Brinco
Quando eu era pequeno eu decidi colocar um brinco na minha orelha. Foi uma decisão bem difícil, eu fui apoiado pelo meu pai, mas não fui pela minha mãe. Minha ideia era simples, colocar um brinco de argolinha com um pequeno crucifixo pendurado, pois era assim que o Romário usava. Era meados dos anos 90 e essa moda imperava naquela época.
Na minha cabeça ia dar tudo certo e eu passaria a jogar bem futebol e a parecer marrento e folgado nas fotos de família. Os paparazzis conhecidos como “minhas tias, tios, primos e amigos” iriam adorar minha pose. Pensando agora, talvez eu tenha ficado com uma vibe mais Vitin Avassalador Sou Foda, mas sei lá, na época eu nem sabia da existência desse sujeito.
Eu poderia dizer o dia certo em que fomos na farmácia, mas podia ser qualquer dia, afinal, meu pai e eu fomos na farmácia do bairro durante uma tarde buscar quem furava orelha e se tinha como furar com argola. Para minha tristeza e decepção, não tinha. Conversando com o funcionário da farmácia, descobrimos que não tinha como. Na farmácia eles utilizam uma pistola de pressão para fazer o furo, e ela somente funciona com brincos pequenos e retos. Minha primeira frustração. Apesar disto, escolhi o brinco com a pedra preciosa mais bonita (pois todas as opções haviam pedras brilhantes no brinco) e fui para os fundos preparar meu lóbulo para receber o impacto da pistola.
O processo é doloroso, mas é bem rápido. Você meio que escuta as camadas sendo perfuradas e atravessadas. O processo é veloz, mas agora parece que foi em câmera lenta. Saí da salinha dos fundos para mostrar para o meu pai o quanto eu estava estiloso e marrento. Agora ninguém me seguraria, eu estava Foda!
Enquanto meu pai pagava pela aplicação, eu escutava atentamente os cuidados que eu deveria ter para uma boa cicatrização. Me lembro de ouvir atentamente o funcionário dizer que eu deveria rodar várias vezes ao dia para cicatrizar bem. Eu levei a sério. Rodava enquanto andava, enquanto dormia, enquanto tomava banho, enquanto estava na escola, enquanto fazia o dever de casa ou brincava com meus amigos. Eu estava dedicado a ter um brinco estiloso, todos meus amigos tinham, e eles eram super estilosos.
O único problema de falar dos cuidados com uma criança, é que ela não faz a menor ideia do que o funcionário disse. Ela não guarda esse tipo de informações e acha que pode fazer qualquer coisa estranha. Claro que eu não entendi que era para rodar o brinco, eu não era esperto o suficiente para isso.
Ao sair da farmácia, comecei a caminhar na rua com meu pai e, de quando em quando, eu dava voltas em torno de mim mesmo. Meu pai ficou sem entender. Mas eu caminhava, girava em torno do meu próprio eixo, e continuava caminhando. Meu pai deveria pensar que era coisa de criança brincando sozinha e viajando na maionese. Foi um comportamento peculiar.
Eu girava em torno do meu próprio corpo várias vezes ao dia, me dediquei profundamente à esta tarefa. E o resultado foi nada surpreendente. O brinco grudou na minha orelha, pois a cicatrização ocorreu e colou o objeto lá. Foi horrível, estava muito preso e ninguém conseguia removê-lo. Por sorte, uma vez em um clube, minha tia que tinha a unha muito grande, conseguiu agarrar o objeto e usar toda sua força e jeito para remover o brinco da minha orelha. Rendeu uma ótima foto minha criança, mostrando a orelha com a língua para fora. Pena que a foto é distante e estes detalhes não são óbvios por quem não conhece a história.
O brinco não deve ter durado um ano sequer, eu nunca tive a argolinha com crucifixo pendurado e até hoje não sei jogar futebol. Ironia do destino ou autosabotagem?
Nunca saberemos. Mas ficou a lição de que crianças entendem o que querem, e eu nunca questionei o fato do giro corporal em volta do próprio eixo auxiliar na cicatrização de um brinco na orelha.
Vai entender…







