Escutar músicas de bandas punk é algo que eu curto desde minha adolescência. Boa parte dessas bandas e suas respectivas letras formaram meu caráter. Felizmente, o caráter é algo que sofre metamorfoses todos os dias, e nem tudo que eu acreditava há 15 anos atrás eu acredito hoje. Muitas ideias e atitudes mudaram com o tempo e eu acho legal que isso aconteça. Acredito que é uma forma de reconhecer a maturidade das ideias, e também de entender que tudo é um acumulado de bagagem teórica e prática que larga mão de alguma coisa para poder acoplar outra que faça mais sentido.
Recentemente, apresentei meu TCC onde reflito um pouco sobre a influência do hardcore/punk/anarquismo na minha vida e nas metodologias de educação contemporâneas. Tentei fazer um estudo sobre educação e anarquismo, mas isso é muito denso para o tempo que eu tinha, portanto eu acabei me concentrando na comparação dos sistemas de educação formais e não-formais em que pude trabalhar, e algumas reflexões sobre os espaços e métodos. Utilizei como referência, principalmente, Ana Mae Barbosa, Paulo Freire e Silvio Gallo, e cruzei temas sobre educação para a liberdade, papel da arte-educação e educação libertária. Meu objetivo era criar uma discussão sobre como ser professor/instrutor/facilitador para formar sujeitos livres. Nesses tempos de quarentena eu irei reformular meus capítulos, e se tudo der certo eu lanço uma edição física e em pdf para poder compartilhar, pois muita gente se interessou pelo tema.
Para começar a discussão coloco uma epígrafe onde transcrevo, de forma literal, a letra “O Poder do Pensamento Negativo” da banda Colligere. Essa talvez seja a letra que mais me provoca no sentido de refletir sobre nossas ações que possuem como finalidade alcançar a “liberdade”. Claro que cada ser, a partir de seus preceitos e conhecimentos, possui um conceito diferente sobre ‘ser livre’, e eu não quero, de forma alguma, impor algo.
“As lições estão no quadro – a salvação no altar
Nós trocamos os desejos por aceitação
Pessoas têm o seu papel – você aprende o seu
Te ensinam o destino, mas não de onde provém
Talvez isso explique a existência de heróis
Pessoas como nunca vamos ser – livres e fortes
Você aprende o que comprar
Para esquecer sua falta de poder e de liberdade
Sua vida vai embora – você reza pro tempo passar
No final, é tudo uma questão de aceitar as regras
Abrir mão de algumas coisas para ter outras
Natureza é conflito. Sociedade é submissão
A conveniência se impõe sobre a liberdade
E o poder se impõe sobre a vontade
Quem constrói a verdade controla sua vida.
Cansados de perder, alguns tentam mudar por dentro.”
Colligere – O Poder do Pensamento Negativo
Essa música abre o álbum “Sobre determinação e desespero”, lançado no ano 2000. Faz 17 anos que essa letra me gera incômodo, pois cada vez que eu escuto, eu compreendo o quão ainda estou longe de ser um sujeito livre. E estando longe de ser um sujeito livre como eu poderia formar sujeitos livres? Ser um sujeito crítico significa ser livre?
Colligere não é bem uma banda punk. É uma banda de hardcore cujas letras me estimulam refletir, pensar, propor e discutir algum tema. É uma chama disparadora de questionamentos sobre diversas situações, e durante muito tempo foi fonte de referências para produzir e para sobreviver. Suas letras possuem fragmentos de diversas obras literárias, de ficções, de teorias, de poesia, de outras músicas, e muitas vezes, ao escutar, você cria as associações: “Esse trecho é de tal livro!”. Já encontrei Fernando Pessoa, Guy Debord, Milan Kundera, só para citar alguns, e tenho certeza de que você encontrará outras referências também.
Durante muitos anos venho analisando as letras de musicas de bandas punk e percebo que elas escancaram realidades cotidianas da sociedade e do sistema politico numa perspectiva muito direta. São letras que citam, reclamam, protestam e que passaram a me provocar um desejo de aprofundar e estudar sobre questões de liberdade, justiça social, política, etc. Na minha pesquisa para o TCC, andei escutando novamente algumas letras e percebi que elas servem como disparador de algo muito maior, que ha alguns anos atrás não compreendia.
