Sempre conheça seus heróis

Ok, eu aceito, “heróis” foi um péssima palavra. Acho que o conceito de herói talvez seja algo ainda fora do que é palpável. No entanto, ignore este título, foi uma brincadeira com “never meet your heroes”, tão proferido em filmes, séries, livros, blogs, etc. A expressão sugere que frequentemente rolam decepções quando conhecemos de perto pessoas que admiramos, ou que foram/são importantes para nós de alguma forma. A gente idealiza algo que elas, definitivamente, podem não ser.
A ilusão de conhecer alguém de extrema importância nas nossas vidas pode acabar com a fantasia que temos sobre quem elas realmente são.

Em 2025 aconteceu algo que eu achei que talvez nunca aconteceria. Mas primeiro, preciso contar uma pequena historinha. Lá no início dos anos 2000, um jovem belorizontino, que devia ter seus 13 anos de idade, conheceu o punk, o hardcore, o anarquismo, tudo isso por causa de um vizinho. Esse vizinho morava com outros vizinhos no prédio ao lado. O primeiro vizinho emprestou um cd do Gritando HC, o outro vizinho andava de skate e o outro soltava papagaio com uma camisa do Sepultura. Isso tudo foi minha porta de entrada para drogas mais pesadas. Eu sempre fui muito ruim no skate, então não prossegui muito com a atividade. Sepultura eu segui curtindo, e até curti Soulfly por um tempo, mas depois ficou chato demais pra manter minha atenção. Mas Gritando HC, que hoje eu não consigo escutar, me abriu as portas para um universo de bandas que me empolgavam muito, me faziam querer viver a pleno.
Foi em um evento em 2002 que eu conheci Solstício, e outras bandas que eu escuto bastante até hoje. Das bandas deste evento, também escuto até hoje Confronto e Questions. Deceivers tinha um som que não me chamava muita atenção, talvez eu precise escutar novamente, e Calibre 12 já teve seu auge nos meus ouvidos, mas hoje praticamente não escuto. DFC segue na ativa também, ainda que eu não acompanhe muito, tive a oportunidade de conhecer o atual baterista na Feira Motim em Brasília que rolou em novembro deste ano. Pudemos conversar brevemente, ele comprou uma gravura minha, conversamos sobre shows, indiquei alguns coletivos que organizam eventos em BH, foi bem massa. Lembro especificamente de um show deles na saudosa Feira Mix, a última, que rolou no aeroporto Carlos Prates. Foi um showzaço.
Mas Solstício foi a banda que me ganhou naquele dia. Um rapcore, pesado, intrigante, lento quando precisa ser, rápido para animar os fôlegos. O jovem ‘La Idea‘ não fazia a mínima ideia de que essa seria uma de suas bandas nacionais favoritas. Um vocal inconfundível, uma voz proferindo letras que falavam de política, de genocídio indígena, de gênero, de história, de viver dentro do sistema capitalista, mesmo querendo estar à margem dele. Era insano.

Segui a banda por muito tempo, ainda que tenha frequentado poucas apresentações. Mas ficava de olhos nos lançamentos dos discos e sempre escutava cada música nova com muita atenção. Eu adorava as letras e a energia que o vocalista, Marcelo, berrava nas gravações. Nos anos de 2005, 2006, 2007, eu praticamente não tirava minha camisa do Solstício. Quer dizer, eu revezava bastante com a camisa do Carahter, presente que ganhei do Renatão, um dos vocalistas, antes da tour europeia. Carahter foi a banda local que eu mais curti na época. Também curtia Prole.Idem, Reffer, Distúrbio Sub-Humano… BH foi um celeiro de boas bandas.
Solstício teve vários hiatos, ia e voltava. Numa destas voltas gravaram um disco mais melódico, com letras mais profundas, inclusive. Apesar de diferente, segui curtindo bastante. Mais tarde, outras bandas como Norte Cartel e Las Calles apareciam na minha vida, com o mesmo vocal imprimindo a mesma energia nas músicas. A voz do Marcelo era inconfundível. Insana.

Por volta de 2002, 2003, haviam sites em que baixávamos músicas mp3 de bandas de punk e hardcore da época. Zona Punk, fffuck the system, e outros, eram plataformas de notícias sobre o underground. Haviam seções onde haviam links de músicas para baixarmos. Encontrávamos coisas que no Napster, imesh, kazaa, etc. não encontrávamos. Foi assim que conheci Colligere. Lá eu baixei “Consumir o tempo” e “Vertigem”. Foi amor à primeira vista. Eu escutava tanto, que eu cantarolava Colligere sempre que saía, e foi numa destas cantarolagens que eu conheci a Brisa. Nós cantávamos Consumir o Tempo a plenos pulmões nas madrugadas de BH. Ela seguiu carreira na música e tem um reconhecimento muito daora. Fico muito feliz por isto.

Colligere tem uma pegada mais emo, pesado e profundo, mas com uma energia insana. Você escuta e dá vontade de movimentar-se. Eu escutava e queria escutar mais, e aprender mais sobre mim. Eu, um jovem que foi mal alfabetizado, tinha dificuldades em entender muitas coisas e as letras do Colligere me faziam pensar bastante. Foi isso que me ajudou em vários momento difíceis, em ler as letras e reler nas entrelinhas delas. O mais impressionante é que eu lia livros, e encontrava trechos do livro e citações embutidas em várias letras. Isso me fez ter vontade de ler mais e mais, para entender do que aquelas letras falavam, quais eram as fontes daquelas palavras gritadas pelo vocalista Rodrigo.
Acho que Colligere foi a principal responsável para que eu possa tentar compreender quem eu sou no mundo, muito além da estética punk que utilizava. Escutar Solstício e Colligere me faziam querer viver, lutar, aprender, compartilhar, pensar, refletir. Questionar várias coisas que eu achava errado, e principalmente em como praticar o respeito, a coletividade, viver de forma plena e política.

Digo isto tudo porque 20 anos depois tive a oportunidade de conhecer ambos vocalistas.
Em março de 2025 eu fui participar de uma feira no Rio de Janeiro. Marcelo e eu tínhamos contato via Instagram e ele foi de Cabo Frio pro Rio para a feira. Lá trocamos ideia, materiais, tiramos fotos. Foi um encontro muito daora, pude falar sobre a importância que Solstício teve na minha juventude, conversamos sobre as letras, sobre arte. Ele me disse que não aguenta mais gritar, e tem um projeto novo, mais pós-punk, o Grita Nozkto. Encontro rápido, mas muito significativo para mim.
Em agosto de 2025, eu estava em uma tour de lançamento de livro com um amigo, e na nossa passagem por Curitiba, nos hospedamos na casa do Rodrigo. Sim, o tal Rodrigo vocalista do Colligere. Conversamos sobre o movimento, sobre política, perguntei várias coisas sobre as letras que foram escritas há mais de 20 anos, hahaha, pegando pesado na memória dele. As letras do Colligere me fizeram não surtar, pois era através delas que eu buscava sentido. Foi também por causa de Colligere que meu projeto de mestrado passou a existir. A música “O poder do pensamento negativo” me deu a faísca que precisava pra pensar o que eu queria pesquisar. Foi meu ponto de partida. Ele me deu dicas de músicas, de livros, me levou num lugar de rango vegano que foi muito daora.

Rodrigo e Marcelo foram pessoas importantes na minha formação. Talvez eles nunca soubessem disso, mas sou testemunha do que o punk, o hardcore, e as pessoas que praticam e pensam esse submundo podem acrescentar na formação das pessoas.
Nós trocamos os desejos por aceitação
Pessoas têm o seu papel – você aprende o seu
Te ensinam o destino, mas não de onde provém
Talvez isso explique a existência de heróis
Pessoas como nunca vamos ser – livres e fortes

Cito Colligere para terminar este relato, pois eles não foram heróis para mim. São pessoas comuns, vivendo suas vidas, com seus defeitos e qualidades, com seus humores, pensamentos, incoerências. Ao conhecê-los, senti que estão muito próximos à mim, às pessoas que estão ao meu redor. Talvez nunca sejamos livres e fortes, mas nunca iremos aceitar o papel que nos é dado. Não seguiremos apáticos. As artes (sim, todas elas) existem para que nós possamos produzir nosso próprio caminho. E a voz destas duas pessoas me ajudaram muito a construir o meu. Só tenho a agradecer por estas oportunidades.
Conheçam seus “heróis” e que vivam os encontros!!

