023. Canon BF-800, Fomapan BW100.

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Fragmentos #3

Leia os capítulos anteriores na seção Fragmentos do Menu

Capítulo 3

A semana passou voando. Muitas reflexões de como conseguir ministrar uma oficina nestas condições e pensando em como minimizar os efeitos dos conflitos que poderiam ser gerados ali. Fiquei pensando que seria interessante se os jovens pudessem continuar o desenho que começaram na última oficina, dando um acabamento ao desenho que talvez pudesse conferir à atividade um sentimento de que o processo funciona e que é importante, e o acabamento é o último que fazemos. É o ponto final que damos à imagem depois de esboçar todas as partes necessárias. 
Pareceu-me uma ótima ideia, ao mesmo tempo em que uma insegurança voltou a tomar conta de mim. E se houvesse jovens que não estavam ali no dia da última oficina? E se os jovens que não se interessaram pela oficina seguissem apáticos sentados à mesa, completamente desinteressados? E se os jovens da última semana fossem escalados para a atividade externa e eu tivesse que lidar com jovens ainda desconhecidos por mim?
Tive que me sentar novamente e repensar todas essas possibilidades. Se fossem jovens novos eu ministraria a mesma atividade da semana passada. Se fossem os mesmos, eu falaria para eles darem acabamento ao desenho que iniciaram na última semana. Se fossem jovens mistos, eu mesclaria as atividades. Sim, agora estava mais seguro. Mas e aqueles jovens que fizeram desenhos que foram considerados apologias? Eles deveriam começar outros desenhos? E os que escreveram ao invés de desenhar, como proceder com estes? Por mais que eu planejasse cada passo dentro da Casa, na hora da oficina provavelmente eu teria que lidar com várias questões espontâneas. Precisaria lidar com várias angústias ao retornar pra casa também. Tudo que acontece nesse espaço-tempo chamado trabalho, reflete no meu descanso, nas minhas horas vagas. Estamos sempre trabalhando a cabeça, maquinando formas de fazer diferente, de melhorar, de desenvolver algo mais interessante.
Depois do almoço, pego minha mochila, subo na bicicleta rumo à Zona Norte. A sensação de distância durante o trajeto já começa a parecer mais curta. Aprendo novas rotas e ruas para cortar caminhos. Mas quando chega na lagoa não tem jeito. Talvez seja a parte mais longa e plana do trajeto, de onde não há escapatórias ou atalhos. Ali é um misto de brisa úmida com sol a pino. Ingresso no bairro por uma avenida larga, com ciclofaixa no canteiro central. Me mantenho na avenida por um tempo tão curto que não vale a pena o risco de atravessar a via para alcançar a ciclofaixa. Desço rápido pela direita, satisfeito com o espaço da pista ocupado por mim. Morros vêm e vão, e chega a descida íngreme antes do ribeirão. Desacelero e vou com cuidado já sabendo dos riscos iminentes. Mais uma subida e chego à Casa.
Novamente aperto a campainha, um funcionário pega meus documentos e me deixa na rua esperando por alguns minutos. Isso me irrita um pouco, não era minha primeira vez ali. Após um tempo eu entro, cumprimento todos que estão presentes na sala principal trabalhando e vou direto pra sala ao fundo. A Terapeuta vem conversar comigo. Ela diz que hoje tem menos jovens. Houveram algumas situações na Casa no decorrer da última semana, e que hoje a oficina seria para apenas cinco jovens. Houve evasão de vários deles, que saíram para suas atividades rotineiras, como trabalho e escola, e não retornaram. Os juízes responsáveis emitiram mandados para buscar esses jovens, mas ainda não sabem seus paradeiros. 
Eu separo material suficiente para cinco jovens, praticamente os mesmos utilizados na semana passada, mas adiciono materiais como caneta esferográfica, hidrográfica e marcador permanente. Agora iremos trabalhar com contraste, com acabamento também. Separo vários papéis virgens e também os desenhos inacabados da semana passada. Pode ser que tenham jovens ali que queiram finalizar seus desenhos. O Agente não me aguarda descer para fazer a contagem e conferência do material. Ele sobe até a sala onde eu estava com os materiais. Enquanto ele conta e anota, me faz várias perguntas pessoais, onde moro, de onde sou, porque venho de bicicleta? Eu respondo, não tenho nenhuma questão com isso. Ele afirmou que eu era louco de pedalar isso tudo. Ele me disse que morava mais perto que eu e fazia questão de vir de carro. Eu disse que não tinha carro, e nem fazia questão de ter. 
Desci portando o material. Um outro Agente abriu o portão que dá acesso ao pátio para mim. Os jovens estavam dispersos, e o local não estava preparado para receber a oficina. Dois jovens vieram me perguntar o que eu fazia ali. Eu não os reconheci, devem ser novatos ali na Casa. Eu disse que dava oficinas de artes visuais e solicitei que me auxiliassem na organização do espaço para receber a oficina. Pegamos a mesa grande, a colocamos em uma parte coberta, e dispusemos os bancos ao redor. Chamei o restante dos jovens para nos acompanhar à mesa na oficina, e os três se sentaram conosco. Eu também não os reconheci, tampouco eles me reconheceram. Eram cinco jovens que eu desconhecia, e que não haviam produzido nada comigo na semana passada. Tive que me apresentar de novo. 