A música “Ódio³” da banda Ratos de Porão é algo que exemplifica bem esse sentimento. É um ataque direto às intituições de ensino e religiosas que, apesar de entender, eu discordo. Logo nas primeiras estrofes a letra diz que o sujeito odeia a escola, parou de estudar e que o ensino é uma ditadura cultural. Logo depois os professores são chamados de raça superior, senhores do saber, são odiados e que é um ritual medíocre. Eu realmente entendo esses ataques, e acho que as experiências de cada ser são bem distintas. A Escola é uma instituição que tende a homogeneizar seus alunos, e cada qual que foge da linha sofre punições e restrições, e nenhum tipo de escuta ou empatia.
“Eu odeio escola
Parei de estudar
É inútil prosseguir
A ditadura cultural
Odeio professores
Raça superior
Senhores do saber
Medíocre ritual
Detestar, odiar, desprezar
Detestar, odiar, desprezar
Tudo o que sei
A rua me ensinou
Tudo o que faço
É pra me divertir
Ninguém manda em mim
Falo alto, faço pouco
Não tenho educação
Odeio padres
E a falsa castidade
O voto da pobreza
Do banco Itaú
Odeio igrejas
Imagens irreais
Não atendem os pedidos
Do otário sonhador
Meu ódio é normal
Pode destruir
Ação radical
É o nosso poder”
Ratos de Porão – Ódio³
A música “Sistema de enseñanza” da banda espanhola Sin Dios segue na mesma linha, criticando o sistema educacional, que confina os alunos em disciplinas rígidas, sem lazer, formando pessoas para serem brutas e apenas úteis à sociedade. De fato, boa parte das escolas utilizam o lema “mercado de trabalho” como forma de angariar alunos, e isso transforma todo sistema em uma competição por aprovação. Quantos são os casos de “fracasso escolar” que encontramos na literatura da educação? São jovens que não se adaptam a esse sistema de pressão e disputas e que não entendem que esse sistema não funciona para todos. O sistema impõe e os pais acatam. São poucos métodos alternativos que são acessíveis e/ou públicos, e a maioria dos pais não costumam confiar em educações que prezam pelo crescimento do ser, das relações construídas no dia-a-dia, na prática, na compreensão.
Em diversas oportunidades, o ambiente escolar é comparado com o sistema prisional. Foucault já escreveu sobre essa comparação e ela é realmente muito válida. Foi num dos capítulos do meu TCC em que falo um pouco sobre as oficinas no Sistema Socioeducativo em que trabalhei, onde comparo as diferenças e similaridades da prisão com a escola. Há até um jogo online onde eles mostram um fragmento de foto e você responder se é escola ou se é prisão (depois procurem no Google esse jogo. É difícil diferenciar). Me lembro bem de uma aluna de uma escola do ensino regular/formal, onde já houve vários casos de suicídio e depressão dos alunos, solicitando psicólogo para os alunos e a escola dizendo não ter verba, enquanto que no sistema socioeducativo tinha psicólogo, terapeuta educacional, pedagogo e advogado trabalhando e atendendo os jovens que ali estavam presos. Acho que, apesar de serem abordagens e situações diferentes, ambas instituições deveriam ter profissionais qualificados para atender seu público, pois sabemos que há demanda para o serviço, mas não há boa vontade do poder público.
A música do Sin Dios termina clamando que queimem o sistema burguês de ensino. Antes eu concordava muito com isso, mas depois analisei outros fatores. Imaginando a situação brasileira e a história do ensino no país, devo lembrar que a educação deu início com os jesuítas e, somente com a expulsão deles do país, o estado se viu obrigado a prestar esse serviço. Hoje temos educação privada, religiosa, pública, informal, não formal. Infelizmente, a maioria dos bons projetos educacionais estão concentrados na iniciativa privada, por vezes religiosa, e não é culpa somente dos burgueses. É de todo o sistema. O estado, cada vez mais, sucateia os recursos educacionais, e sobretudo agora, sucateia os lugares de pesquisa e extensão, cortando verbas de bolsas de pesquisadores. As consequências dessas ações políticas são cada vez mais descredibilizar o ensino público e fortalecer o sistema privado. Esse processo ja aconteceu em alguns países, como o caso do Chile, e começamos a ver isso acontecendo atualmente no Brasil, quando governantes propõem sistemas de controle e qualidade da educação através de um processo puramente mercadológico, empresarial. Os projetos de educação não formal/informal também fazem parte desse jogo. O governo não apresenta condições de ofertar e subsidiar projetos e programas, fazendo com que estes dependam de ações de empresas privadas ou sobrevivam através de doações. Contudo, doações nunca são suficientes, o trabalho é bastante insalubre e os profissionais desvalorizados. Os projetos não sobrevivem de forma autônoma, e são poucos que tiveram sucesso nessa linha. A burguesia apenas manipula o sistema para que isso ocorra.