Agenda de fim de ano

O fim de 2025 se aproxima, e com ela vem uma sensação de esperança de que 2026 tudo será diferente, melhor. Mas até que esse dia chegue, muitas águas irão correr por estes rios. Para o fim de ano, a agenda está cheia, intensa, corrida, muitas feiras para participar em distintos lugares e a expectativa é de que as contas sejam devidamente pagas com os ganhos nestes eventos.

Dias 29 e 30 de novembro estarei em Brasília, participando de uma EDIÇÕES MOTIM. O evento será no SesiLab, e apesar de gratuito, a entrada será feita com ingressos (retire aqui o seu).

Dias 6 e 7 de de dezembro estarei em Porto Alegre, participando da FEIRA GARGANTA que rolará no PoA Eco Hostel Será minha primeira vez participando de eventos na região sul, e a expectativa está bem alta por aqui.

Dia 14 de dezembro estarei em Buenos Aires, participando da MIGRA FERIA DE IMPRESOS. Será minha primeira vez participando de uma feira de impressos fora do território nacional. Será muito massa poder divulgar minha produção e minhas ideias para mais pessoas que se interessam por gravuras, e suas relações com o ativismo. A feira será no Laboratório de Artes Buenos Aires e eu participarei apenas no domingo (não vá me procurar lá no sábado hein?). A entrada é gratuita, mas pede-se doações de alimentos não perecíveis e roupas em bom estado.

Enfim, produção a mil por aqui, pois o fim de ano será intenso. Mas a expectativa é de que seja tudo muito bom!!

Ps.: Loja virtual fechada até eu conseguir voltar e me organizar.
Ps.2: Será o último ano que eu faço esses cartazes em serigrafia comemorativos da feiras gráficas. Ou seja, quem tem, tem, rs.
Ps.3: Se tudo der certo, ano que vem tudo será repaginado por aqui, vou tentar focar mais numa produção autoral, voltar a gravar as aulas, vamos ver se rola.

Lapsos de Tempo #19

Amor

Você me ama?
Acho que sim.
Você acha que me ama?
Hmmm, acho… Bom, primeiro, talvez, preciso que você defina o que você entenda que seja amar. Para saber se eu te amo nos termos que você entende como amar.
Amar é… é um sentimento muito forte que você tem por outra pessoa, a ponto de querer fazê-la feliz e estar sempre próximo.
Hmmm…
Sabe? Querer viver a vida com essa pessoa em toda sua plenitude, ser feliz juntos.
Bom, tenho minhas dúvidas se penso como você. Acho que amar, na minha concepção, trafega em outras vias.
Como assim? Você ama diferente?
Não que eu ame diferente. Mas acho que amor vai além de querer fazer alguém feliz, ou querer passar a vida com ela.
O que é amar para você?
Acho que para mim o amor é um sentimento muito forte, como você disse, mas extrapola a questão da felicidade ou da companhia.
Como assim?
Acho que se uma pessoa ama outra, ela não precisa fazê-la feliz ou querer toda a plenitude da convivência e do afeto, mas também estar plenamente satisfeito com a felicidade da outra.
E como isso se diferencia?
Acho que se você está feliz, independente do motivo, isso me traz um sentimento alegre, pois eu te amo a ponto de desejar que você seja feliz. E felicidade pode vir de qualquer forma. Podem ser relações sociais, profissionais, viagens, habilidades novas adquiridas, preocupações, cuidados, um momento em que você se sentiu bem, um abraço em qualquer momento e por qualquer motivo, uma pintura bem feita, um livro lido que foi tão bom a ponto de te fazer olhar para o céu por um instante imaginando os personagens na vida real. Se essas coisas te fazem feliz, isso me deixa feliz. E isso me satisfaz enquanto prática do amor.
Mas se você define assim o amor, porque uma pessoa decide se relacionar com alguém por um longo tempo, namorar, morar junto, essas coisas? Isso não é amor?
Acho que sim. Todas estas práticas talvez façam sentido se existe um sentimento mútuo que surge quando compartilhamos as nossas vidas. Acho que o amor permeia esses rios. Em vidas compartilhadas ambas pessoas deveriam desejar a felicidade da outra, e das outras em um contexto mais amplo. Acho que uma forma de pensar e agir não deve se sobrepor à do outro, muito menos largada nas mãos do outro como se lidar com as questões individuais fosse um dever do outro, sabe?
Como assim?
Ahhh, tipo se pensar em ciúmes, por exemplo. Ciúmes é um sentimento que todas as pessoas sentem, sem exceção. Eu sinto, você sente, e todas as pessoas ao nosso redor sentem. E esse sentimento chega em maior ou menor grau. A questão que eu penso é que meus ciúmes devem ser lidados por mim, e não por você. O ciúme nunca deixará de existir, ele pode incomodar bastante e fico pensando em como lidar com isso… Eu posso tentar encontrar o que me causa ciúmes, posso verbalizar isso para você. Mas quem precisa encará-lo de frente sou eu.
Mas se isso fosse uma regra as pessoas não se relacionariam. Os ciúmes existem porque o outro nos causa algo.
Mas esse algo tem a ver com o quê? Insegurança?
Pode ser que sim…
Mas a insegurança é sua. Se a nossa relação, nosso convívio, nossa história, e todos os sentimentos que lidamos mutuamente não são suficientes para que você lide com essa insegurança, eu preciso abandonar minha felicidade por você? Você não se sente feliz ao me ver feliz? Você não é feliz?
Sim, mas, pode ser por medo também.
Medo de que?
Da perda, por exemplo.
Perder a relação? Perder algo que é ou era muito bom? Acho que nos resta entender que as relações vêm e vão. A cada momento faz sentido estar mais próximo de alguém, isso não é algo fixo. Pode ser por um tempo curto, podem ser por várias décadas. Cada pessoa tem seu tempo. As pessoas que eu me interessava na adolescência não são as mesmas pelas quais eu me interesso hoje. O fluxo da vida exige esse tipo de trânsito. A metáfora que eu uso é a da estrada ou das ruas. A gente as segue, vamos fazendo nosso caminho. E outras estradas e ruas vão cortando esse nosso trajeto, encontrando, desencontrando, indo junto, separando… Acontece. A perda também faz parte da ação amar. Entender e deixar ir…
Mas eu quero ser o motivo da sua felicidade. Eu quero te fazer feliz! Isso é amor.
Você quer ser um dos motivos da minha felicidade, mas é impossível você ser o único motivo, a única razão. Se eu reduzir amar ao que sinto por você, ou ao sentimento que você causa em mim, você está me dizendo que eu deveria ser triste em todos os outros aspectos da minha vida. Isso é muito injusto comigo. Isso não é amor.
Não é ser a única razão, mas ser a mais forte.
Eu não consigo entender as razões enquanto uma competição de importância na felicidade de alguém…
Hmmm… Mas então, você me ama?