Novamente um Agente seleciona o material que eu coloco na mesa, levando para sua sala o apontador e afirmando que os jovens precisam solicitar à ele para apontar os lápis. Eu dou as instruções de como seria a oficina, e começo a esboçar formas básicas com a finalidade de construir a imagem aos poucos, planejando os tamanhos e as posições de cada elemento. Os cinco jovens parecem mais interessados que os da semana passada, e observam atentos às explicações e aos esboços que faço no papel. Eles também arriscam, criando suas composições, encaixando cada elemento onde devem ficar. Um deles me diz que vai fazer uma rosa dentro de um rolo de dinheiro. Ele diz que já foi grafiteiro, e que usava essa técnica de esboço para pintar nos muros do beco onde ele ralava. Na hora eu fico em dúvidas se um maço de dinheiro configura algum tipo de apologia. Nunca se sabe qual interpretação a Instituição terá de determinada imagem. Eu ignoro essa dúvida e digo para ele seguir desenvolvendo seu projeto.
Os outros quatro jovens têm mais dificuldades em desenvolver seus desenhos. Fico imaginando se isso é falta de referências visuais, de prática de observação ou de má compreensão da atividade. Tento iniciar algumas conversas que podem auxiliar no desenvolvimento do desenho e faço perguntas do tipo “Imagina algum objeto que vocês gostem, como ele é?” ou “essa paisagem que você está desenhando é real ou imaginária?”. Minha intenção é tentar com que busquem diferentes referências, em diferentes espaços da memória. O jovem já iniciado no graffiti também tenta ajudar. Ele esboça alguns objetos que ele se lembra e diz para outros jovens copiarem e complementarem em seus desenhos.
Os jovens estão bem tranquilos, me dizem que a Casa está bem tranquila esses dias, e que eles ainda estão lá para cumprir os primeiros 45 dias de reclusão. Um deles diz que vai voltar a estudar para sair da vida do crime, que nada daquilo compensa. Ele fala sobre sua mãe enquanto tenta desenhar uma máquina de costura. A mãe dele sempre costurou e ele diz que ela fazia colchas com os retalhos que ele buscava atrás das confecções do Centro quando era criança. Hoje ele diz ser uma decepção na família.
O jovem iniciado no graffiti fala que não se arrepende de nada. Faria tudo de novo. Os outros três jovens apenas observam o diálogo. Não falam nada, mas escutam atentos às palavras proferidas naquela mesa. Eu não pergunto muito, prefiro não invadir o espaço deles, e eu até prefiro não saber sobre seus crimes. Eu entendo que isso não irá interferir na oficina em si, mas nós vivemos em sociedade e aprendemos a conviver julgando outras pessoas, mesmo que pelas costas. Isso iria acabar me trazendo alguns conflitos também, e eu preferia ter uma relação mais profissional ali.
A Pedagoga desceu neste momento para verificar o andamento da oficina. Ela chamou dois dos jovens para conversar em particular. Eles subiram com ela, restando apenas três jovens no pátio participando da oficina. Depois de esboçar os desenhos, iniciamos o processo de acabamento, reforçando as linhas e zonas de contraste com marcadores permanentes. Eu ensino a técnica de hachura, fazendo traços paralelos e/ou cruzados para demarcar zonas de sombra e de penumbra. Os jovens tentam reproduzir a hachura em seus desenhos. Alguns com sucesso, outros com mais dificuldades.
O tempo de oficina termina e eu peço para que assinem seus desenhos. Os três jovens se despedem de mim e retornam aos alojamentos. O Agente me ajuda a recolher o material que estava na mesa, e aproveita para fazer a conferência também. O Agente abre o portão e me autoriza subir. Recolho todos os materiais e fico pensando que nenhum dos jovens perguntou se podia ficar com seus desenhos. Talvez eles não tenham gostado da atividade. Subo as escadas e vou em direção à sala dos fundos para guardar os materiais e preencher o Livro de Relatório. A sala está ocupada pela Pedagoga com os outros dois jovens. 
Dirijo-me à sala principal e fico aguardando a liberação da sala. O Advogado me cumprimenta e pergunta como foi a oficina. Eu digo que foi boa, mais tranquila, mais fácil de trabalhar assim. Além do mais, os jovens presentes pareceram mais interessados nas atividades. Ele me disse que cada dia ali iria ser diferente, que eu poderia me preparar para isso. Em cada dia seriam diferentes jovens, diferentes dinâmicas, e que tudo que acontecia ali não poderia me afetar tanto, que deveria se restringir àquele espaço. Eu disse que isso seria complicado, pois o planejamento de uma oficina começa muito antes da minha presença na Casa. É impossível chegar para trabalhar sem um planejamento, sem um programa, sem ter nada definido. 
Essa fala do Advogado me incomodou um pouco. Fiquei pensando nessas hierarquias laborais, em como ele deveria receber um salário muito maior que o meu, e que o tempo de pensar o trabalho dele era restrito àquele espaço. Em compensação, eu recebia R$120 a cada ida à Casa, mas haviam várias horas de planejamento de oficinas não remuneradas, e que eram impossíveis de serem desconsideradas ou ignoradas enquanto eu não estivesse trabalhando na Casa.
