Experiência com a morte

Foi a primeira vez que ouvi falar dessa experiência. Poucas pessoas tiveram a chance de presenciá-la. Não estou dizendo que é algo belo ou confortável, e que todos precisam passar por isso. Só quero narrar um pouco do que foram esses momentos que, seguramente, me marcarão por toda a vida.

Ano passado, 2020, no princípio da pandemia, minha avó materna faleceu. Ela estava internada em um hospital, e vários de seus filhos e uma de suas netas (minha irmã) estavam no revezamento para acompanhá-la. Ela deixou esse mundo enquanto minha irmã segurava suas mãos. Ela morreu de morte natural, já tinha bastante idade e muita experiência de vida. Minha irmã acompanhou todo o processo e me disse que é um momento muito diferente, que nos muda. Presenciar uma morte natural talvez seja comparado ao momento do nascimento. Os dois opostos deste tempo em que uma vida existe.

No decorrer de 2020, meu pai desenvolveu um tumor maligno na cabeça do pâncreas. Ele perdeu muito peso, e os primeiros sintomas, icterícia principalmente, apareceram por volta de outubro. Em novembro veio a primeira internação. Os médicos ainda não tinham muita certeza, ou não nos falavam muito bem o que estava acontecendo. Pesquei algumas conversas entre eles enquanto acompanhava meu pai, e o termo “neoplasia periampular” começou a surgir. Pesquisando na internet, descobrimos que o o termo diz respeito ao câncer de pâncreas, cujos sintomas aparecem já em estágio avançado e a maioria dos pacientes possuem uma sobrevida média de 6 meses depois do diagnóstico. Há aqueles casos de pessoas que vivem 10 anos, mas é raro.

Com isso em mente, o desespero e a tristeza fizeram parte de nossas vidas durante esse tempo. Foram várias consultas e exames, algumas endoscopias e a colocação de duas próteses para manter o sistema digestivo tentando funcionar. Os médicos chamavam isso de “dar qualidade de vida” ao paciente. Talvez esse termo fale sobre ter os familiares por perto, porque desde o diagnóstico até seu falecimento, meu pai não teve descanso e nem paz. Começou com o estômago acumulando alimentos e líquidos, expandindo e pressionando outros órgãos. O duodeno, que estava com uma prótese para desobstruir a passagem de alimentos, não funcionou muito bem, e começou a vazar líquidos para fora do sistema. O pâncreas começou a atrofiar. Dores na lombar o incomodavam a ponto dele não achar posição para ficar, nem em pé, nem sentado e nem deitado.

Foram meses sem dormir, sem comer, sem beber, com muitas dores, sem conseguir se locomover direito. No princípio de janeiro, já raquítico, sem musculaturas, sua audição e fala foram comprometidas. Seus olhos já aparentavam estar afundados no crânio, seus ossos estavam muito salientes. Em janeiro, houveram mais duas internações. Acompanhamos todo o processo de perto. Eu o visitava todos os dias, ainda que ele dormisse a maior parte do tempo. Eu tinha muito medo dele não acordar. Estávamos cientes de que esse dia poderia chegar a qualquer momento. Eu abri mão do meu trabalho, e apenas produzi o que estava ao meu alcance. Havia algo mais importante acontecendo.

Na terceira internação ele já estava muito debilitado. Ficava confuso e disperso, ficou com a locomoção completamente dependente de terceiros. Ele não achava posição, e mudava a cada cinco minutos. Levávamos ele da cama pro sofá, do sofá pra poltrona, de volta pra cama. Ele dizia que não sabia o que queria, mas o ajudávamos mesmo assim. Houve pequenos conflitos entre a gente, normais nestas situações. Já andávamos desgastados dessa maratona de cuidados e dedicações.

A cada momento surgia uma nova questão. Desde outubro ele desenvolveu anemia, diabete tipo 2, infecção abdominal, princípio de trombose, inflamações diversas, embolia pulmonar, enfisema pulmonar. Nós entendemos que isso é o corpo parando de funcionar aos poucos. O médico nos disse que a situação dele era gravíssima. T4N2M1 no primeiro diagnóstico. Essa classificação piorou com o tempo.