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE, Fomapan 100 PB

Lapsos de tempo #18

Fatalidade

Domingo foi dia de ir na feira, ver as amizades, comprar quitutes e almoçar ao som de pagodes clássicos. Todos os anos eu aguardo ansiosamente a chegada deste dia. Meu roteiro é sempre o mesmo: o mesmo ponto de encontro com as pessoas que sempre me encontram ali uma vez ao ano; comprar caixas de chá mate a granel que vem da agricultura familiar do sul do país; e assistir aos músicos tocando pagode enquanto me delicio com um feijão tropeiro vegano feito por produtores locais. Costuma ser um dia ótimo.
Vem meu amor, não faz assim, você é tudo aquilo que sonhei para mim…
O dia começou com uma cara de chuva, algo que estava fora do meu roteiro. Não que a chuva me impeça de fazer algo, mas quando você tem um evento em espaço aberto planejado, pensar duas vezes antes de sair de casa se torna algo comum. Nuvens carregadas, ventos frescos, clima abafado. Apesar disto tudo, penso que o dia me espera de braços abertos.
Com esse seu jeito faz o que quer de mim, domina o meu coração…
Eu, que sou um grande fã da iguaria indígena denominada cientificamente de Ilex paraguariensis, possivelmente de origem 100% Guarani, aguardo todo ano por este vendedor que vem do sul do país. Ele produz uma leva que possui uma tostagem mais controlada que esses industrializados que se vende em supermercados. O sabor fica mais forte, abraça o corpo por dentro, envolve o paladar de uma maneira que nenhuma outra bebida faz.
Olha nós outra vez no ar, o show tem que continuar…
O tropeiro também é algo especial. Ele é feito com feijão de coloração roxa colhido em terras de agricultura familiar. É misturado com coco torrado, soja graúda não-transgênica frita no molho shoyu, couve com alho na manteiga de castanhas, linguiça de lentilhas artesanal cortadas em rodelas e servidos com arroz branco em um prato de plástico. O molho de pimenta, caseiro, é opcional.
É uma saudade imensa que partiu meu coração…
Penso nisto tudo enquanto caminho em direção ao local da feira. O clima está ruim, fechado, mas eu acho que vale a pena a ida. Encontro com meus amigos e fico batendo papo durante um tempo. Sim, sempre encontro os mesmos amigos. É como se fosse um local onde todos saberemos quem estará presente. Após uns 40 minutos de conversas, começo a buscar nas barraquinhas pelo produtor do chá-mate. Depois de percorrer as 78 barraquinhas, descubro que desta vez ele não foi. O primeiro golpe atingiu meu coração em cheio. Minha compra anual de erva mate tostada pro meu chá diário foi cancelada, e com isso a primeira tristeza do dia.
Quando eu te vi pela primeira vez, me encantei com seu jeitinho de ser…
Passada a primeira frustração, sigo adiante para encarar a imensa fila do feijão tropeiro. Após alguns minutos em uma fila segurando o cardápio, descobri que estava na fila errada. Tive que entrar em uma fila específica do caixa, que demorou bastante até chegar minha vez. Na fila você só fica em pé, aguardando com ansiedade quando será a sua vez de pagar pelo serviço. Quando chegou a minha vez, tentei disfarçar meu descontentamento com o valor da iguaria. R$45 pelo prato de tropeiro. Paguei pensando que eu faria um rango melhor com essa grana em casa, mas achei que valeria a pena me desfrutar por uma última vez deste tropeiro tão fabuloso em minha memória.
Tira a calça jeans, bota o fio dental, morena você é tão sensual…
Com minha ficha em mãos fui na barraquinha onde serviam o feijão tropeiro. Era uma barraquinha bem desorganizada, não haviam filas, mas sim um aglomerado de pessoas gritando e tentando fazer o pedido antes das outras. Um verdadeiro caos. Eu esperei pacientemente até que alguém me atendesse sem eu precisar disputar atenção com pessoas muito mais engajadas na missão do que eu. Um senhora me atendeu com bastante calma e começou a preparar meu prato após pegar minha ficha. Ela serviu a refeição no prato, me deu juntamente com um garfinho de plástico e disse que o molho de pimenta era a parte, que eu poderia me servir a vontade. Assim o fiz.
Eu te quero só pra mim, como as ondas são do mar…
Enquanto voltava para o local onde estavam minhas companhias, observei que o tropeiro não estava tão rechonchudo como o do ano passado. Não tinha coco, e a linguiça não parecia ser a de lentilha que eu tanto gostava. Além disso, a porção de tropeiro era visivelmente menor que a de arroz, me fazendo refletir se realmente valiam os R$45. Enquanto caminhava me desviando das pessoas, dei um passo para o lado e me detive em um lugar seguro cedendo passagem para uma pessoa cadeirante que também tentava atravessar o mar de pessoas, só que para o outro lado. Para o meu azar, me detive atrás de um grupo de pessoas que não haviam percebido a situação, e uma delas deu um passo para trás abrindo os braços para simular alguma situação que conversava com seus amigos. Seu braço foi ao encontro do meu prato, enquanto eu me contorcia todo pra tentar equilibrar minha tão sonhada refeição.
Você só colheu o que você plantou…
Não teve jeito, meu pratinho virou e 89% da porção de tropeiro caiu, indo direto para o chão. Quando olho para o que sobrou praticamente só vejo arroz, pensando que no prato tinha tanto arroz que nem ia fazer falta se eu perdesse um pouco dele ao invés do tropeiro. Não dei conta, um xingamento saiu de minha boca, todo mundo ouviu. Fico olhando para a pessoa que começou toda a confusão, e ela me xinga dizendo que eu estava parado atrás dela. Isso me revolta bastante.
Eu te vejo nos meus sonhos, e isso aumenta mais a minha dor…
Acabei almoçando um arroz de R$45, sem meu mate tostado, ouvindo pagode ao vivo enquanto caía uma garoa disfarçando minhas lágrimas.

La Idea, 2023 – Canon BF800, Double-X 200 PB

Lapsos de Tempo #17

Tempo

A vida nada mais é do que um tempo que passa. Mas acho que é importante a gente perceber e passar o tempo junto com ele. Talvez a vida assim tenha um sentido.
– E se eu me sentar aqui, consigo ver o tempo passar?
Passam carros, pedestres, animais. A luz muda, as sombras caminham. Eu consigo perceber o vento apenas por conta do balançar das folhas, dos galhos, da sujeira da rua.
Olho para o relógio, mudam os ponteiros que apontam para números que marcam que horas são. O tempo passa rápido quando deveria passar devagar. E vice-versa.
Acho que tento perceber algo para provar se ainda estou vivo, ou se apenas vejo a vida passar enquanto perco tempo. Eu digo que estou preocupado.
– Isso me preocupa!
Mas ninguém me escuta. Não há pessoas tentando perceber o tempo passando.
Imagino que essas pessoas apenas vivem sem se importar com isso.
Talvez, em algum momento, elas se olham no espelho e veem rugas na pele, cabelos brancos. Talvez sintam que estão sem fôlego, que o corpo demora mais tempo para se recuperar de uma enfermidade, que o álcool ingerido embriaga muito mais rápido. Sem falar na dor de cabeça do dia seguinte.
– Maldita dor de cabeça!
Se pensarmos no tempo que passa, pode ser que estejamos perdendo esse tempo.
Talvez tudo isso seja perda de tempo. Pensar, perceber, indagar.
É vida que passa. Será que isso pode mesmo levar à loucura?
– Dar sentido a vida pode levar à loucura, mas uma vida sem sentido é uma tortura da inquietação e do vão desejo. É um barco que anela o mar, mas o teme…
De onde estou não vejo o barco, apenas temo o mar.

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE, Fuji 200

Ow!

Com licença Senhor, alô alô. Me desculpe te interromper, mas sua carteira caiu!
Senhor, sua carteira caiu no quarteirão de trás, vim avisar-lhe!
Diaxo, sai fora daqui!!
Ow, Senhor, não queria te incomodar, mas preciso te avisar da sua carteira, ela está no chão!
Cala a boca!!!
Eu queria pegar e trazer, mas ela tava muito cheia e pesada, eu não dei conta, ia acabar fazendo bagunça. Eu imagino que o conteúdo dela deve ser importante para o Senhor, por vim correndo te avisar!
Maldito seja!!!
Senhor, com licença, não queria atrapalhar seu percurso, mas considero de extrema importância que o Senhor volte e pegue sua carteira que caiu no chão. Aqui é rua, qualquer um pode roubar.
Calado!! Me deixe em paz!!
Senhor, eu sou muito paciente, posso ficar repetindo várias vezes aqui, mas não dá para o Senhor me ignorar assim, eu vim correndo, na maior boa vontade.
Vai embora!!! Vou te chutar daqui!!
Ow, não fiz nada demais, vai me chutar porque?? Eu hein? Não posso nem mais ser gentil.