Fiquei um tempo olhando para o Advogado, sem saber muito bem o que responder naquele momento. Fiquei sem saber se era um momento de desconforto ou constrangimento de minha parte, pois visivelmente fiquei incomodado com essa situação. 
A Pedagoga liberou a sala, saiu com os dois jovens que se despediram de mim ao me cruzar no corredor, e eu pude guardar os materiais. No relatório eu não registrei nada demais. Como não havia ninguém vigiando a oficina, eu simplesmente escrevi o nome dos jovens, e que eles participaram como desejado das atividades propostas. Essa talvez seja a parte mais chata deste trabalho. É como se fosse elogiar por mérito burocrático, sem compreender minimamente a diferença que aquela atividade possa exercer na vida daqueles jovens. Eu fiquei desejando, por um momento, que fossem representados qualquer coisa que poderia ser considerada apologia. Gostaria de enxergá-los pela ousadia representada através de imagens, criar diálogos a partir de seus desenhos. Talvez assim conseguiríamos compreendê-los.
Olhei para os papéis: Uma rosa dentro de um rolo de dinheiro, uma máquina de costura, nuvens flutuando com um sol triste, um pergaminho inacabado, um campo de futebol inacabado. Tudo para se manter dentro das regras da Instituição. 
Guardo os desenhos na pasta e vou embora. Durante o trajeto fico pensando na funcionalidade daquela Casa, para que ela serve? Jovens precisam ir ali cumprir penas alternativas. São todos menores de idade? Que diferença aquela Casa de passagem irá representar no futuro desses jovens? Porque uma oficina de artes visuais existe em um espaço onde tudo é enclausurado, limitado, excluído, reprimido? Tudo o que estudamos sobre a expressão, a comunicação e a criação de sentidos que a arte proporciona não funciona naquele lugar. A arte deveria se adaptar ao meio. E como fazer tudo isso dar certo, ser interessante? Como fazer com que essa passagem pela Casa seja proveitosa para esses jovens?
Foram tantas reflexões que eu nem percebi o tempo passar. Chego em casa sem ter sentido o caminho. Foi um daqueles dias que tudo pareceu tão automático que nem me senti cansado ao pedalar. Repouso no sofá pensando o que fazer em uma semana, em como mudar essa situação. Minha mirada está perdida em algum lugar da parede. Eu adormeço sem perceber.

Fragmentos #2

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Capítulo 2

Foi em uma terça-feira que combinamos o primeiro dia de oficina. Eu já havia ido à sede para assinar o contrato com a empresa responsável pela gestão da Casa e já estava liberado para iniciar os trabalhos. Passaram-se duas semanas desde a oficina de teste. Era um misto de expectativa com ansiedade, mas não pelo trabalho que eu iria fazer, e sim pela forma como eu me apresentaria para aqueles jovens.
Nunca me entendi como uma autoridade, e ser colocado neste papel me incomoda bastante. A autoridade nunca funcionou comigo durante o meu desenvolvimento e, pelo contrário, o medo e a punição que existe nesta forma de relação me traziam muito mais ódio e rancor que vontade de fazer algo. O conceito de autoridade parece que se mistura com o de ser autoritário, e sempre se torna uma relação violenta de poder, nunca de respeito.
Com tudo isso em mente eu entrei em contato com a Terapeuta Ocupacional para marcarmos o primeiro dia de oficina. Agendamos para a terça-feira seguinte, pois daria tempo de planejar as atividades e me organizar com os horários. A oficina deveria iniciar às 14 horas, um horário não muito bom para mim. Considerando que a distância entre minha residência e o local de trabalho era grande, e eu iria de bike, precisaria pedalar bastante debaixo do sol, logo após o almoço. Mas não havia outro horário disponível e ficou decidido que às 14h das terças eu deveria ministrar as oficinas.
No dia combinado eu antecipei o almoço e saí de casa logo após comer. Minha ideia era chegar cedo e ver os materiais que estavam disponíveis para trabalhar. A Terapeuta havia dito que lá haviam vários materiais de outras oficinas e de outros oficineiros e que eu poderia utilizar em minhas oficinas. Eu precisava verificar o que teria disponível para saber com o que poderia trabalhar. Minha ideia inicial era começar com as formas básicas, quadrados, linhas, círculos, triângulos, trapézios, e moldar a imagem a partir destas referências.
É uma técnica interessante, pois simplificamos as imagens complexas em formas simples, e daí conseguimos compreender as proporções de cada objeto, ou de cada parte do objeto. É como se conseguíssemos sintetizar uma imagem ao máximo, quase um abstracionismo, para logo depois reconstruir a imagem.
Minha ideia era utilizar os próprios elementos clássicos das tatuagens para construir essa imagem, pois percebi que a tatuagem é um elemento em comum entre eles. Portanto eu imaginei que crânios, rosas e adagas seriam elementos presentes. Treinei um pouco a desconstrução destas imagens, pensando nas formas básicas que poderiam dar origem ao desenho final. Na minha cabeça e nos meus planos estava tudo certo.