“Desde pequeños ¡domesticación!
Premio y castigo es la educación
Juego en el patio, dura media hora
La disciplina, diez horas mas
Deberíamos quemar todos los colegios
Deberíamos quemarlos ¡ya!
El instituto es otra cárcel
Donde aprendes poco y mal.
Días de examen, selectividad
Algo que pronto olvidarás
Deberíamos quemar los institutos
Deberíamos quemarlos ¡ya!
El sistema de enseñanza
No estimula el aprender
Persigue embrutecerte
Ser útil a la sociedad
Se sumiso y no cuestiones
Acepta la autoridad
Inculto, sigue la norma
No pienses mas que los demás
La facultad, crítica muerta
Profesorado, mediocridad
Los contenidos manipulados
Juegas tu futuro en un tribunal
Deberíamos quemar la universidad
Deberíamos quemarla ¡ya!
Deberíamos quemar el sistema burgués de enseñanza
Deberíamos quemarlo ¡ya!”
Sin Dios – Sistema de Enseñanza
A letra também pontua a necessidade escolar de formar pessoas que sejam úteis à sociedade. E sobre isso eu entendo que “ser útil” significa servir de mão de obra sem questionar, pera seguir alimentando a lógica de produção capitalista, mercantil. Talvez, por essas razões, as áreas de humanas, de criação, artísticas são tão perseguidas e reprimidas, pois são os locais onde se formam sujeitos críticos, pensantes. A metáfora utilizada pela banda Ação Direta na música “A vida sem a arte” é bem certeira nesse sentido. A comparação de uma vida vazia, que apenas segue e obedece é o mesmo que acontece com uma vida sem as artes, fadado ao fracasso.
“Sem forças para arrebentar os elos desta corrente
Nem noções básicas de cultura e cidadania
Milhares de histórias giram em torno do sofrimento
Caminhos que levam ao mesmo destino
Um grito no vazio
Como a vida sem a arte
A mentalidade miserável
O fracasso humano
Representando um universo inexpressivo
Mentes condenadas à ignorância e ao analfabetismo
O exército se multiplica por todos os lados
Só a esperança mantém os oprimidos respirando.”
Ação Direta – A Vida sem a arte
A Escola deveria ser um ambiente de desenvolvimento dos sujeitos, formação de seres livres, críticos, pensantes. Mas como se compreender como anarquista (ou próximo disto) e sempre depender do estado ou de investimento privado para conseguir este objetivo? Parece contraditório e nós temos que conviver com nossos conflitos conceituais enquanto tentamos alternativas. A música “Fator Crucial” da banda Ação Direta me abriu um pouco a percepção para discutir um pouco isso. O estado, como um ator politico, consegue alcançar lugares que nem imaginamos, e se não fosse por isso, o acesso à educação seria muito mais limitado. Por mais que eu discuta muito a função do estado, eu entendo que o sistema educacional estatal é muito necessário, pois é onde outros sujeitos têm contato com informações que não chegam de forma satisfatória na zona rural, por exemplo. Certo que hoje existe a internet, e que tudo anda muito mais conectado, a informação corre rápido, mas eu acredito no papel do professor como elemento disparador de ideias.
As licenciaturas possuem esse papel de transformar o professor como alguém que está ali para formar pessoas. Recentemente, trabalhando para uma ONG, eu visitei várias escolas em diversos interiores e zonas rurais, e eu vi muito mais coerção religiosa e moral do que libertação. São regiões muito mais conservadoras, e aqui eu caio em outra contradição. A educação que eu acredito é a mesma que essas pessoas também acreditam? Quando criticamos a educação, que tipo de situações criticamos? É nosso dever ir em todas as escolas apontar o dedo para os “erros”? Esse tipo de educação funciona para eles?