La Idea, 2024 – Olympus Pen-EE, Kodakcolor 200

Imaginokupa #4

Vandalismo

Já fazem três décadas que a casa de dois pisos independentes, número 120 no quarteirão da Rua Mitre, entre as ruas Gonzo e Mortos, serve como retiro de escrita. Inicialmente, o conjunto de casas abandonado foi um grande mistério para a comunidade local, que via o abandono tomar conta da estrutura. Havia uma placa de vende-se, porém não há muitos registros de visitas para negociar o imóvel, tornando o espaço um local de acúmulo de lixos e entulhos. Apesar do tempo desocupado, não foi um lugar em que as pessoas costumavam adentrar.
Circulavam na comunidade vários boatos sobre o que poderia ter acontecido com os antigos donos ou ocupantes, além de lendas extraterrestres, mitológicas e folclóricas que permeavam o imaginário da vizinhança. De assassinatos a abduções, sempre surgiam alguma história nos bares presentes ao redor das casas.
Um grupo de pessoas, certa vez, decidiu entrar na casa para tentar encontrar qualquer pista que tirasse a dúvida de vez sobre a história da casa ou dos proprietários, e para isso bolaram planos de invadir pela janela.
A execução foi bem simples, pois as portas se encontravam destrancadas e nem houve a necessidade de acessar por outra abertura, e em poucos minutos todas as portas e janelas já estavam abertas, com a luz natural do sol acessando os cômodos empoeirados.
O grupo de pessoas, começou um processo de limpeza do local, e catalogou tudo que encontravam pelo caminho. Não haviam documentos, nem objetos eletrônicos, a quantidade de móveis era bem escassa, e nem o governo local possuía registros de propriedade das casas. O grupo de pessoas, que inicialmente fora chamados de vândalos por invadir a residência, entenderam que não foi vandalismo se nada foi destruído, muito menos houvera denúncias nas autoridades locais.
Não havia muito o que fazer que não fosse sentar em roda e tentar discutir possibilidades para a existência do imóvel. As pessoas mais velhas da comunidade não se lembram dos antigos moradores, não há fotografias, não há marcas de que alguém já esteve ali.
Mas algo naquela roda de pessoas pensantes acontecia sem que os membros do grupo se dessem conta. Todas as pessoas começaram a ter ideias sobre a biografia da casa, de seus ocupantes, da estrutura, da arquitetura, do porquê da existência dela. Incrivelmente, surgiram várias teorias, complexas e detalhadas, que começaram a serem registradas em cadernos por cada membro.
A cada dia que as pessoas se reuniam, mais e mais folhas de caderno eram escritas, com diferentes histórias, que ultrapassavam os limites temáticos da casa em que se encontravam, formando todo um ecossistema de escrita e criação literária.
O imóvel, ocupado diariamente, ganhou o nome de Casa Vandalismo, pois era como as pessoas foram rotuladas no início da ocupação do espaço. Com o tempo, mais pessoas se juntavam ao grupo, e outras ideias começaram a ser desenvolvidas. Fanzines e publicações independentes começaram a surgir, impressas em diversos meios artesanais, com temáticas sobre aborto, gênero, comunidade, artes, arquitetura, biografias, astrologia, astronomia, engenharia, sociologia, meio ambiente e ecologia. Não podemos esquecer das inúmeras obras de literatura de ficção, e sua irmã a ficção científica, além do clássico realismo mágico. Era como se a casa fornecesse alguma substância para o cérebro em que a produtividade ligada à criação e à imaginação fossem despertas.
A fama daquele local ganhou o mundo, e haviam listas de espera para que escritores de diversos níveis de experiências, passando por processos de bloqueio criativo, pudessem se juntar à roda e começar a confabular ideias e teorias naquele espaço peculiar.
A Casa Vandalismo se tornou patrimônio do bairro, recebendo visitas de turistas curiosos com a mágica do lugar, e mais teorias surgiam sobre como ele poderia funcionar. Com o tempo inaugurou-se um Retiro de Escrita, que alimentaram as editoras, bancas, livrarias e bibliotecas com muitas obras inéditas de jovens escritores.
Apesar do grande fluxo de ideias, o passado do imóvel segue sendo uma página em branco. Não se sabe como surgiu, quem encomendou e porque passara tanto tempo abandonada. Ninguém ousou questionar as razões mágicas que fazem as pessoas começarem a criar.
As pessoas têm medo de que isso acabe quando souberem a verdadeira razão.

Ruim demais para ser mentira #11

Camping

Quando eu era pequeno me lembro de ter ido num camping com minha família. Tenho memórias bem difusas deste dia, mas a incredulidade com que as pessoas recebem esta história fazem com que ela tenha algo bastante especial.
Primeiro falaremos sobre o cenário: uma área verde com muitas árvores, que agora me parecem que estavam meio secas, gramado, sol, praia. Uma criança de sunga, vulgo eu, corria para cima e para baixo brincando de algo completamente aleatório. Provavelmente com a pele já muito lastimada pelo sol enquanto me perdia nas marés de água salgada.
Dormíamos em uma barraca bem estruturada, composta de dois quartos e uma varanda, e eu me lembro até de um churrasco ter sido feito na área externa. Quando eu digo dois quartos, pode parecer que é algo bobo e apertado, mas eram dois fucking quartos bastante espaçosos, impensáveis para pessoas que já nasceram na era das barracas que são montadas apenas com uma varinha no iglu feito de lona.
Fico imaginando esse tipo de barraca old school sendo carregada por neohippies brancos de dreads em seus mochilões por regiões indígenas, exigindo brunch de algo que não existe ali. Algo completamente impensável.
A lembrança que eu tenho do lugar traz algo mais especial ainda: o bar. Aquele espaço raiz interiorano, uma janelinha onde se pede bebidas e tira-gostos, um alpendre coberto, nas paredes haviam pinturas e propagandas do que se vendia ali, tudo muito bem ventilado no espaço, mesas de madeira acompanhada de bancos que lembram muito o refeitório de uma universidade. Me lembro de ter música ao vivo e de jogar baralho com minha família enquanto eles se deliciavam com uma cerveja gelada (eu espero) naquele calor praiano de algum lugar que eu não lembro onde era.
No bar todas as pessoas do camping se encontravam, e eu me lembro que iria muito lá. Mas minha memória quer muito me enganar, pregar peças na minha realidade infantil e plantou uma situação muito inusitada. Tenho uma memória muito nítida de uma noite no bar em que foi feita uma encenação da Escolinha do Professor Raimundo. Sim, estávamos sentados na mesa, e os personagens foram se sentando junto da gente nos bancos sem encostos, e todos riam a cada piada que era proferida. Eu não entendia bem o que estava acontecendo, mas me lembro de ter sentido muita raiva nesse momento. O personagem do Seu Boneco sentou-se à minha frente, deu as costas pra mim e eu não possuía nenhum campo de visão que não fosse as costas dele de regata surrada e da nuca vestida com uma meia-calça velha rasgada. Eu não conseguia acompanhar o que estava acontecendo e tratei apenas de esperar que o evento acabasse.
Na minha concepção de tempo aquilo tudo durou uma eternidade, e esses programas besteiróis que simulam escolinhas com atores velhos falando baboseiras é algo que eu não curto nem fudendo. Inacreditável como tudo isso pode ser facilmente inventado por uma mente viajandona como a minha né? Quando eu conto ninguém acredita. Nem eu acreditei em mim mesmo.
***
Recentemente interpelei minha mãe e minha irmã sobre essas lembranças. Eu realmente achava que eu tinha sonhado com isso tudo. Minha irmã sempre me contava histórias aleatórias de como ela enxergava as situações, e eu sempre acreditei em tudo independentemente se fosse verdade ou mentira. Minha mãe me respondeu de forma simples, direta e rápida: “Sim!! Foi na Praia do Siri.” e seguiu com outra mensagem curta: “A barraca tinha 2 quartos e uma varanda.”. Eu comecei a rir muito, porque eu realmente achava que tinha sonhado com isso tudo. Sobre a Escolinha, minha mãe confirmou a veracidade do ocorrido e completou: “Teve. Vc ficou puto e começou a chorar. Foi numa área de camping” enquanto minha irmã se limitou a confirmar com um intenso “Simmmm”. De acordo com elas, existem fotografias deste dia, de uma criança, no caso eu, dormindo na imensa barraca.


