Vendo algumas imagens de 2011, me deparei com as fotos que tiramos nas aulas de Artes Plásticas lá na Escola Guignard. Na aula de criatividade da professora Júlia Panadés experimentamos muitas coisas baseadas nos registros de Saul Steinberg. Eram época divertidas, aprendi e desaprendi muito sobre arte e desenho. Me deu saudades dessa época. Seguem registros da sala de aula.
As fotografias e os trabalhos foram feitos por váries alunes, colegas de estudo e hoje colegas de profissão, de atuação, de lamentos, rs. Saudades dessa época.
Se existe algo que eu defendo enfaticamente no mundo da arte, é que não existe uma fórmula secreta para ensinar arte. Não estou falando de teoria, estou falando de prática. Por mais que existam fundamentos técnicos que ajudam, e muito, na hora de desenhar (como perspectiva, luz e sombra, proporção, textura, etc), nada vai te fazer evoluir tanto quanto o poder da observação e da experiência.
Por favor, não quero que com esse post passemos a hierarquizar os estilos de desenhos, ou a dizer se são infantis ou profissionais, não vem ao caso. Eu sou a favor de que todos sabem desenhar, mas falta experiência e observação para que possamos mudar nosso modo de desenhar. Já escutei muitos adultos dizendo que não sabem desenhar, e quando tentam colocar alguma coisa no papel, apenas conseguem rabiscar aqueles desenhos bem infantilizados, de coisas que fizemos na pré-escola e que, sinceramente, não lembro de termos visto com nossos próprios olhos: uma casa com uma chaminé, uma macieira, um barco a vela…
Nosso primeiro instinto é desenhar essas coisas, porque é o que ficou registrado em nossa memória, e quando falamos em desenhar, resgatamos essas memórias de desenhos que fazíamos quando éramos crianças. Com o passar do tempo, essas experiências de desenho são, cada vez mais, colocadas de lado para a maioria dos jovens, pois na escola e na vida, outras áreas de conhecimento são colocadas como prioridades.
Destaco aqui o fator memória, pois é aqui que aprendemos realmente a desenhar. Todo desenho que fazemos depende da memória, do quanto registramos a imagem do objeto em nosso cérebro. Eu olho para uma árvore, por exemplo, e vejo características bem diferentes em relação ao desenho de uma macieira que eu aprendi a fazer quando criança. O formato da árvore é diferente, o tronco é diferente, os galhos e as folhas também são diferentes. Eu nunca vi uma macieira, mas meu desenho de memória é uma macieira. Hoje, quando observo, eu observo outra árvore, uma jaboticabeira (é o exemplo mais próximo que eu tenho). A jaboticabeira tem o tronco estreito, alongado, com manchas. As frutas nascem por todo os galhos. As folhas não são tão abundantes, e não tem nada a ver com uma macieira, nem com o desenho que eu aprendi de uma macieira.
Se eu observo os detalhes de uma árvore qualquer, vejo que cada árvore possui suas próprias características, e essas observações ficam registradas na minha memória para que eu possa desenhar essas árvores em outro momento.
Assim funciona qualquer desenho. Quando eu faço um desenho de observação eu não desenho o que estou vendo, eu desenho o que ficou registrado na minha memória sobre o que eu vi. Eu olho para o objeto, registro na memória e tento reproduzir no papel. Todo desenho é um desenho a partir da memória.
Recentemente, fiz um experimento simples para poder exemplificar o que estou dizendo. Minha esposa diz não consegue desenhar e nunca usou uma mesa digitalizadora (dessas pra desenhar no computador), mas começou a fazer alguns desenhos no Photoshop. Ela fez um prato com bolinhos de falafels, e eu não consegui deduzir o que era (Imagem 1). Logo após, ela fez um sanduíche de falafel, supondo que eu acertaria o desenho, mas eu achei que fosse um rolinho primavera (Imagem 2).
Imagem 1
Imagem 2
Constantemente ela me dizia que não conseguia desenhar, que não possuía coordenação motora para a tarefa, e eu propus um exercício bem simples.
Busquei no Google uma imagem de um sanduíche de falafel, abri a imagem no Photoshop e pedi para ela desenhar por cima da fotografia (Imagens 3 e 4).
Imagem 3
Imagem 4
Logo depois, abri um arquivo em branco e pedi para ela desenhar um sanduíche de falafel só com as informações que ela possui na memória (Imagem 5).
Imagem 5
Nota-se que o último desenho do sanduíche de falafel possui uma riqueza de detalhes muito maior em relação ao primeiro sanduíche de falafel. Isto é explicado com o fato de que o último desenho foi feito com a memória do desenho feito por cima da fotografia, onde observou-se os detalhes do alimento, onde tem falafel, onde tem molho, onde tem folhas, onde está a massa enrolada. Quanto mais o objeto é observado e quanto mais uma pessoa tenta desenhar com as informações registradas na memória, mais parecido com a realidade o desenho ficará.
Imagem 2
Imagem 5
O ato de observar e contemplar um objeto ou uma cena está diretamente relacionado com o ato de desenhar. É na observação que registramos os detalhes em nossa memória, e é na contemplação que esse registro ganha significados. O poder da experiência consiste nessas práticas. Quanto mais você observar um objeto/imagem/cena, mais registros você terá em sua memória para depois poder reproduzir ou criar sem referências visuais dos objetos. Eu garanto que o sanduíche de falafel nunca mais será o mesmo depois desse experimento, e os próximos passos são compreender a parte técnica (textura, cores, luz e sombra, proporção, perspectiva, etc), mas aí já é outra história.
Desde 2009 que eu trabalho com oficinas de arte, mas o trabalho com crianças, jovens e adolescentes é mais recente. Esse tipo de trabalho tem me dado um pouco de ansiedade em seu formato, pois são muitas dúvidas que eu tenho sobre minha atuação, e sobre os jovens que estudam comigo em alguns projetos.
Eu me considero uma pessoa paciente com a maioria das coisas. Acho que muitos processos possuem tempo certo para acontecer, e que tentar acelerar só o transformará em algo ruim, ou não prazeroso. Ter que fazer algo por obrigação torna o processo difícil, e saber que tudo o que você faz será julgado por terceiros também dificulta o processo. Na maioria das coisas que eu faço, tento fazer com tempo e paciência, para conseguir um resultado satisfatório.
Se eu colocar na minha cabeça que eu quero pedalar durante 6 horas seguidas, ou conquistar algum desafio do Strava, por exemplo, eu me preparo para isso, e dedico algum tempo para lograr com meus objetivos. Nem sempre consigo. Há fatores que às vezes me impedem de conseguir pedalar o quanto almejo. Problemas mecânicos, clima, preparo físico, acidentes… Mas não é por falta de paciência, e se não consigo eu entendo que eu me esforcei.
Na arte a mesma coisa. Posso passar horas, dias, semanas e meses trabalhando em uma única coisa, praticando, treinando, buscando alternativas para fazer um único trabalho, tudo feito de forma paciente, pensada, buscando um resultado que seja satisfatório para mim. Às vezes me dá uma agonia precisar criar uma estampa, por exemplo, e saber que ela ficará pronta só depois de algum tempo.
Desenho de jovens
Prática de jovens para conhecer o material
Eu me dedico. Eu pratico, eu treino, e busco aprender o que eu ainda não domino (se é que as técnicas podem ser dominadas). Acho que aí se encontra minha maior dificuldade como professor, educador, oficineiro. Para a maioria dos meus alunos, em apenas uma tarde de aulas eles já deveriam aprender tudo que é possível dentro de um técnica, já sair desenhando e pintando super bem, caprichado. Não se importam com o processo, com o treino, com a prática, com os estudos. Tudo deveria ser imediato. Eu tento pedir paciência, conto histórias sobre o meu processo, começando quando eu era bem novo, copiando com papel carbono os personagens de Cavaleiros do Zodíaco que estavam impressos em revistinhas. Demorou muito tempo até que eu conseguisse desenhar sem copiar. Demorou mais tempo ainda até que eu entendesse que isso é uma coisa que gosto, e que eu gostaria de aprender e compartilhar o conhecimento adquirido. Eu já devia ter meus 23 anos quando decidi cursar artes, mesmo sem saber desenhar. Na Universidade me sentia meio reprimido por estar ao lado de pessoas super talentosas, e eu nem chegava perto de ter habilidades como as de meus colegas.
Desenhos livres
Desenhos livres
Desenhos livres
Eu gostava do processo de produzir, mas não gostava de planejar, nem de criar. Sempre achava que eu estava aquém de todo mundo. Mas o fato de começar a ensinar me deu outra visão sobre tudo isso. Aprendi na marra que o processo é lento, e que devemos ser pacientes. Nunca tive a oportunidade de fazer um curso de desenho antes, meu olho não era treinado para isso, e só depois dos 27 que eu passei a compreender isso melhor.
Desenhos orientados
Desenhos orientados
A prática, o treino, o estudo e, principalmente, a paciência faz com que a gente consiga chegar onde queremos. Isso eu entendo perfeitamente bem. Mas eu ainda questiono como fazer com que xs jovens entendam isso? Tudo tem que ser imediato, tem que ser preciso. Eu realmente não sei como trabalhar isso com elxs. Recentemente eu proibi xs jovens de uma oficina minha de usar borracha, pois eles desmanchavam tudo o tempo todo. Ensinei a fazer esboços, planejar o desenho, ir tratando, fazendo acabamento e arrumando aos poucos, até conseguir chegar no resultado final. Foi uma oficina interessante. Elxs estavam aflitos por não poderem usar borracha, estavam ansiosos por causa da imagem toda embolada e rabiscada. Mas ficaram surpresos com o resultado final, acabado, limpo. Quando fui perguntar à elxs se eles gostaram, se foi interessante ter paciência e construir o desenho aos poucos, elxs me disseram que se tivessem borracha eles teriam feito igual, e de forma mais rápida. Eu sei que elxs não fariam igual, mas elxs não sabem disso. Independente do resultado, o processo delxs é rápido, curto, e talvez essa velocidade em fazer e desmanchar seja mais importante que o resultado final.
Desenhando rostos
Pensei em fazer alguns trabalhos de desenho de forma mais livre e desapegada, mas eu ainda preciso encontrar uma maneira de fazê-los desapegar dessa coisa realista, desenho e borracha o tempo todo. Fico pensando em várias práticas que fizemos no ambiente Universitário de uma Escola de Artes, e fico pensando se daria certo. Afinal, em uma Escola de Artes, a maioria ali está disposto à esse tipo de experimentação, de reflexão e de discussão. Não sei se os jovens com quem eu trabalho teriam essa disposição de experimentar, de desapegar do desenho tradicional/clássico para surfar em outras ondas. Não sei se o espaço onde trabalhamos seria receptível à isso, pois na Universidade de Artes a maioria dos espaços são de experimentação e provocação. Dentro de uma comunidade, por exemplo, a moral e os costumes estão ligados à outros processos que não se abrem tanto para experimentações.
Ainda que a letra da música tenha pouco a ver com esse dilema onde me encontro, o título é bem propício: A Vida é desafio.