O trajeto foi tranquilo, não estava muito quente, mas o almoço já estava pesando. Fico pensando que seria interessante comer menos no almoço, e levar uma refeição complementar para comer quando chegar à Casa. Acho que assim pesaria menos. Durante o trajeto fiquei observando o que estava em meu caminho, no asfalto. Desde pequeno eu caminho olhando para o chão, buscando moedas perdidas. Hoje eu pedalo tentando compreender as coisas que estão no meu caminho e que podem me oferecer risco. Pregos, arames, cacos de vidro, tachinhas, pedras, buracos, poças de óleo automotivo. Nunca achei dinheiro pedalando, mas já achei vários animais mortos. Já vi pombos, ratos, gatos e cachorros. Uma vez eu vi um gambá. Outro dia vi um morcego. 
É impressionante a quantidade de coisas que se fazem presentes nas vias, enquanto os automóveis passam dominantes ofuscando qualquer outra presença naquele espaço. Parece que nada mais importa para os motoristas. As vias não são locais onde poderiam haver reflexões interessantes. É só um caminho, e pronto.
Cheguei na Casa com um pouco de cansaço, mas sem maiores problemas no trajeto. Toquei a campainha e aguardei alguns minutos até ser atendido. Novamente quem abriu a porta foi um funcionário que solicitou meus documentos e me deixou esperando lá fora mais alguns minutos. Após ter a entrada permitida, a Terapeuta me recebeu e me apresentou ao restante da equipe técnica que se encontrava no local. Um Advogado, duas Pedagogas, uma Psicóloga, e mais duas funcionárias que eu não me lembro qual função exerciam. Após breves saudações, a Terapeuta me levou ao quarto de materiais, aquele com a mesa redonda, estantes e uma janela grande que dava para o pátio.
Ela me mostrou que haviam muitos materiais ali que poderiam ser utilizados e abriu várias gavetas de uma estante de madeira. Ali haviam vários papéis de diferentes qualidades, um rolo enorme de papel kraft mais espesso, vários potes de tinta guache escolar, um estojo com vários lápis de grafite, um estojo com vários lápis de cor, um estojo de canetinhas hidrográficas com pontas finas e grossas, uma sacola plástica com vários pincéis dentro, borrachas, apontadores, estiletes e 3 latas de spray para uso genérico.
A Terapeuta me disse que eu poderia fazer uma lista de materiais para as oficinas, que ela faria um orçamento em vários locais para solicitar a compra, mas que poderia demorar. Eu disse que dava para trabalhar com o que tinha ali, mas que seria bom ter mais materiais disponíveis no futuro.
Ali na sala eu separei o estojo de lápis e de borracha, uma resma com vários papéis e já me preparava para descer, quando um Agente me abordou dizendo que não era para descer com todo esse material, que era para ser apenas um lápis e uma folha para cada jovem, dois apontadores e duas borrachas. Nada mais que isso. Ele me disse que haviam 15 jovens no pátio e que o material deveria ser a conta. Ele me disse que era uma medida para não haver furtos de materiais e nem brigas. Eu retornei para a sala e separei exatamente o material que ele me disse, além de um lápis e um papel para mim. O Agente conta tudo e anota em um bloquinho de papel. Ele abre o portão e eu desço para o pátio onde alguns jovens me aguardavam na mesa grande, outros estavam em seus leitos e havia um que ainda almoçava. Apenas três dos jovens que estavam ali participaram da primeira oficina há duas semanas atrás.
Eu me apresentei novamente, disse quais atividades faríamos e comecei a distribuir os materiais. Um Agente recolheu os apontadores e me disse que os jovens deveriam ir até a sala dele para apontar seus lápis. Ele me disse que as lâminas dos apontadores poderiam ser armas em caso de conflitos.
Enquanto iniciava algumas explicações sobre as formas básicas e como poderíamos utilizar isso na nossa composição, um dos jovens se lembrou de mim, me chamou de Boy de novo. Ele olhou a minha tatuagem no braço, uma coruja cega pousada em cima de um crânio, e disse que seria legal aprender a desenhar caveiras, para ele virar tatuador. Percebi que muitos dos jovens não estavam compreendendo o exercício, fiquei pensando se a minha explicação foi confusa. Pedi para que prestassem atenção ao meu papel, pois iria demonstrar na prática como poderíamos trabalhar, e que o esboço do papel poderia se tornar um passo a passo para pintar murais nas ruas. Comecei fazendo círculos para demarcar algumas áreas e aos poucos meu desenho de linhas básicas foi se transformando em um crânio. Usei o comentário do jovem para exemplificar a minha ideia de exercício. Disse que a construção do desenho deveria ser uma prática constante, e que nós ficávamos cada vez melhor a cada desenho que fazíamos.
Neste momento a Terapeuta desceu para acompanhar a oficina. Dois jovens começaram a indagar a ela quando poderiam utilizar o telefone. Outros jovens diziam que não queriam fazer a oficina e que preferiam descansar no leito. Ela falou com eles que a participação na oficina é obrigatória, que eles não tinham escolhas.