Aulas de xilo e linoleogravura presenciais em BH

AULAS DE XILOGRAVURA E LINOLEOGRAVURA
com La Idea

Xilogravura e linoleogravura são técnicas de gravação e de impressão em relevo utilizando matrizes com base de madeira e de borracha, respectivamente. São muito versáteis, oferecem uma ampla gama de possibilidades, de experimentações e de finalidades.

Nos encontros iremos desenvolver:

*manuseio de goivas e demais ferramentas
*noções básicas de desenho
*decalque
*como criar sua própria matriz
*escolha de papéis e tintas
*impressão monocromática
*impressão policromática
*matriz perdida
*desenvolvimento de projetos
*e mais!

Para quem são estas aulas?

*Curte a técnica e a estética
*Gosta de processos manuais e artesanais
*Nunca gravou nada, mas tem curiosidade
*Quer desenvolver projetos artísticos, conhecer novas formas de se expressar e experimentar na produção gráfica.

*Não precisa saber desenhar.

*Encontros de aproximadamente 1h30min
*Hora e dia fixos ou marcados com antecedência
*Atelier no bairro Santa Tereza/BH
*Goivas, tintas e demais materiais estão incluídos
*Não estão incluídos papéis de impressão e matrizes
*Goivas, tintas e demais materiais estão incluídos
*Valores:

1 aula avulsa individual: R$110
1 aula avulsa em dupla: R$200
pack 4 aulas individual: R$396 (10% de desconto)
pack 4 aulas em dupla: R$720 (10% de desconto)

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Ruim demais para ser mentira #10

Água

Quando eu era criança eu achava que toda comida e toda bebida que entrava pela nossa boca era depositada em todo o espaço interno do corpo. Simplesmente, na minha cabeça, o corpo era um grande espaço vazio que era preenchido com comida e bebida. Eu sempre fui muito bom em comer, e essa era minha explicação plausível para nunca ficar devidamente saciado.
Inclusive, vontade de cagar era algo que acontecia somente quando o corpo já estava cheio de comidas e precisava liberar um espaço para a próxima alimentação. Eu não tinha limites quando o assunto era comida, e minha mãe precisou brigar muito comigo para que eu não tomasse Biotônico Fontoura, pois eu adorava o sabor sem saber que isso servia para abrir o apetite.
Claro que eu recusava algumas coisas que eu achava esteticamente feias, tipo couve-flor, ou com cheiro muito forte, tipo pequi. Até jiló ainda é difícil se acostumar com o sabor amargo, mesmo depois de tantos anos, mas o tempo me fez ampliar minhas opções de alimentação.
Com líquidos não era muito diferente, mas na minha cabeça o líquido saía logo depois que ele entrava, e eu tinha uma preguiça enorme de fazer xixi.
Sempre que me dava vontade de “tirar água do joelho” eu ia na cozinha e tomava tudo quanto é água que eu poderia consumir no dia. Virava copos e copos pois aproveitaria a ida ao banheiro para mijar toda essa água e eu não precisar retornar depois. O líquido competia espaço com a comida, e por isso deveria sair mais rápido.
Uma cena frequente que me lembro quando criança era o de beber muita água antes de dormir, pois aproveitaria a última ida ao banheiro para liberar todo o xixi que eu tinha no corpo e, claro que essas coisas não passam ilesas, e uma questão comum da minha infância era eu acordando todo mijado.
Nunca entendi muito bem o porque eu fazia xixi na cama, mas mesmo depois de adulto isso ocorreu algumas vezes. Mais recentemente eu entendi que eu ficava preso no meu próprio sonho. Sabe aquelas vezes que você está sonhando e precisa muito achar um banheiro para mijar? Pois é, em algumas destas vezes eu não conseguia acordar e mijava no meu sonho. Ou seja, mijava na cama.
Eu nunca fui muito bom em lembrar dos meus sonhos, mas esses em que eu mijava eu lembrava com certa frequência. Hoje tomo muito cuidado para não ingerir muitos líquidos depois das 21h, no intento de não ficar preso no meu sonho novamente.
O jovem eu poderia ter se livrado de muitos colchões ao sol e poças de urina no quarto se tivesse desconfiado antes que o corpo funciona de outra maneira.

Imaginokupa #3

Carcaça

Carcaça é o nome pela qual ficou conhecida a antiga ocupação de uma guarita vazia ao lado da linha férrea metropolitana. Nos anos 90 um grupo de jovens artistas e muralistas começou a utilizar o imóvel abandonado para guardar materiais como tintas, rolos, extensores, misturadores e equipamentos de escalada que seriam utilizados nas ações de intervenção que rolavam na cidade. O grupo foi conformado por 20 pessoas que esperavam pacientemente pelo momento perfeito de acessar os trilhos e produzirem grandes murais com motivos políticos nas estações de trens, vagões, construções próximas e nos muros que dividem as ruas dos trilhos. As ações eram coordenadas para que ninguém fosse detido e todo o processo fosse feito em poucos segundos ou minutos.
A guarita, já sem uso pelos oficiais de vigilância devido à modernização e robotização do sistema, era um ponto de observação e planejamento logístico para as intervenções. Ela possuía dois andares, sendo que o de cima, com acesso pela escada externa, era utilizado apenas para observação. Já o de baixo possuía uma porta grossa embaixo da escada, onde eram guardados materiais de pintura, vestimentas, e demais equipamentos necessários para a intervenção. O segredo da ocupação consistia em um piso falso, que dava acesso a um tipo de subsolo, ligado por um túnel até uma caixa de entulhos e materiais de manutenção dos trilhos. Todos os materiais e equipamentos ficavam devidamente escondidos e protegidos até o momento que a ação pudesse ocorrer sem problemas.
A ocupação ficou ativa por alguns anos, e promoveu neste tempo cerca de 275 ações de intervenção que envolviam propaganda política radical e autônoma, gerando guerra contra as empresas publicitárias que colocavam seus outdoors nos mesmos espaços e plotavam os vagões com publicidade de empresas privadas. Iniciou-se uma verdadeira batalha por espaços e durante muito tempo não houve informações de quem estava pintando os murais durante a madrugada.
Uma das táticas utilizadas pelo grupo rebelde foi a de hackear o sistema de segurança automatizado através da frequência de rádio e de um sistema de cabeamento do subsolo grampeado. Foi através das técnicas de contra-informação que as ações puderam ser coordenadas entre os membros, e teve seu relativo sucesso por muito tempo.
Com a virada do milênio, os sistemas de segurança ficaram mais rígidos com o medo do bug internacional que poderia atrapalhar todo o sistema de fluxo de dados, e todo o sistema de hackeio e grampo foi descoberto. Felizmente, a guarita foi desocupada antes que alguém pudesse ser detido. Ainda não se sabe bem quem foram estes ocupantes e jovens, mas suas ações ficaram marcadas, e o resquício do imóvel segue de pé, sendo tomado pela vegetação local.
A Okupa Carcaça foi um marco na subcultura do grafite e da intervenção artística de cunho político, radical e autônomo, e a influência dos murais ficou marcada na memória de muitos habitantes locais e grupos organizados.