“Um país mais rico que alfabetizado
Uma nação tão desigual
Nenhum investimento, nenhum incentivo
Desperdício de potencial
Sem aprendizado, sem cidadania
Caótico quadro social
Exclusão do mundo letrado
Cidadão humilhado
Nas zonas urbana e rural
Alfabetização crucial
Distantes do sonho de primeiro mundo
Sem projetos para a educação
Falência do ensino, ausência do estado
Reflexos da degradação
A arma, o crime, novas referências
Agravando a situação
Futuro incerto, gerações condenadas
Carentes de proteção
Exclusão do mundo letrado
Cidadão acuado
Nas zonas urbana e rural
Alfabetização crucial
Figuramos entre as maiores economias do mundo,
Mas ainda possuímos um dos piores
Quadros sociais, ultrapassando a marca dos
15 milhões de analfabetos
Além de ser um direito
Assegurado pela constituição
A educação é um fator crucial responsável pela
Dignidade do povo e pelo
Desenvolvimento da nação
Exclusão do mundo letrado
Cidadão discriminado
Revolução educacional
Alfabetização crucial”
Ação Direta – Fator Crucial
Sempre fico em dúvidas se entro nessa questão e quero deixar bem claro que isso é o meu ponto de vista. Em várias destas letras que expus acima, a religião é criticada e esse é um ponto em que eu concordo veementemente. Religiões, não importa qual, são carregadas de morais e costumes, e associar a moral religiosa com a liberdade, que a meu ver são antíteses, se tornam um erro. Claro que isso é apenas um ponto de vista, e estou aberto a discussões, e sei que existem pessoas que buscam a liberdade através da religião. E meu questionamento está nesse processo: A religião se torna um meio de buscar a libertação, ou o sujeito entende que a liberdade é o que determina a religião?Acho que são pontos de vista bem distintos e não irei aprofundarme nessa questão agora.
O importante é compreender como traçar um caminho para uma libertação pessoal. Para desenvolver-se como sujeito pensante e crítico é interessante manter um processo de reflexão sobre vários temas, e associar com tudo que possa conectar com tal assunto. Ler, produzir arte, escrever, trabalhar o corpo, todas essas são formas de disparar perguntas sobre o que estamos fazendo. Pensa e atua dizem os anarquistas. Como você recepciona as informações? Você ignora, você pensa, você associa, você discute ou propõe ações para alguém?
A música “Leer para luchar” da banda Sin Dios parece ir nesse caminho. Pensar e atuar, produzir, discutir, ler e mudar conceitos. Aplicar seus conhecimentos para melhorar a vida comum, para tornar sujeitos livres.
“Si sólo repites consignas
Es que no sabes nada
Si sólo sabes de memoria
Una marioneta serás
¿Cómo entenderás
Un mundo tan complejo
Si escuchas solo
Lo que quieres oír?
Crece, aprende, instrúyete
Fórmate, estudia
No hay que perder
Historia, novela,
Poesía o ensayo
Fanzines, prensa,
O contra información
¿Cómo entenderás
Un mundo tan complejo,
Si escuchas sólo
Lo que quieres oír?
Leer para crecer
Leer para luchar
No te autocensures
La curiosidad te debe guiar
Un pueblo formado es
Lo que más detesta el poder
Leer para crecer
Leer para luchar
Leer para entender
Leer y ser libre
La complacencia es
Ignorancia
Gritar por gritar
Es mas bien rebuznar
¿Cómo entenderás
Un mundo tan complejo
Si escuchas sólo
Lo que quieres oír?
¡¡Lo que quieres oír!!”
Sin Dios – Leer para luchar
Concluindo essa pequena reflexão, penso que toda ação merece uma discussão mais profunda. Compreender o papel do educador/professor/facilitador e como lograr algum objetivo é uma tarefa importantíssima e depende muito de discutir propostas entre diversos atores. O que dá certo e o que não dá certo, tentativas, erros e acertos, o que existe de produção literária sobre o assunto, como difundir a informação? Fico pensando que o que chamamos de “movimento punk“ já está em uma curva decadente no gráfico. Muita gente envolvida não tinha noção do que estava fazendo ali, e muito material produzido é muito razo ou não condiz com o que o movimento propõe. No final das contas, quem faz o movimento? Quem acredita no movimento? Quanto mais bandas surgirem e discutirem o sistema educacional de uma forma mais profunda e coerente, sem apenas julgar o que já existe, acredito que conseguiremos chegar a uma certa liberdade. O que almejamos é um bem comum, cidadãos que se apoiem mutuamente e a educação é o primeiro passo para esta finalidade.
“Essa é a nossa contra cultura
Mais participação, menos expectativa
Centenas de pessoas envolvidas
Meia dúzia de sempre que organiza
É mais fácil do que pensam
Faça você mesmo
Não seja um mero expectator
Faça você mesmo
Não seja um mero expectator
Atue e conteste”
Discarga – Contra Cultura
Você que leu até aqui, teria alguma indicação de bandas ou músicas que tratem do tema? E de literatura? Me dá ideia. Estou com as ideias em aberto e gostaria de continuar pesquisando. Comente algo sobre o texto. É a melhor forma de propor algum diálogo e até, quem sabe, promover uma mudança de paradigmas.