Lapsos de Tempo #4

Passagens

Era meados da tarde. O sol vinha na diagonal, forte e intenso. Estou entre automóveis, seguindo a linha tracejada branca que separa as pistas. Tenho olhar atento para setas piscadas e movimentos bruscos. Qualquer coisa pode significar minha queda. Tenho receio de ultrapassar, mas me sinto seguro para acelerar quando vejo os olhos do motorista pelo retrovisor. Ele me observa por tempo curto, segundos que me indicam a segurança da ultrapassagem. Ele me vê, desloca um pouco para a direita deixando vão aberto. Não sei se ele está preocupado comigo em cima da bicicleta e o estrago que eu poderia sofrer em um possível choque, ou com a possibilidade da lataria do veículo dele ser arranhada com meu contato. Eu passo, seguro e confiante, acelero a rotação porque vem uma reta plana. Não há semáforos, mas ainda assim o trânsito de veículos automotores segue em ritmo lento. Atrás de mim uma moto se aproxima. Não há como sair da frente, não há por onde escapar. Eu acelero mais ainda a rotação, pois vejo um vão livre por onde a passagem flui. Conto com minha destreza em costurar para compreender quais os lugares onde posso passar sem maiores problemas. Retrovisores pareados, fluindo a um ritmo lento me trazem tensões, mas ainda consigo passar apertado entre automóveis. A moto fica para trás. Vejo um longo corredor aberto, livre de obstáculos. Foco no ponto de fuga que surge na linha do horizonte, olhar concentrado para a utopia. O vento bate forte na minha cara, secam meus olhos ao mesmo tempo que deixa escapar uma lágrima involuntária. Eu entrefecho as pálpebras para melhorar a visão. Um caminhão ocupa mais espaço de pista que o automóvel a seu lado. Aproveito a brecha deixada por um automóvel, olho para trás, rápido e discreto, e consigo quebrar uma diagonal para mudar de corredor. O carro se assustou e hesitou em frear, mas eu já havia passado. O coração batia forte, a adrenalina estava alta. A respiração começa a falhar pelo esforço, pelo calor e pela poluição. Opto por dar respiradas mais longas, puxando pelo nariz e soltando pela boca. Tarefa difícil de se fazer quando se já está cansado e ofegante. Mas ainda tem muito trajeto pela frente. Neste corredor os automóveis são mais impacientes, mudam de faixa como se fosse adiantar alguma coisa. Não consigo manter velocidade constante. Freio, acelero, freio, acelero, acelero mais, dou a volta. Alguns carros não conseguem mudar de faixa por completo e a parte traseira come parte do corredor. Eu desvio e sigo com rotação intensa. A faixa branca tracejada atropela tampas de bueiro. Me desagrada muito o relevo dos bueiros no meio da pista, instabiliza a bicicleta, fico inseguro. Quero retornar para o outro corredor, mas não encontro espaços para fazer a manobra. Além do que, várias motos já fizeram um grande corredor na pista de lá, com suas buzinas irritantes e escapamentos barulhentos. Decido seguir por cima dos bueiros, pelo menos eles estão com tampa. Mais adiante, vejo um semáforo fechado. Começo a observar se existe algum sinal de que ele irá abrir e eu não precise frear. Estou atento à qualquer mudança de padrão da ordem contextual vigente. Na rua transversal os carros começam a ir mais devagar, o semáforo de pedestres começa a piscar no vermelho, escuto alguns câmbios se encaixando com uma embreagem mal pisada. Escuto controles de embreagem desnecessários em uma reta plana. Aos sinais eu acelero mais ainda a rotação. Confiro se não há pedestres retardatários e me concentro nos próximos movimentos. Quero cruzar todas as pistas, passando pela frente de todos os automóveis que ainda não arrancaram, e acessar a rua transversal. Minha velocidade me permite, minha disposição me encoraja. Eu me arrisco e vou, livre e confiante. Acesso à rua, e um novo corredor se inicia. As pequenas vitórias duram pouco tempo para serem contadas em seus mínimos detalhes.
***
Era fim de tarde, início da noite. Quase naquele momento que gostamos chamar de “luscofusca“. Nem tão claro a ponto de conseguirmos enxergar tudo, nem tão escuro a ponto da luz artificial fazer alguma diferença na luminosidade. Eu andava tranquilo por um viaduto, levemente inclinado para cima. Várias pessoas passavam por mim, todas desconhecidas. Ninguém me cumprimentou, não cumprimentei ninguém. Mal nos olhávamos nos olhos. Ninguém me observou, eu não observei ninguém. Eu olhava para o que seriam meus próximos passos. Olhava os automóveis trafegando em câmera lenta, ora engarrafados. Via os edifícios que se aproximavam a cada passo. Olhava toda a matéria morta que se encontrava ao meu redor. Seguia meus passos sem olhar as pessoas. A gente fica duro quando caminha pela cidade grande…

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Double-X 200 BW

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