Gira Sudaka

É com muita satisfação que eu anuncio que entre os dias 28/07 e 30/08 farei parte da tour sulamericana do livro “Casa Encantada“, do meu amigo Baruq. Será uma jornada corrida, intensa e a expectativa é de que será igualmente maravilhosa.
Durante a tour, além de realizarmos o lançamento do livro, apresentaremos sobre a okupa Kasa Invisível e conversaremos com as pessoas de diferentes centros sociais e ocupações o que andam fazendo em suas regiões, como fazem, como se organizam, seus históricos de luta e de resistência.
O lançamento irá passar por espaços autônomos em cidades do Chile, da Argentina, do Uruguai e por mais cinco estados brasileiros (RS, SC, PR, SP e RJ).
Será uma forma de ampliar a rede de solidariedade entre espaços autônomos e coletivos em processos de luta, sobretudo àqueles que praticam formas de ação direta.

Como muitos sabem a organização autônoma e a criação e gestão de espaços de resistência é o tema de minha pesquisa na pós-graduação em educação (leia a dissertação clicando aqui). Acredito que esta viagem também poderá agregar aos meus estudos mais informações e ideias em como prosseguir com esta pesquisa em outros âmbitos também.
Porém, para uma pessoa autônoma como eu (sem férias, sem 13º, sem descanso), os custos da viagem precisarão ser arcados de outras maneiras. Dito isto, lançamos uma campanha de arrecadação de fundos para que pessoas situadas no continente europeu possam colaborar (conhece alguém que tá lá?, mande este link) e também fizemos alguns eventos para arrecadar dinheiro com a venda de bebidas.
Outra forma de nos ajudar é adquirindo por R$60 o pôster em serigrafia que produzimos fazendo alusão ao tour (imagens logo abaixo) e também a partir da contribuição voluntária de qualquer valor pela chave pix cyco.idea@gmail.com (qrcode aqui).

A ideia é levar esses posters para serem vendidos durante a viagem também e assim arrecadar fundos, sobretudo, para alimentação durante a viagem.
Enfim, a expectativa está alta, a ansiedade também. Se tudo der certo, postarei atualizações da viagem aqui no blog e no Instagram também.

Lapsos de Tempo #15

Passeio

Vejo o que ele tem na mão, me animo. Me vem uma felicidade extrema que não consigo me conter. Vou até ele e sinalizo que concordo com sua atitude. Ele coloca algo no meu pescoço enquanto olho para o Breno ao meu lado querendo que seja feito o mesmo com ele. Nós, afobados, saímos correndo até a porta de vidro. Ele abre e, por mais que façamos força, não conseguimos correr livremente. Vamos tentando caminhar, mas Breno não consegue andar em linha reta e toda hora me fecha. Breno também faz com que nossas guias se enrosquem, e isso dificulta o andar. De vez em quando eu perco a paciência com Breno, mesmo ele sendo muito maior que eu. Eu cheiro alguns lugares, ele vem atrás de mim fazendo o mesmo. Fico me perguntando se ele tem a própria personalidade e interesses. Deixo um pouco de urina por onde passo. Gosto de marcar alguns lugares e deixar registrada a minha presença ali. Breno me imita em tudo. A cidade é viva, e nós que fazemos ela viver.
Vejo algumas coisas no trajeto, cheiro e não me agrada muito. Já Breno morde tudo antes de saber o que é. Ele morde, baba e cospe fora, não possui muitos critérios. Seguimos pela avenida vendo todo o movimento de automóveis barulhentos, ao mesmo tempo que acompanho o voar silencioso de uma borboleta. Isso me detém um pouco no processo de contemplação. Breno não enxerga nada disso. Passa por cima de qualquer coisa que está no seu caminho.
Na esquina um cheiro chama a minha atenção. Percebo que Breno sentiu a mesma coisa. Nos entreolhamos e fomos correndo, forçando o chão para chegar lá o mais rápido possível. Era um gramado a meia altura, recém cortado, cheirinho de mato molhado, algumas flores solitárias enfeitavam. Eu olhei para Breno, ele me olhou. Fomos até lá, subimos, cheiramos o melhor ponto possível, demos duas voltas em torno de nós mesmos e soltamos o som mais gostoso do mundo: “-ahhhhwwwwff!”.
Sim, o único em que concordamos é que cagar na grama é o melhor momento do dia.

Olympus Pen-EE – Shangai GP3 100 PB – La Idea, 2023


Horizonte

Quando estou caminhando, correndo, pedalando, me locomovendo de uma maneira geral, olho para o horizonte. Acho interessante como que as coisas no primeiro plano passam de maneira muito mais rápida que o fundo da cena.
Fico pensando no que são nossos sonhos, desejos, o que queremos e o quanto nos propomos a buscar o que almejamos.
Fiquei pensando nessa analogia com os planos da paisagem. O que está muito próximo, chega rápido, mas é isso, não tem nada demais além do que está na na cara. Logo é substituído por algo tão efêmero quanto.
O que está a médio prazo, passa a uma velocidade menor, podemos ver com calma, analisar, escolher, temos tempo para observar. O primeiro plano, veloz, às vezes atrapalha um pouco observar o que está a média distância, mas não impede.
Já o que está no fundo, no horizonte, passa tão devagar que nem parece que estamos nos movendo. Ali temos um amplo leque de possibilidades até conseguir chegar lá. E pode ser que nem seja lá onde queremos chegar. Tudo depende do caminho. Mas é um ponto de fuga, algo onde miramos.
Talvez seja por isso que a utopia seja tão metaforizada como a ideia do horizonte.
Ele está longe, mas está ali. Só saber ir com calma.

Olympus Pen-EE – Shangai GP3 100 PB – La Idea, 2023

Ruim Demais Para Ser mentira #9

Estrada

Quando eu era pequeno viajar costumava ser sempre um caos. Eu nunca fui muito de dormir em veículos (isso mudou há pouquíssimos anos) e minha vida acordado em viagens sempre foi bastante criativa.
Eu tinha meus próprios hobbies passatempos de sobrevivência nas estradas.
Eu gostava bastante de imaginar que eu tinha fôlego, velocidade e habilidades o suficiente para correr ao lado do carro, só que passando pelas paisagens que eu via pela janela. Então o pequeno eu corria por pastos, pulava cercas, subia e descia morros, desviava de árvores e de animais, saltava rios e lagos, voava em pontes, subia e descia de imóveis e construções com certa facilidade, sempre acompanhando a velocidade do veículo em que estava.
Também gostava muito de ficar olhando praquele amontado de eucaliptos que faziam tipo linhas de fuga/perspectiva, com uma linha clara ao fundo. Tentava acompanhar a linha clara que sempre mudava de lugar por entre a sequência de árvores. Ahh, claro, o pequeno eu também transitava por ali desviando das árvores.
Outra atividade legal, sobretudo quando eu me sentava ao lado esquerdo do veículo, era contar quantos carros legais passavam pela estrada no outro sentido. O conceito de “legal” nunca foi bem objetivo pra mim, mas era só algo para passar o tempo mesmo. Claro, o pequeno eu saltava todos estes veículos. Inclusive, corria por cima dos longos caminhões com muita destreza.
Outra atividade legal era encarar as pessoas dos outros carros. Quando um carro nos ultrapassava eu fazia careta para seus tripulantes. Quando a gente ultrapassava alguém eu fazia cara de deboche pro veículo ultrapassado. O pequeno eu passava por cima de todos estes veículos também.
Tudo isso era bem divertido.
As longas viagens entre BH e Guriri, no norte do Espírito Santo, se tornavam bem mais agradáveis com minhas brincadeiras inventadas para passar o tempo.
Porém, algo sempre ocorria que não deixavam as coisas tão divertidas assim. Meus hobbies terminavam, com certa frequência, em náuseas e vômitos. Sim, eu concentrava na paisagem e ficava muito mareado. Uma cena comum nas viagens é a parada para lavar o carro que tinha ficado em condições deploráveis após minhas brincadeiras solitárias. O terror da família era visível quando eu dizia que iria vomitar.
Sorte de quem tinha carro de quatro portas, que eu conseguia abrir a janela para vomitar. Nesse caso, apenas a parte externa da porta ficava com aquela sujeira toda escorrida. Secava rápido e a viagem podia seguir sem parar no posto pro banho. A bagunça era menor.
Viajar comigo era sempre algo caótico. Eu tinha que sempre me sentar na janela pra ficar mais perto da saída. Azar da minha irmã, que frequentemente tinha que ficar no meio do carro, sem onde encostar pra dormir. Ela sim conseguia dormir nas viagens.
Depois de um tempo tomar Dramin para viajar foi obrigatório pra mim.
Isso foi o fim do pequeno eu se aventurando em condições criativas absurdas.

