Lapsos de Tempo #5

Trajetos com pensamentos fluidos

Para dar movimento impulsiono com meu pé direito ao mesmo tempo em que salto passando a perna por cima do banco. A rotação do pedivela me permite fazer todo o movimento sem parar a aceleração. Com o pé esquerdo posicionado ajusto meus ísquios para ter maior apoio. Olho adiante e traço uma rota imaginária, meu pensamento como se fosse um drone transitando nas ruas e deixando um rastro de sua passagem. Tenho meu caminho planejado, só preciso transita-lo. Um quarteirão adiante está situado o local onde se produz minha pizza favorita. Lembro de uma massa fina, com molho de tomate, folhas, queijo vegetal, alguns legumes e palmito. Meu estômago ronca ao perceber a fragância suave do forno que está com a chama acesa. Passo direto e viro a primeira esquerda, no semáforo. É uma rua mais larga, mais movimentada, mais longa. Desço até o semáforo que está aberto, cruzo a avenida e sigo adiante. Nesta rua estudei por dois anos. Fiz algumas amizades, tive alguns amores, aprendi bastante nesta época. Tinha acabado de sair da adolescência, já era um adulto, mas ainda possuía a vitalidade juvenil de perambular por estes lados. Vejo o local onde estudei, abandonado, sujo, morada de ratos e entulhos. O que aconteceu para chegar à essa situação? Passo direto, vejo o restaurante que não me deixaram entrar para almoçar enquanto estudante na região. Afinal, “um punk vestido a caráter não pode frequentar um lugar como esse!”, é proibido. Melhor passar fome do que me misturar com essa gente de caráter duvidoso. O restaurante está razoavelmente cheio, alguns poucos lugares vazios, todas as pessoas desfilando seus melhores trajes empresariais e sorrisos falsos. Dou uma risada irônica ao pensar nisso tudo, e sigo rotacionando o eixo do pedal, que rotaciona o eixo central de bicicleta. O movimento é contínuo. Depois do próximo semáforo, cortaremos uma avenida larga, de oito pistas, mão e contramão. É uma avenida interessante, com coqueiros no canteiro central. Desvio de duas tampas de bueiro que indicam que embaixo do pavimento há córregos, presos e algemados na claustrofobia da tubulação canalizada. Sigo adiante na descida para a praça da Igreja. É uma descida relativamente íngreme, onde preciso ter cuidado para não ser atropelado. Na primeira esquina, um carro se detém ao ver o sinal de “PARE” bem em frente a um outro restaurante onde eu costumava almoçar. Era caro, mas pelo menos me deixavam entrar para comer. A comida era boa, com muitas opções para quem é ovolactovegetariano. Na esquina de baixo chego na praça arborizada, que a Igreja transformou em um grande estacionamento. Penso comigo mesmo que nem se pode mais chamar isso de “praça”. Sigo direto frustrado com a imagem do apocalipse motorizado em um local que poderia, muito bem, estar liberado para o ser humano. Viro à direita, acesso a pista exclusiva de ônibus, mas que não possui separação física em relação às outras pistas, e aumento a velocidade. Esta rua já possui um movimento de automóveis de forma mais intensa. Acesso o corredor que foi criado entre os veículos que aguardam a luz verde, e me detenho por sobre a faixa de pedestres. Olho para a Avenida, sinto um fluxo de brisa fresca misturada com o calor dos motores que roncam atrás de mim. Na luz que me permite seguir, arranco a bicicleta do chão e tento forçar uma velocidade maior. Tenho sempre receio de que algum veículo mais veloz passará por cima de mim nessas arrancadas. Sigo para a região onde se situam vários hospitais e clínicas, logo após a Avenida principal da cidade. Vejo o Pronto Socorro e surge uma memória ruim de um atropelamento que sofri alguns anos atrás. O motorista ignorou minha presença e me acertou de lado. Parei no pronto socorro com fraturas no joelho e no calcanhar, 6 meses de molho, fazendo fisioterapia para conseguir voltar com as atividades rotineiras. Ainda acho que tive sorte de não ter sofrido algo mais grave. Ao passar pela portaria do Hospital agradeço a qualquer força da natureza por não ter sofrido nada mais preocupante. Sigo adiante, vou cruzar o viaduto e já chego em casa. O viaduto possui uma subida leve, mas eu conheço alguns atalhos para cortar caminho e evitar o pequeno morro. Geralmente eu gosto de subir morros, sentir minhas panturrilhas trabalhando, mas hoje eu estou cansado. Só quero chegar em casa, tomar banho e descansar. São dois quarteirões planos por baixo do viaduto, uma leve subida à esquerda, dois quarteirões de leve subida à direita, mais três quadras de plano e já me encontro do lado de lá. É um trajeto onde passo contra a mão dos automóveis. Corro risco, mas é necessário para evitar a fadiga. Cruzo o viaduto fazendo um movimento perpendicular, aproveitando a detenção dos automóveis no semáforo do início do viaduto. Passo em frente um bar onde tem as melhores batatas fritas, aquelas de verdade, pedaços grandes, frescos e com casca. Apesar da água na boca que surge com a lembrança, prefiro seguir mais um quarteirão e já avistar minha humilde residência. Acelero para ultrapassar a linha de chegada imaginária e solto um suspiro aliviado por chegar em casa com vida. Cansado, exausto e endorfinado. Passo a perna por cima do banco fazendo um movimento de saída e salto da bicicleta de forma ágil. Apoio a bicicleta na parede enquanto abro o portão. Guardo a bicicleta com tranca, pois no bairro são vários os furtos e roubos deste tipo de veículo. Abro a casa, tomo um banho e me sento no sofá para relaxar. Não consigo parar de pensar que eu deveria ter comprado a pizza logo quando subi na bicicleta.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Fomapan BW 100

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um gravador, que faz gravuras; um bicicleteiro que anda de bicicleta; um rugbr que joga rugby.

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