Um dos jovens começou a escrever letras de rap e funk no papel, outro começou a desenhar uma pomba, três jovens apenas observavam tudo, e alguns se mostraram interessados nas minhas explicações. Estes mais atentos fizeram desenhos muito similares aos meus, como se eu estivesse ensinando um passo a passo de como fazer um crânio. Eu dizia que eles deveriam tentar fazer seus próprios desenhos também, de algo que eles gostem ou se interessem, que não era interessante apenas a cópia.
Um jovem falou que seu desenho estava horrível, amassou o papel e jogou na lixeira. Ele solicitou outro papel e eu disse que não havia, era apenas um papel para cada. Eu dei meu pedaço de papel para ele e disse para ele usar a borracha quando precisasse desmanchar.
Haviam apenas duas borrachas para aproximadamente 15 jovens, em uma mesa retangular extensa isso foi um grande problema. Eles passaram a querer desmanchar tudo o tempo todo. Começaram a jogar borrachas de um lado para o outro. Um dos jovens viu que a borracha estava disputada e segurou uma borracha em sua mão enquanto desenhava. Outros jovens começaram a discutir sobre uma borracha lançada que atingiu o braço de um deles. Os ânimos esquentaram e os jovens passaram a se ofender. Eu disse que haviam duas borrachas e que elas poderiam ficar sempre na mesa, mas que o erro não era uma coisa ruim e que poderia ser usado a nosso favor enquanto desenvolvíamos nossos desenhos. Nós aprendemos com o erro e o utilizamos como comparação para chegar mais próximo ao acerto, ou ao objetivo que almejamos.
Não sei se os jovens compreenderam muito bem essa ideia, mas seguiram com seus desenhos de uma maneira mais calma. Logo após a retomada da atividade, percebi que havia fila na sala do Agente para poder apontar o lápis. Um jovem estava apontando seu lápis e a ponta quebrava dentro do apontador. Com isso, os jovens que estavam aguardando começaram a reclamar que ele estava fazendo hora pra não participar da oficina. O Agente tinha liberado apenas um apontador, e isso gerou um conflito pela utilização da ferramenta. 
O jovem que desenhava pombos fez uma marca de dois tiros no peito da ave e disse que a pomba branca tem dois tiros no peito, fazendo alusão à música do Facção Central. O jovem que escrevia letras desistiu de escrever e passou a apenas conversar com os outros jovens. O que ainda almoçava se integrou ao grupo e reclamou que não havia material para ele. Como ele trabalhava no período da manhã, ele almoçou apenas mais tarde e não foi contabilizado pelo funcionário que fez a contagem dos materiais para mim.
Os jovens me perguntam o que significam as minhas tatuagens e eu pergunto o que significam as deles. Eles não me respondem e eu não respondo à eles. Eu disse que tatuagens não precisam de ter significados e um deles diz que toda tatuagem tem significados. Na Quebrada tudo tem um significado.
A oficina começa a chegar em seus minutos finais e os jovens começam a me devolver seus desenhos e os materiais. Dois jovens queriam ficar com seus desenhos e a Terapeuta disse que não poderiam. Eles apontaram o desejo de terminar o desenho na próxima oficina e eu disse que os traria para eles terminarem. Todos precisam assinar o seu desenho, independente do que fizeram. O Agente contou o material devolvido e me autorizou a subir. 
A Terapeuta começa a folhear os desenhos na sala de materiais e vai me dizendo tudo que é considerado apologias para o Sistema. Talvez seja melhor evitar a temática do crânio, pois isso teria a ver com a morte e que poderia gerar um simbolismo diferente para aqueles jovens. A letra de rap e funk que um dos jovens escreveu estava repleta de ofensas que poderiam ser apologias. A pomba branca com dois tiros no peito era uma apologia direta e objetiva. 
Eu deveria fazer um relatório no Livro de Registros assinalando todos esses fatos, inclusive os conflitos no pátio, os nomes de quem estava presente, quem se destacou e quem deveria ser punido. Eu guardo todo o material na estante, e na hora de preencher eu me recuso a identificar os jovens desta forma. Folheio os papéis, escrevo o nome daqueles que estavam mais interessados e digo que a oficina ocorreu sem maiores problemas. Guardo os papéis com os desenhos em uma pasta destinada para isso na estante.
Na saída eu falo com a Terapeuta que essa tática de limitar a quantidade de materiais poderia gerar mais conflitos, além de barrar o fluxo da atividade e fazer com que o trabalho não renda tanto quanto o esperado. Ela me disse que era algo com que eu deveria lidar melhor, porque os materiais ali sempre seriam limitados. Perguntei também sobre a questão dos jovens que não queriam participar, se eles poderiam fazer outras atividades, e ela me disse que eles não tinham escolhas. Todas as atividades eram obrigatórias, e nos primeiros 45 dias de cada jovem, eles eram obrigados a se manterem reclusos e participativos. Esses 45 dias iniciais serviriam como um período de avaliação e que seriam enviados ao Juiz. Era um período determinante para a pena, para saber se poderia ser mais branda ou mais restritiva e punitiva.
Apesar de saber do período de 45 dias, optei por não alterar o meu relatório. Eu não sabia há quanto tempo cada um daqueles jovens estava ali. Nem me interessava saber por quais crimes eles foram enquadrados. Me dava uma pena o fato de eles serem obrigados a fazer algo que não queriam, e depender disso para saber sobre o futuro naquela Instituição ou no Sistema Penal.
Me despedi dos demais funcionários e saí da Casa. Enquanto pedalava pensava sobre o caos que foi a oficina, como ela não rendeu de acordo com o esperado. Me deu uma agonia saber que os jovens não poderiam ficar com seus desenhos após a oficina, e que não havia a possibilidade deles trabalharem nas práticas artísticas quando eu não estivesse ali. De que então adianta eu falar sobre praticar, sobre o exercício diário de se propor ao treino, ao desenvolvimento de um desenho, de uma ideia, de uma observação, se até disso eles seriam privados?
Acho que a sensação de frustração me distraiu em meu trajeto e quando eu pensava nessas questões, um carro me fechou para virar a próxima esquina. Não me atropelou por pouco. Um xingamento saiu de minha boca, com um ódio que veio do fundo do pulmão, sendo expelido da maneira mais agressiva possível.
O motorista parou o automóvel e disse que ele estava atrás de mim e tinha buzinado avisando que iria passar. Eu disse que se ele iria virar a rua, poderia ter esperado que eu passasse em segurança. Ele argumentou que tinha buzinado antes de fazer isso. Eu disse que a buzina dele não me faria desaparecer da frente do carro e que ele deveria ter esperado para não colocar minha vida em risco. Ele proferiu alguns xingamentos e arrancou o carro. 
Eu nunca vou entender um automóvel que está atrás de um ciclista e buzina. Eu não sei o que esta buzina significa. Buzinas talvez sejam a forma de comunicação menos efetiva que existe. Ela pode significar várias coisas, mas pode também significar nada. 
Nesse caso, eu estava tão distraído com minhas frustrações que eu nem tinha escutado a buzina. De qualquer forma, um som proferido do volante do carro não me diz nada, não me salva, não me alerta. O sujeito escolheu me ultrapassar e virar a esquina a apenas alguns centímetros da minha bicicleta. Ele escolheu colocar minha vida em risco a troco de alguns segundos.
Esse desrespeito me frustra mais ainda. Chego em casa, cansado e com a cabeça quente. O dia foi cheio e eu precisava repensar a oficina durante a semana. Agora com noção de várias limitações em relação ao material disponível e já entendendo um pouco o comportamento daqueles jovens. A próxima oficina teria que ser mais proveitosa que essa. Não poderia repetir isso de novo.

Fragmentos #1

INTRODUÇÃO

48 minutos de bicicleta. Esse é o tempo que gastei da minha residência, zona noroeste, para uma entrevista de trabalho, na zona norte. No caminho presenciei um acidente. Um carro entra na contramão e acerta em cheio um motoqueiro que fazia a conversão olhando apenas para o lado em que os carros deveriam vir. É um choque absurdo ver tudo acontecendo. Apesar da rapidez do som do impacto, tudo pareceu em câmera lenta. O motoqueiro é lançado para o alto e cai em cima do capô do carro. A moto é arremessada até o portão fechado da loja da esquina. Várias pessoas correm para ajudar ou para saber o que tinha sido o estrondo. Eu fiquei lá um pouco, mas não podia perder a entrevista.
O dia estava quente, com uma massa de ar seco pairando na paisagem. Comecei a pedalar por volta das 12:30h, pra dar tempo de chegar na entrevista que seria às 14h e retomar o fôlego, secar o suor. Péssimo horário para pedalar.
Cheguei no local, ainda cansado e suado, toquei o interfone e um funcionário me atendeu. Disse que tinha vindo para uma entrevista de oficinas, ele pediu meus documentos e me deixou aguardando ali na rua por uns 12 minutos. Pareceu uma eternidade. Ele me disse para entrar e esperar em uma sala de reuniões onde havia apenas uma mesa e 4 cadeiras em volta. Em seguida entraram duas mulheres para conversar comigo sobre o trabalho. Uma que estava lá somente para anotar e fazer a ata, e outra, terapeuta ocupacional, guiaria a entrevista.
Elas me explicaram que no local funciona uma Casa de Semiliberdade, ligada ao Sistema Socioeducativo. Ali, jovens cumprem penas alternativas e precisam participar de atividades ligadas à cultura e à educação durante a estadia. Minha tarefa seria a de fornecer semanalmente oficinas de artes visuais, mais ligadas ao graffiti, durante 90 minutos. A remuneração era de R$80 por hora de trabalho, ou R$120 por oficina.
Me interessei pela conversa e elas me proporcionaram um tour pelo local. Era uma casa de dois andares, sendo que o de cima, no nível da rua, era a parte de escritório, reuniões e trabalho dos técnicos, e a de baixo, no subsolo, era composto pelos alojamentos e por um pátio grande onde aconteciam as diferentes atividades. Combinamos uma data, daqui dois dias, para uma oficina experimental com a finalidade de avaliação das minhas práticas de oficineiro.
Depois de acertados todos os detalhes burocráticos, peguei minha bicicleta para ir embora. A volta seria mais intensa. O sol já não estava mais tão forte, mas a quantidade de subidas seria maior. 1h12 para chegar em casa. Apesar de mais longo, o tempo passou rápido. Na minha cabeça maquinaram novas ideias do que eu poderia trabalhar naquele local, já planejava uma oficina experimental que pudesse atender à expectativa de jovens naquela situação, ainda com toda preocupação em ser bem avaliado pela Instituição que planejava me contratar.
Já em casa, espalhava as notícias aos meus familiares de que as coisas estavam melhorando. Seria meu terceiro trabalho como oficineiro de forma simultânea, e cada um deles teria sua parcela de contribuição para minha renda mensal.
Essa noite eu dormi bem.

CAPÍTULO 1

Passaram-se dois dias desde então. Hoje poderia ser uma data daquelas em que se comemora algo especial. Uma nova experiência se inicia, e com isso novas ideias, novos contatos e novas possibilidades.
No decorrer destes dias, conversando com a Terapeuta Ocupacional, criei um plano de oficina utilizando os materiais que eles disponibilizavam. Eram exercícios simples para eu poder, talvez, conhecer um pouco mais esses jovens. A ideia era usar apenas lápis e papel. Minha intenção era que os jovens se desenhassem no centro e, a partir disso, iniciassem uma série de ligações com coisas que os rodeiam. Poderia ser qualquer coisa: locais, eventos, objetos, situações, memórias…
Me organizei um pouco melhor com os horários, pois já tinha noção do tempo que levava para chegar ao local. Não levei nenhum material específico, pois sabia que não os usaria nessa oficina. O dia estava quente, mas não tão insuportável quanto no dia da entrevista. A ida, repleta de descidas, fornecia uma brisa que aliviava a sensação térmica, seguida por um trecho plano mais fresco que contorna a lagoa rumo à Zona Norte. Enquanto pedalo evito ao máximo trafegar na contramão dos carros, e ciclovia é uma coisa que me dá ojeriza, mas tem vez que não tem jeito. Para evitar um trecho com trânsito mais complexo, ou cortar caminhos, se faz necessário a contramão ou a ciclovia. Muitas vezes a calçada ajuda, mas não gosto da ideia de colocar a integridade física de pedestres em risco.
Quase chegando à Casa existe uma descida em direção a um ribeirão antes do acesso ao bairro de destino. Descida íngreme, repleta de areia que alguma obra ou caminhão derramou na via. Meu pneu traseiro, próprio para uso em asfalto, não dá conta de frear e eu derrapo durante a descida. Não caio no ribeirão por pouco. Um susto apenas. Acho que todas as pessoas que pedalam passam por sustos no decorrer de seus trajetos. Ainda que não tenha acontecido nada demais, o nervosismo sobe com o susto, e vem o receio de sofrer um acidente mais grave.
Chego na Casa ainda com os batimentos um pouco acelerados. Cheguei cedo, com um bom tempo para tomar um gole de água, retomar fôlego e diminuir a umidade na roupa causada pelo suor. A Terapeuta Ocupacional vem me receber, e ela me mostra a sala de materiais enquanto conversamos sobre os jovens. A sala de materiais tem uma janela grande com vista para o pátio de atividades. Lá de baixo os jovens me observam quando me aproximo da abertura. Um frio na barriga toma conta daquela situação e talvez meu nervosismo e ansiedade fiquem bem aparentes. Primeiro dia em uma experiência nova é sempre assim. Você sabe que é capaz, já fez isso várias vezes, está cansado de saber como funciona, mas a ansiedade é inevitável.
Na sala de materiais fico sabendo onde ficam guardados papéis, lápis, tintas guaches, borrachas, apontadores, trabalhos anteriores… Também tem uma mesa redonda com 4 cadeiras dessas que são conjugadas com um apoio lateral, típico de salas de aula, mas que não se encaixam para serem utilizadas com a mesa grande. Também tem uma estante com livros diversos. Muitos livros de projetos de rap que deram certo, livros didáticos escolares, alguma literatura mais complexa, e muitas bíblias. Realmente a quantidade de bíblias me chamou a atenção, porque se destacam muito. Em uma estante de cinco prateleiras, uma delas era só de bíblias, duas de livros diversos, uma de papéis, uma de equipamentos velhos que estavam largados ali, como um projetor quebrado e uma televisão de tubo 14 polegadas.
A Terapeuta me informou que a minha oficina sempre será dividida com outra atividade. A minha será interna e a outra externa. Ela argumentou que fazem dessa forma para alternar as atividades, e os jovens com melhor comportamento na Instituição podem escolher o que querem fazer naquele dia. Essa estratégia também se fazia necessária para diminuir o grupo com que cada oficineiro trabalharia, facilitando a dinâmica das atividades.
A Terapeuta me informou que a minha oficina sempre será dividida com outra atividade. A minha será interna e a outra externa. Ela argumentou que fazem dessa forma para alternar as atividades, e os jovens com melhor comportamento na Instituição podem escolher o que querem fazer naquele dia. Essa estratégia também se fazia necessária para diminuir o grupo com que cada oficineiro trabalharia, facilitando a dinâmica das atividades.
Saímos da sala e fomos descer a escada que ficava no corredor da Casa. Antes de acessar o pátio um funcionário me parou, contou todo o material que eu carregava, recontou e anotou. Na volta, a conta teria que ser igual. A Terapeuta me disse que isso era uma medida para evitar furtos e impedir que qualquer material possa ser usado em caso de conflitos.
Chegando no pátio, já haviam cerca de 15 jovens sentados em uma mesa retangular me aguardando. A Terapeuta me apresentou, logo em seguida eu me apresentei. Disse que estava ali para dar oficinas de artes visuais, para praticar um pouco a memória e o desenho e, a partir disso, ir desenvolvendo outras técnicas. A maioria dos jovens tinham tatuagens aparentes nas mãos e antebraços, alguns possuíam tatuagens nos rostos e pescoços. Enquanto eu olhava as tatuagens deles, eles olhavam as minhas. Essa foi a primeira interação onde aconteceu uma identificação entre pares. Era perceptível que naquele espaço havia uma riqueza histórica e cultural enorme, uma diversidade de experiências que me levaram a escrever os fragmentos que narro aqui.
Coloco os materiais na mesa, digo a minha proposta e iniciamos os trabalhos. Não posso me alongar muito, pois 90 minutos de oficina passam bem rápido. Os jovens desenham de acordo com o que falo. Alguns com mais vontade, outros com menos. O vento fica tentando levar as folhas embora, e nota-se o esforço dos jovens para manter os papéis na mesa. Eu olho para o que estão fazendo: uma figura humana no centro, objetos diversos ao seu redor. Vejo armas, números, animais, bolas de futebol, letras de músicas, padarias… Fico feliz em saber que boa parte está interessada na tarefa.
Os jovens fazem muitas perguntas sobre mim: De onde sou? Com que trabalho? Quanto ganho? O que significam minhas tatuagens? Respondo apenas algumas perguntas, pois não tenho intimidade com eles para dizer algo além do profissional, mas acho que o local de origem é importante para criar diálogos. Eu digo e eles me chamam de Boy, porque o bairro onde moro é classe média.
Durante a oficina, a Terapeuta me observa e conversa com os jovens. Uma outra técnica fica mais distante apenas analisando. Há 5 funcionários disciplinadores responsáveis pelos jovens no pátio e nos alojamentos. Os jovens chamam os funcionários disciplinadores de “Agentes”. Ao que parece, toda a interação humana naquele local ocorre sem problemas, pelo menos foi assim à primeira vista.
O tempo de oficina termina e a maioria dos jovens não concluiu seu  desenho. Alguns simplesmente largam o material ali de qualquer jeito. Já outros querem continuar e terminar o que começaram. Os materiais são recolhidos e contados para conferência. A Terapeuta me chama para subir e eu despeço dos poucos que ali ainda estavam, buscando alguma interação comigo, falando algo sobre o desenho ou sobre minhas tatuagens.
Subimos de volta para a sala de materiais e, enquanto eu guardava os materiais utilizados, a Terapeuta me dizia que o Sistema possui algumas regras e deveres, tanto para os oficineiros quanto para os jovens. Lá no pátio os jovens não poderiam se envolver em conflitos, deveriam manter a organização do espaço. Eram obrigados a participar das atividades e não poderiam fazer apologias ao crime. Ao final da minha oficina eu deveria fazer um relatório escrevendo sobre como cada jovem se portou, o que fizeram, quem se destacou ou quem fez apologias. Essa questão da apologia me deixou com uma série de perguntas sobre o tema. A Terapeuta me respondeu que fazer apologia seria falar sobre o crime que cometeram ou sobre o artigo no qual foram enquadrados, falar sobre drogas, facções, escrever siglas, desenhar ou fazer referência a armas, gesticular siglas com as mãos ou apontar gestos para outro jovem, falar sobre morte ou assassinatos, e mais uma série de fatos e situações genéricas.
Ela me disse que os desenhos que eles fizeram na minha oficina estavam repletos destes elementos, e que seria meu dever reprimir no ato e colocar no relatório final para esses jovens receberem as devidas sanções e punições. Eu fico em silêncio, apenas pensando nisso. Ela disse que vai redigir o contrato e que eu terei que ir na sede do Programa para firmar e poder começar a trabalhar.
Vou embora de lá pensando em várias questões. Enquanto pedalo, tenho minhas reflexões sobre como é aleatório o julgamento do que seria apologia. Vários dos exemplos que a Terapeuta me deu, a meu ver, dizem respeito às próprias experiências de vida daqueles jovens, seus contextos, suas atividades. Muitos viveram isso em toda sua trajetória. Isso ficou bem claro para mim, sobretudo quando olhava para seus desenhos. Para mim a arte deveria ser livre, serviria para iniciar diálogos, dotar de sentido as ações e relações, ajudar na cognição e em vários tipos de interações. Os desenhos daqueles jovens poderiam dizer muito mais sobre eles do que qualquer conversa, onde filtramos algumas coisas objetivas que não queremos expressar.
Apesar de um primeiro contato parcialmente frustrante, retorno pra casa pensando em como melhorar a dinâmica destas oficinas, o que poderia fazer para contornar essas situações burocráticas institucionais.
Para os próximos passos eu deveria apenas aguardar, pois teria que assinar contrato e alinhar meus horários com a equipe técnica para as oficinas semanais naquela unidade.
Eram tempos de planejamento.