Lapsos de Tempo #14

Topo

Outro dia li em algum lugar que a pessoa sem ter para onde ir só a restou chegar ao topo. Eu fiquei pensando o que é este topo que as pessoas tanto buscam.
O que me chamou atenção foi esse lugar imaginário, o alto, o cume, o ápice, a ponta, mas sempre pensando em um grau elevado. O que significa alcançar essa quimera?
Primeiramente, óbvio, busquei ajuda no dicionário: TOPO pode significar esse ponto mais alto, mas também significa “extremo”. Essa segunda definição talvez passe despercebida e oculta na maioria dos casos.
Eu entendo quando “topo” é usado como esse lugar que desejamos. O lugar da figura do sábio, alguém que está em uma posição elevada, e nós como seres humanos buscamos também ter o papel de certa referência. O pico da montanha, o topo da pirâmide, o céu.
Lugar onde reside um conhecimento e uma energia sublime, logo quem está lá se torna alguém superior.
Mas também é uma posição inventada: reis, políticos, religiosos, imperadores, empresários, charlatães de um modo geral… Todos clamam ocuparem estes locais. Desejam uma superioridade autoproclamada.
Mas acho que se pensarmos que também que topo pode ser um extremo, de forma genérica mesmo, as coisas tomam outra dimensão.
Chegar no extremo da dor, das emoções negativas, da [in]sanidade mental, da violência, da manipulação. No extremo até onde podemos suportar alguma coisa.
Parece demasiado trágico restar apenas o extremo, como se não pudéssemos mais ter escolhas.
Será que é o topo mesmo que estamos buscando?
Depois deste extremo é o fim? Depois do cume vem o declínio?
Nosso trajeto é feito de sobes e desces, de um lado para o outro, de vais e vens.
Prefiro acreditar na caminhada.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE – Shangai GP3, BW 100

Pikachu – FIGHT THE POWER

Está aberta a pré-venda da camiseta do Pikachu FIGHT THE POWER!!!
Ilustração original La Idea, com estampa produzida no submundo da autonomia gráfika.
Adquira a sua até 15/04/2025, com a possibilidade de comprar o pano de prato também com um descontinho maroto.
COMPRE CLICANDO AQUI

La Idea na Feira da Delícia Impressa, Rio de Janeiro

Alou alou pessoal, tudo certo por aí? Passando para anunciar minha participação na Feira da Delícia Impressa que vai rolar nos dias 15 e 16 de março de 2025, das 12 às 20h, no Solar dos Abacaxis (Rua do Senado 58). Estarei com banquinha cheia aguardando a visita de vocês. Será minha primeira feira no Rio de Janeiro e a expectativa está bem alta!!

Impressões em parceria com Baruq na loja virtual

Já estão disponíveis na loja virtual as impressões em serigrafia que fiz em parceria com o Baruq. São registros analógicos que ele realizou em sua passagem pela europa em 2024, na ocasião do lançamento do livro “Casa Encantada”.
São cartazes tamanho A3, papel preto e áspero, impressão a duas cores (branco+cinza), ~140g.

Acessem a loja virtual clicando aqui, e vá na seção de Gravuras/Impressões artesanais.

Relatos ressuscitam

Vou descrever algo que na hora me soou indescritível
Minha memória falha a esta hora, mas juro que irei tentar
Era uma cena, um quadro, uma fotografia ou uma pintura
Nela, eu via um conjunto de ossos, um ossário
Estavam repousando em uma maca reclinada
No entorno haviam pessoas, talvez também um bestiário
Eram poucas pessoas, atentas
Muitas criaturas, dispersas
Logo à frente havia uma grande janela
Nela se viam construções naturais e sintéticas
As naturais tinham cores quentes e vibrantes
As sintéticas, frias e duras, predominavam
Atrás, só havia escuridão
Neste ato de lembrança, trago um relato do que vivi
Ou talvez sonhei
Nesta época estava diante de um combate que não foi adiante
Fôlego distante de estar disposto naquele instante
As criaturas carregam em direção ao sol que nasce
Algo que não enxergo, não reflete luz
Não é matéria
Me lembro daquela claridade oriunda do calor cromático
Seus raios nos atingindo, tentando iluminar a escuridão
Poucas pessoas não podiam nada fazer
A não ser assistir e esperar
Isto não é tudo, pois nada jamais é tudo.
***
Em outra cena as cores são quentes
Não há nada sintético, nada é rígido
A ossada agora é cinza, com uma memória do calor
São muitas pessoas, poucas criaturas
As criaturas, desta vez, apenas assistem
As pessoas movimentando o vento
Carregam a matéria, e a despejam na água
Que flui
No que vejo, uma caixa de correios flutua na corrente
Ali as criaturas pegam cartas
Cartas que nós escrevemos, cartas que nós escutamos
Aqui, te ressuscitamos
Só para dizer que não acabou, porque jamais terminaria.
São os mortos que reclamam a necessidade de serem lembrados?
Somos nós que lhes imputamos esse desejo?


25/01, dia em que me dedico a escrever sobre a morte. Tomei a liberdade de te trazer mais uma vez, pai, neste quarto ano de seu falecimento. A cada ano, dedico este dia para pensar sobre a morte, sobre o luto, sobre a ausência. Sobre os processos que me fazem lembrar de celebrar a vida.
Hoje, me inspirei no texto “Pesquisar junto aos mortos” de Vinciane Despret, que chegou até mim nos encontros do Bora Falar de Amor que tive a honra de participar ano passado. Maria Caram, a mediadora, me fez pensar no luto enquanto processo de amor. Hoje escrevo sobre isso de maneira mais leve.

P.s.: Os destaques em itálico são citações diretas do texto de referência. O desenvolvimento dele foi uma espécie de cut-out desconstruído. Outro conhecimento adquirido no Bora Falar de Amor.
P.s.2: Tô testando um formato novo de escrita, rs. Não estranhem.


Caminhar, uma filosofia – Frédéric Gros

Há muito eu não escrevia minhas impressões sobre um livro. Hoje me deu vontade de fazer isso. Em meio à vida caótica, que meneia entre frustrações, pressões e desesperos, decidi começar a ler este livro no último dia de 2024. Sim, eu tinha uma pilha de outras coisas para ler, mas não consigo organizar minha cabeça para dar conta das coisas que eu realmente preciso.
Conheci esse livro através de um amigo, que leu um texto meu mais antigo e disse que se parecia muito com esta obra de Gros. Ele me mandou um pdf para ler, e eu, completamente de saco cheio de ler coisas virtualmente, acabei comprando o livro.
Ele ficou guardado por alguns meses até que, na minha atual sensação de estagnação, me bateu a vontade de lê-lo. É impressionante como os olhos nadam no fluxo das palavras, como se estivéssemos navegando junto com a corrente, ao termos na nossa frente algo que parece dialogar tanto com a gente.
Eu caminho desde que me entendo por gente, e essa prática foi parcialmente substituída pelo bicicletear na vida adulta, onde precisei de um pouco mais de velocidade e autonomia nos trajetos.
Eu não consegui parar de ler, devorei o livro rapidamente, e agora tenho ganas e vontade de caminhar por todos os cantos do globo terrestre. Essa cidade onde moro ficou limitada demais nos meus planos.