Na noite do dia 24/01 o colocamos para deitar. Estávamos eu, minha irmã e minha mãe no quarto. Meu pai era um paciente em estado terminal e nos foi autorizado ficar com ele. O primeiro turno acordado era o meu. A madrugada chegou, e por volta das 2h já do dia 25, meu pai levantou a mão. Ele não conseguia falar muito bem, e muitas coisas eram feitas por gestos. Eu fui até ele e ele me disse que queria “dormir”. Falou duas vezes e foi isso que eu entendi. Ele queria levantar, ele queria sentar, ele queria ficar de pé. Ele queria descansar. Tanto tempo privado do sono, e ele precisava desse descanso. Minha irmã acordou e eu fui deitar. Ele estava com algumas sondas entrando pelo nariz, mais o acesso de soro e medicamentos nas mãos. O acesso que teve que ser feito e refeito várias vezes, pois as veias estavam muito finas e não corriam mais sangue. Minha irmã falou com ele que não iria levá-lo pro sofá porque estava inviável. Todas as vezes era muito sacrifício para ele, ser carregado, a gente sem jeito, muitos equipamentos para levar junto.

Ela subiu o encosto da cama e ele se sentou. Sua respiração estava ofegante. Dava para perceber que o ar não estava chegando onde deveria. Eu estava deitado em uma poltrona reclinável que o enfermeiro trouxe. Eu estava de frente para ele. Ele estava olhando a janela, e sua respiração estava forte, como quem fazia muito esforço para conseguir puxar o ar. Ele ficou imóvel das 2:30 às 7:30. Durante esse tempo eu o observei por cada segundo. A frequência da respiração foi ficando menor, cada vez mais. O enfermeiro disse que esse estado chama “estado agonizante”. Não sabemos muito bem se ele ainda estava consciente, ou se já tinha ido. De qualquer forma, o enfermeiro aplicou mais uma dose de morfina, para ele não sentir dores. Esse é o estágio final antes de ter o óbito declarado.

Meu pai faleceu na manhã de segunda, dia 25/01. Ele estava olhando para a janela e viu o sol nascer. Essa simbologia foi muito forte para mim. O nascer do sol tem algo de “um novo mundo”, de uma renovação das experiências, das ideias, das lutas. Ali no horizonte onde ele surge, iluminando cada parte da paisagem, indicando o novo dia.

Os simbolismos ficaram muito presentes no decorrer destes dias. Até os astros se mostraram simbólicos para mim, mas não irei prolongar sobre isso. Presenciar uma morte foi algo muito forte, cada cena está marcada na minha memória. Fico satisfeito de ter conseguido despedir dele, e dizer o quanto eu o amava. Cada dia do processo foi doloroso para nós, e aqui neste texto não é possível descrever com precisão tudo o que passamos. Não acredito em vida antes ou depois da morte, acredito neste tempo em que vivemos e em como aproveitamos nossa estadia. Fora disso são outros quinhentos. Me apego a ideia de que meu pai descansou e teve paz de todo os meses de sofrimento e dores e internações. Talvez as dores maiores são as de quem fica, pois não teremos mais a sua presença física, apenas as memórias. E nesse momento é importante ressaltar a presença da família, de amigos e de pessoas próximas. Fazem muita diferença.

Presenciar um processo de morte, experiência marcante. Escrever sobre o processo me traz lágrimas e lembranças, boas e ruins. Faz parte da vida também.

Experimento simples sobre a relação entre observar e desenhar

Se existe algo que eu defendo enfaticamente no mundo da arte, é que não existe uma fórmula secreta para ensinar arte. Não estou falando de teoria, estou falando de prática. Por mais que existam fundamentos técnicos que ajudam, e muito, na hora de desenhar (como perspectiva, luz e sombra, proporção, textura, etc), nada vai te fazer evoluir tanto quanto o poder da observação e da experiência.

Por favor, não quero que com esse post passemos a hierarquizar os estilos de desenhos, ou a dizer se são infantis ou profissionais, não vem ao caso. Eu sou a favor de que todos sabem desenhar, mas falta experiência e observação para que possamos mudar nosso modo de desenhar. Já escutei muitos adultos dizendo que não sabem desenhar, e quando tentam colocar alguma coisa no papel, apenas conseguem rabiscar aqueles desenhos bem infantilizados, de coisas que fizemos na pré-escola e que, sinceramente, não lembro de termos visto com nossos próprios olhos: uma casa com uma chaminé, uma macieira, um barco a vela…

Nosso primeiro instinto é desenhar essas coisas, porque é o que ficou registrado em nossa memória, e quando falamos em desenhar, resgatamos essas memórias de desenhos que fazíamos quando éramos crianças. Com o passar do tempo, essas experiências de desenho são, cada vez mais, colocadas de lado para a maioria dos jovens, pois na escola e na vida, outras áreas de conhecimento são colocadas como prioridades.

Destaco aqui o fator memória, pois é aqui que aprendemos realmente a desenhar. Todo desenho que fazemos depende da memória, do quanto registramos a imagem do objeto em nosso cérebro. Eu olho para uma árvore, por exemplo, e vejo características bem diferentes em relação ao desenho de uma macieira que eu aprendi a fazer quando criança. O formato da árvore é diferente, o tronco é diferente, os galhos e as folhas também são diferentes. Eu nunca vi uma macieira, mas meu desenho de memória é uma macieira. Hoje, quando observo, eu observo outra árvore, uma jaboticabeira (é o exemplo mais próximo que eu tenho). A jaboticabeira tem o tronco estreito, alongado, com manchas. As frutas nascem por todo os galhos. As folhas não são tão abundantes, e não tem nada a ver com uma macieira, nem com o desenho que eu aprendi de uma macieira.

Se eu observo os detalhes de uma árvore qualquer, vejo que cada árvore possui suas próprias características, e essas observações ficam registradas na minha memória para que eu possa desenhar essas árvores em outro momento.

Assim funciona qualquer desenho. Quando eu faço um desenho de observação eu não desenho o que estou vendo, eu desenho o que ficou registrado na minha memória sobre o que eu vi. Eu olho para o objeto, registro na memória e tento reproduzir no papel. Todo desenho é um desenho a partir da memória.

Recentemente, fiz um experimento simples para poder exemplificar o que estou dizendo. Minha esposa diz não consegue desenhar e nunca usou uma mesa digitalizadora (dessas pra desenhar no computador), mas começou a fazer alguns desenhos no Photoshop. Ela fez um prato com bolinhos de falafels, e eu não consegui deduzir o que era (Imagem 1). Logo após, ela fez um sanduíche de falafel, supondo que eu acertaria o desenho, mas eu achei que fosse um rolinho primavera (Imagem 2).

falafel1
Imagem 1

falafel2
Imagem 2

Constantemente ela me dizia que não conseguia desenhar, que não possuía coordenação motora para a tarefa, e eu propus um exercício bem simples.

Busquei no Google uma imagem de um sanduíche de falafel, abri a imagem no Photoshop e pedi para ela desenhar por cima da fotografia (Imagens 3 e 4).

Ultimate-Baked-Falafel-Wraps-with-Citrus-Tahini-Dressing
Imagem 3

falafel4
Imagem 4

Logo depois, abri um arquivo em branco e pedi para ela desenhar um sanduíche de falafel só com as informações que ela possui na memória (Imagem 5).

Imagem 5
Imagem 5

Nota-se que o último desenho do sanduíche de falafel possui uma riqueza de detalhes muito maior em relação ao primeiro sanduíche de falafel. Isto é explicado com o fato de que o último desenho foi feito com a memória do desenho feito por cima da fotografia, onde observou-se os detalhes do alimento, onde tem falafel, onde tem molho, onde tem folhas, onde está a massa enrolada. Quanto mais o objeto é observado e quanto mais uma pessoa tenta desenhar com as informações registradas na memória, mais parecido com a realidade o desenho ficará.

O ato de observar e contemplar um objeto ou uma cena está diretamente relacionado com o ato de desenhar. É na observação que registramos os detalhes em nossa memória, e é na contemplação que esse registro ganha significados. O poder da experiência consiste nessas práticas. Quanto mais você observar um objeto/imagem/cena, mais registros você terá em sua memória para depois poder reproduzir ou criar sem referências visuais dos objetos. Eu garanto que o sanduíche de falafel nunca mais será o mesmo depois desse experimento, e os próximos passos são compreender a parte técnica (textura, cores, luz e sombra, proporção, perspectiva, etc), mas aí já é outra história.