“Tudo o que me liberta do tempo e do espaço me afasta da velocidade.”
“A ilusão da velocidade consiste em acreditar que ela faz ganhar tempo.”

Nunca tinha lido, ou sequer sabia dos hábitos de caminhada de Nietzsche, Rimbaud, Thoreau, Rousseau, Gandhi e outras personalidades citadas no livro. Alguns eu curto, outros não. Mas fiquei impressionado com o fato de que a caminhada era um hábito, e cada um a fazia por suas próprias razões, pois sabiam que geravam mudanças, movimentos necessários para fazer a engrenagem da mente funcionar.
Como descrito no livro, caminhar não é uma ação esportiva, é uma ação básica de todo ser humano (saudáveis, sem dificuldades motoras, de locomoção, etc.). Eu sempre pensei assim, e eu só escrevi o texto do Lapsos de Tempo porque tinha sido questionado, pois não queria sair por causa de um cansaço extremo, mas topei voltar caminhando para casa (em torno de 30 minutos de caminhada).
Esses 30 minutos me revigoram, muito mais que me cansam. O que me cansa é ter que esperar ônibus (que envolve caminhada até a parada, uma longa espera, e outra caminhada da parada até minha casa), ficar esperando um táxi ou ter que lidar com a inconsistência de aplicativos tipo Uber. Se é uma distância plausível, eu realmente prefiro ir caminhando, pensando na vida, observando os elementos do espaço urbano. Não vejo nada disso como um problema.

“O verdadeiro sentido da caminhada não é na direção da alteridade (outros mundos, outros rostos, outras culturas, outras civilizações), mas estar à margem dos mundos civilizados, quaisquer que sejam eles. Caminhar é pôr-se de lado: à margem dos que trabalham, à margem das estradas de alta velocidade, à margem dos produtores de lucro e de miséria, dos exploradores, dos laboriosos, à margem das pessoas sérias que sempre têm algo melhor a fazer do que acolher a doçura pálida de um sol de inverno ou o frescor de uma brisa de primavera.”

Caminhar tem essa coisa de ir contra a forma do sistema mesmo, de você ter uma certa autonomia do caminho, do trajeto, da velocidade, das pausas. Sorte é de quem consegue manter esse hábito. Lendo as páginas deste livro, percorri uma boa parte da minha vida enquanto ser caminhante, que sempre preferiu gastar a sola dos tênis movimentando-se na descoberta de novos e velhos lugares.
Foi a caminhada que me fez o hábito de fotografar coisas quaisquer na ruas, de aguçar a percepção, de entender o que é novo naquele espaço, do que é velho e rotineiro, habitual. Há muito que eu não lia algo tão eu, mas tão eu, a ponto deu achar que foi escrita para mim, pensando em mim. Me sinto próximo de Frédéric Gros, sem nunca ter ouvido falar de sua existência.
Foi caminhando, observando e refletindo sobre tudo isso que envolve o viver, que eu comecei a produzir arte e arriscar escrita. Eu crio a partir do que vivo, do que penso, do que vivencio enquanto um sujeito que almeja descobrir o mundo, e tudo que gira junto com ele.
Enfim, grato por finalizar 2024 e iniciar 2025 com essa leitura. Por mais caminhadas por esses percursos e trajetos tão incertos que compõem a vida.

“Escrever deveria ser isto: o testemunho de uma experiência muda, viva. Não o comentário sobre outro livro, não a explicação de outro texto. O livro como testemunho. Mas eu diria “testemunho” no sentido do bastão numa corrida de revezamento: passa-se o “testemunho” a outra pessoa, e esta, por sua vez, começa a correr. Assim, o livro, nascido da experiência, remete à experiência. Os livros não são o que nos ensinaria a viver (esse é o triste programa dos que têm lições a dar), mas o que nos dá vontade de viver, de viver de outra maneira: encontrar em nós a possibilidade da vida, seu princípio. A vida não cabe entre dois livros (gestos monótonos, cotidianos, necessários, entre duas leituras), mas o livro dá a esperança de uma existência diferente. Logo, ele não deveria ser o que permite fugir da monotonia da vida cotidiana (o cotidiano é a vida como o que se repete, como o Mesmo), mas o que faz passar de uma vida a outra.”

“Como é vão sentar-se para escrever quando nunca se levantaram para viver.” Henry David Thoureau

Lapsos de Tempo #13

Nada é linear

Andar e caminhar sem destino.
Acionar o corpo para privilegiar o movimento nem sempre é fácil. Primeiramente, é sempre interessante encontrar uma boa razão para tal ação. Segundo, é importante pensar em alguns critérios. Terceiro, há de saber como desfrutar destes momentos.
Boas razões temos aos montes. O tédio causado pela vida contemporânea que praticamente nos obriga a interagir com uma tela todo o tempo, a falta de motivação para o lazer ou para o trabalho, um passeio externo para ajudar a arejar a cabeça e as ideias, a apatia da vida comum e monótona que nada traz de novidade, solidão.
Critérios, esses sim precisam ser tidos com mais cuidado. É importante pensar em um local com calçadas largas, quarteirões curtos, comércios, áreas verdes, vestimentas e calçados adequados. Sair sem rumo requer que, minimamente, passemos por paisagens agradáveis, sem grandes monotonias, mas também sem a agitação de um centro urbano densamente povoado. A busca pelo equilíbrio entre algo onde absolutamente nada chama atenção, e de onde existem tantos estímulos sonoros e visuais que chega a doer a cabeça. Lugares com muitos obstáculos tendem a ficar cansativos rápidos demais, com seus desvios e trombadas. É importante esse espaço equilibrado, de respiro e atenção ao infraordinário, às coisas que acontecem e que são de uma grandiosidade comum duvidável. Praças, parques, comércios, cafeterias, lugares comuns, pontos de interesse turístico, obras de arte, calçadas, arquiteturas urbanas que fluem o olhar e os trajetos, barraquinhas nas ruas, rios e canais limpos. Qualquer cena que agrade ao olhar e nos faça ter mais vontade de conhecer cada centímetro dos espaços.
O desfrute é algo que cada sujeito desenvolve por si próprio. Um sujeito enxerga a possibilidade de sair da estagnação quando pensa em se movimentar. Os olhos treinam para enxergar as pequenas coisas do trajeto, os rostos familiares, pixações, bancos, lojinhas, pessoas aleatórias, animais, prédios, praças, áreas verdes… Tudo que pode existir no caminho faz parte do movimento. Há alguns que curtem fotografar algumas coisas que lhe chamam atenção, outros se detém por um momento para desenhar ou versar sobre como se sentem. Outros apenas guardam tudo isso na memória, como algo que foi vivido e que fez parte deste momento do corpo em ação, em uma das habilidades mais básicas do ser humano: caminhar.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 PB

Desimportância

Não importa a passagem dos cursos de água, nem das correntes de vento.
Não importa o percurso de quem caminha ou se locomove na urbe ou na imaginação.
Tampouco importa se haverá onde descansar o corpo, as vistas ou a mente.
Tudo é atropelado e sobreposto em camadas e camadas de informação inútil, que se apodera de todos os campos e não nos fornece muitas alternativas.
Subverter não é ir contra o estabelecido, mas criar caminhos outros apresentando a não-linearidade das formas, sejam físicas ou ideológicas.
Subverter é sair da total desimportância de tudo, que mantém a inação dos sujeitos, para dar importância a tudo que construímos e para um local onde somos alguém, onde somos alguém que desejamos ser. Livres e fortes.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB