Lapsos de Tempo #21

Paz

– Já separei todas as minhas roupas brancas pra celebrar a virada do ano.
Mas porque brancas?
– Porque eu desejo a paz mundial pro ano de 2026!
Poderia explicar a relação entre essas coisas?
– Claro. É super simples. As cores simbolizam nossos desejos para o próximo ano. O branco simboliza a paz. O amarelo é a riqueza. O rosa a felicidade. O vermelho é a paixão. O verde é a esperança. O violeta é inspiração. O azul…
E se você escolhe uma cor, isso quer dizer que todas os outros desejos para o próximo ano ficam em segundo plano?
– Como assim?
Se você escolhe a paz, a felicidade fica em segundo plano? Você abriria mão da sua felicidade ou da sua riqueza se isso possibilitasse a oportunidade de garantir a paz?
– Não é assim que funciona!!
E como é?
– Você veste uma cor que vai apenas simbolizar algo que você quer. Não é uma regra…
E não se pode simbolizar de outra forma?
– Você pode mentalizar alguma coisa também.
E como se mentaliza a paz? O que significa paz?
– Paz é uma situação em que não há estresse, nem violência, nem medo, nem guerras, nem massacres. Todo mundo viveria em paz.
E você teria disposição de abrir mão de qualquer outra coisa para que a paz possa existir?
– Como eu te disse, é apenas simbólico.
Se é apenas simbólico, pra que desejar algo?
– Porque funciona como um rito de passagem, é tradição. Ano novo, vida nova.
Mas se não fazemos ativamente algo para que nossos desejos possam se realizar, de que adianta tudo isso? É só mais uma desculpa pra gastar dinheiro com roupas novas e ficar com a consciência limpa durante a virada.
– Que chatice hein?
Coitado de quem é daltônico, que vai errar o que quer simbolizar enquanto desejo pro próximo ano. Mais fácil vestir preto ou branco, todas as cores ou ausência de cores.
– Affe…

La Idea, 2024 – Olympus Pen-EE, Kodakcolor 200

Último post nesse blog em 2025. Um ano que profissionalmente foi uma merda. Muito aquém de tudo, vários prejuízos em feiras (que eram meu lugar seguro de vendas), lojas de silks deixando de vender as coisas que eu preciso pra trabalhar, vários trabalhos cancelados, dificuldades com agenda, hérnia de disco… Enfim, uma série de coisas que não foram tão legais. Não consegui ler muito, não consegui me engajar na academia, perdi muitos prazos e não dei conta de realizar muitos projetos. Termino o ano num baixo astral enorme, sem cabeça para lidar com várias questões, dívidas de empréstimos, calor, capitalismo, enfim, coisas demais.
Com a mudança de ano surgem os planos, de fazer novas coisas, de fazer diferente, e de tentar depender menos de vender a produção. Tirando as feiras em que já marquei fazer, pode ser que em 2026 eu não circule tanto como em 2025. Acho que preciso colocar os pés no chão e repensar um pouco meus trajetos.
O primeiro é ter mais tempo pra minha pesquisa. Desde que terminei o mestrado eu não consegui fazer mais nada em relação à isso. Acho que em 2026 preciso me organizar melhor, voltar a ter ritmo de leitura, de fichamentos, de reflexões, pra construir um projeto e tentar ingressar em um programa de doutorado.
O segundo é voltar a publicizar as aulas de linoleogravura. Tive alguns alunos em 2025, e acho que foram experiências bem legais. Inclusive, tentar gravar mais vídeos pro youtube, igual fiz no início de pandemia. Acho que eram atividades interessantes e que circularam bastante nas redes.
Em terceiro lugar, eu realmente preciso cuidar da minha vida social. Entre neuroses, inseguranças, baixa-auto estima e um certo desinteresse em fazer algo, preciso sair mais de casa e do meu atelier. Tenho ficado muito tempo aqui, e isso pesou muito nesse fim de ano.
Em quarto, tentar escrever mais e, por consequência, criar publicações com isso. Eu que comecei a escrever porque minha cabeça não andava boa lá em 2017, 2018, acabei gostando demais desta atividade. Esse ano eu acho que postei pouco, escrevi pouco, mas vou tentar ser mais ativo em 2026, materializar essas coisas que estão somente no blog.
Enfim, a hérnia de disco me deixou até repensando se trampar tanto com serigrafia seria uma boa. Isso pesou bastante nos últimos dois meses, vários serviços atrasando, acumulando, enfim, complicado manter a rotina. Então pode ser que isso não seja algo tão frequente em 2026.
Mas é isso, gostaria de agradecer todo mundo que esteve junto em 2025, e que em 2026 possamos nos aproximar mais ainda.
Se quiser deixar uma mensagem aí nos comentários, sinta-se a vontade preu saber que você leu isso, e que você está comigo nessa jornada chamada vida.
Um grande beijo e um grande abraço.
Até 2026.

Lapsos de Tempo #20

Volta

A primeira é suave, você concentra seus esforços em movimentar as pernas da maneira correta. Direita, esquerda, direita, esquerda… A cada perna uma força maior. Você respira fundo, faz cara feia, o ar entra forte, sai pesado.
A segunda ainda é tranquila, já venceu a inércia e agora só precisa aumentar a rotação. Os pés presos permitem que o movimento seja contínuo. A perna esquerda ajuda a direita, e vice-versa. Você ajusta o corpo e respira fundo.
A terceira começa a pesar. A relação fica mais pesada, aparecem as dores nas panturrilhas e nas coxas, a velocidade precisa aumentar de maneira exponencial.
A quarta é controle de respiração puro. Você puxa bastante ar enquanto tenta ignorar as dores das pernas. A velocidade já está alta, agora você só precisa controlar o equilíbrio com cada vez mais rapidez. Você corta o vento e o vento te corta igual. A cada minuto essa barreira fica para trás.
A quinta é adrenalina. Você já tem velocidade o suficiente para fazer curva em um paredão a 45°. A lateral de seu corpo fica quase paralelo ao chão, mas a força centrípeta te mantém no trajeto, sem perder a velocidade.
A sexta você já alcançou 60 km/h. Suas pernas estão latejando, seus olhos lacrimejando por conta da resistência do ar, você já está muito ofegante, mas não consegue parar.
A sétima você alcança 65km/h, está tão rápido que qualquer momento com perda de foco significa um acidente. Você enxerga o trajeto e se concentra, mantém a atenção.
A oitava você não sabe mais qual velocidade está. Na sua visão periférica vários riscos e manchas que sugerem que há algo ali, tudo passa rápido. Você mira apenas na pista, enquanto sente seu quadríceps explodir simbolicamente em dores absurdas.
A nona, você entende que não consegue mais respirar, suas pernas doloridas começam a falhar, é impossível imprimir mais força na rotação. Seus batimentos estão no ápice, fortes e rápidos.
A décima, na hora da curva, você sobe o paredão de 45° e a velocidade reduz instantaneamente. Você sobe, olha pra pista, respira rápido tentando retomar uma certa normalidade, as pernas não respondem tão bem por algum tempo. Foram 2 km intensos.
As próximas voltas serão suaves, tranquilas.
Em breve tudo se repete.

La Idea, 2024 – Olympus Pen-EE Kodakcolor 200

Lapsos de Tempo #19

Amor

Você me ama?
Acho que sim.
Você acha que me ama?
Hmmm, acho… Bom, primeiro, talvez, preciso que você defina o que você entenda que seja amar. Para saber se eu te amo nos termos que você entende como amar.
Amar é… é um sentimento muito forte que você tem por outra pessoa, a ponto de querer fazê-la feliz e estar sempre próximo.
Hmmm…
Sabe? Querer viver a vida com essa pessoa em toda sua plenitude, ser feliz juntos.
Bom, tenho minhas dúvidas se penso como você. Acho que amar, na minha concepção, trafega em outras vias.
Como assim? Você ama diferente?
Não que eu ame diferente. Mas acho que amor vai além de querer fazer alguém feliz, ou querer passar a vida com ela.
O que é amar para você?
Acho que para mim o amor é um sentimento muito forte, como você disse, mas extrapola a questão da felicidade ou da companhia.
Como assim?
Acho que se uma pessoa ama outra, ela não precisa fazê-la feliz ou querer toda a plenitude da convivência e do afeto, mas também estar plenamente satisfeito com a felicidade da outra.
E como isso se diferencia?
Acho que se você está feliz, independente do motivo, isso me traz um sentimento alegre, pois eu te amo a ponto de desejar que você seja feliz. E felicidade pode vir de qualquer forma. Podem ser relações sociais, profissionais, viagens, habilidades novas adquiridas, preocupações, cuidados, um momento em que você se sentiu bem, um abraço em qualquer momento e por qualquer motivo, uma pintura bem feita, um livro lido que foi tão bom a ponto de te fazer olhar para o céu por um instante imaginando os personagens na vida real. Se essas coisas te fazem feliz, isso me deixa feliz. E isso me satisfaz enquanto prática do amor.
Mas se você define assim o amor, porque uma pessoa decide se relacionar com alguém por um longo tempo, namorar, morar junto, essas coisas? Isso não é amor?
Acho que sim. Todas estas práticas talvez façam sentido se existe um sentimento mútuo que surge quando compartilhamos as nossas vidas. Acho que o amor permeia esses rios. Em vidas compartilhadas ambas pessoas deveriam desejar a felicidade da outra, e das outras em um contexto mais amplo. Acho que uma forma de pensar e agir não deve se sobrepor à do outro, muito menos largada nas mãos do outro como se lidar com as questões individuais fosse um dever do outro, sabe?
Como assim?
Ahhh, tipo se pensar em ciúmes, por exemplo. Ciúmes é um sentimento que todas as pessoas sentem, sem exceção. Eu sinto, você sente, e todas as pessoas ao nosso redor sentem. E esse sentimento chega em maior ou menor grau. A questão que eu penso é que meus ciúmes devem ser lidados por mim, e não por você. O ciúme nunca deixará de existir, ele pode incomodar bastante e fico pensando em como lidar com isso… Eu posso tentar encontrar o que me causa ciúmes, posso verbalizar isso para você. Mas quem precisa encará-lo de frente sou eu.
Mas se isso fosse uma regra as pessoas não se relacionariam. Os ciúmes existem porque o outro nos causa algo.
Mas esse algo tem a ver com o quê? Insegurança?
Pode ser que sim…
Mas a insegurança é sua. Se a nossa relação, nosso convívio, nossa história, e todos os sentimentos que lidamos mutuamente não são suficientes para que você lide com essa insegurança, eu preciso abandonar minha felicidade por você? Você não se sente feliz ao me ver feliz? Você não é feliz?
Sim, mas, pode ser por medo também.
Medo de que?
Da perda, por exemplo.
Perder a relação? Perder algo que é ou era muito bom? Acho que nos resta entender que as relações vêm e vão. A cada momento faz sentido estar mais próximo de alguém, isso não é algo fixo. Pode ser por um tempo curto, podem ser por várias décadas. Cada pessoa tem seu tempo. As pessoas que eu me interessava na adolescência não são as mesmas pelas quais eu me interesso hoje. O fluxo da vida exige esse tipo de trânsito. A metáfora que eu uso é a da estrada ou das ruas. A gente as segue, vamos fazendo nosso caminho. E outras estradas e ruas vão cortando esse nosso trajeto, encontrando, desencontrando, indo junto, separando… Acontece. A perda também faz parte da ação amar. Entender e deixar ir…
Mas eu quero ser o motivo da sua felicidade. Eu quero te fazer feliz! Isso é amor.
Você quer ser um dos motivos da minha felicidade, mas é impossível você ser o único motivo, a única razão. Se eu reduzir amar ao que sinto por você, ou ao sentimento que você causa em mim, você está me dizendo que eu deveria ser triste em todos os outros aspectos da minha vida. Isso é muito injusto comigo. Isso não é amor.
Não é ser a única razão, mas ser a mais forte.
Eu não consigo entender as razões enquanto uma competição de importância na felicidade de alguém…
Hmmm… Mas então, você me ama?

La Idea, 2025 – Olympus Pen-EE, Fomapan 100 PB

Lapsos de Tempo #15

Passeio

Vejo o que ele tem na mão, me animo. Me vem uma felicidade extrema que não consigo me conter. Vou até ele e sinalizo que concordo com sua atitude. Ele coloca algo no meu pescoço enquanto olho para o Breno ao meu lado querendo que seja feito o mesmo com ele. Nós, afobados, saímos correndo até a porta de vidro. Ele abre e, por mais que façamos força, não conseguimos correr livremente. Vamos tentando caminhar, mas Breno não consegue andar em linha reta e toda hora me fecha. Breno também faz com que nossas guias se enrosquem, e isso dificulta o andar. De vez em quando eu perco a paciência com Breno, mesmo ele sendo muito maior que eu. Eu cheiro alguns lugares, ele vem atrás de mim fazendo o mesmo. Fico me perguntando se ele tem a própria personalidade e interesses. Deixo um pouco de urina por onde passo. Gosto de marcar alguns lugares e deixar registrada a minha presença ali. Breno me imita em tudo. A cidade é viva, e nós que fazemos ela viver.
Vejo algumas coisas no trajeto, cheiro e não me agrada muito. Já Breno morde tudo antes de saber o que é. Ele morde, baba e cospe fora, não possui muitos critérios. Seguimos pela avenida vendo todo o movimento de automóveis barulhentos, ao mesmo tempo que acompanho o voar silencioso de uma borboleta. Isso me detém um pouco no processo de contemplação. Breno não enxerga nada disso. Passa por cima de qualquer coisa que está no seu caminho.
Na esquina um cheiro chama a minha atenção. Percebo que Breno sentiu a mesma coisa. Nos entreolhamos e fomos correndo, forçando o chão para chegar lá o mais rápido possível. Era um gramado a meia altura, recém cortado, cheirinho de mato molhado, algumas flores solitárias enfeitavam. Eu olhei para Breno, ele me olhou. Fomos até lá, subimos, cheiramos o melhor ponto possível, demos duas voltas em torno de nós mesmos e soltamos o som mais gostoso do mundo: “-ahhhhwwwwff!”.
Sim, o único em que concordamos é que cagar na grama é o melhor momento do dia.

Olympus Pen-EE – Shangai GP3 100 PB – La Idea, 2023


Horizonte

Quando estou caminhando, correndo, pedalando, me locomovendo de uma maneira geral, olho para o horizonte. Acho interessante como que as coisas no primeiro plano passam de maneira muito mais rápida que o fundo da cena.
Fico pensando no que são nossos sonhos, desejos, o que queremos e o quanto nos propomos a buscar o que almejamos.
Fiquei pensando nessa analogia com os planos da paisagem. O que está muito próximo, chega rápido, mas é isso, não tem nada demais além do que está na na cara. Logo é substituído por algo tão efêmero quanto.
O que está a médio prazo, passa a uma velocidade menor, podemos ver com calma, analisar, escolher, temos tempo para observar. O primeiro plano, veloz, às vezes atrapalha um pouco observar o que está a média distância, mas não impede.
Já o que está no fundo, no horizonte, passa tão devagar que nem parece que estamos nos movendo. Ali temos um amplo leque de possibilidades até conseguir chegar lá. E pode ser que nem seja lá onde queremos chegar. Tudo depende do caminho. Mas é um ponto de fuga, algo onde miramos.
Talvez seja por isso que a utopia seja tão metaforizada como a ideia do horizonte.
Ele está longe, mas está ali. Só saber ir com calma.

Olympus Pen-EE – Shangai GP3 100 PB – La Idea, 2023

Lapsos de Tempo #13

Nada é linear

Andar e caminhar sem destino.
Acionar o corpo para privilegiar o movimento nem sempre é fácil. Primeiramente, é sempre interessante encontrar uma boa razão para tal ação. Segundo, é importante pensar em alguns critérios. Terceiro, há de saber como desfrutar destes momentos.
Boas razões temos aos montes. O tédio causado pela vida contemporânea que praticamente nos obriga a interagir com uma tela todo o tempo, a falta de motivação para o lazer ou para o trabalho, um passeio externo para ajudar a arejar a cabeça e as ideias, a apatia da vida comum e monótona que nada traz de novidade, solidão.
Critérios, esses sim precisam ser tidos com mais cuidado. É importante pensar em um local com calçadas largas, quarteirões curtos, comércios, áreas verdes, vestimentas e calçados adequados. Sair sem rumo requer que, minimamente, passemos por paisagens agradáveis, sem grandes monotonias, mas também sem a agitação de um centro urbano densamente povoado. A busca pelo equilíbrio entre algo onde absolutamente nada chama atenção, e de onde existem tantos estímulos sonoros e visuais que chega a doer a cabeça. Lugares com muitos obstáculos tendem a ficar cansativos rápidos demais, com seus desvios e trombadas. É importante esse espaço equilibrado, de respiro e atenção ao infraordinário, às coisas que acontecem e que são de uma grandiosidade comum duvidável. Praças, parques, comércios, cafeterias, lugares comuns, pontos de interesse turístico, obras de arte, calçadas, arquiteturas urbanas que fluem o olhar e os trajetos, barraquinhas nas ruas, rios e canais limpos. Qualquer cena que agrade ao olhar e nos faça ter mais vontade de conhecer cada centímetro dos espaços.
O desfrute é algo que cada sujeito desenvolve por si próprio. Um sujeito enxerga a possibilidade de sair da estagnação quando pensa em se movimentar. Os olhos treinam para enxergar as pequenas coisas do trajeto, os rostos familiares, pixações, bancos, lojinhas, pessoas aleatórias, animais, prédios, praças, áreas verdes… Tudo que pode existir no caminho faz parte do movimento. Há alguns que curtem fotografar algumas coisas que lhe chamam atenção, outros se detém por um momento para desenhar ou versar sobre como se sentem. Outros apenas guardam tudo isso na memória, como algo que foi vivido e que fez parte deste momento do corpo em ação, em uma das habilidades mais básicas do ser humano: caminhar.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 PB

Desimportância

Não importa a passagem dos cursos de água, nem das correntes de vento.
Não importa o percurso de quem caminha ou se locomove na urbe ou na imaginação.
Tampouco importa se haverá onde descansar o corpo, as vistas ou a mente.
Tudo é atropelado e sobreposto em camadas e camadas de informação inútil, que se apodera de todos os campos e não nos fornece muitas alternativas.
Subverter não é ir contra o estabelecido, mas criar caminhos outros apresentando a não-linearidade das formas, sejam físicas ou ideológicas.
Subverter é sair da total desimportância de tudo, que mantém a inação dos sujeitos, para dar importância a tudo que construímos e para um local onde somos alguém, onde somos alguém que desejamos ser. Livres e fortes.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

Lapsos de Tempo #10

Movimento

-Você diz estar cansado pra sair com a gente, mas vai embora a pé até a sua casa a essa hora da noite? Meio contraditório isso, não? Ou você está cansado, ou não está…!

-O cansaço não é algo que me impeça de caminhar. Desde jovem eu aprendi que minhas pernas poderiam me levar onde quisesse nesta cidade. Quando estava na quinta ou sexta série, passei a ir e voltar da escola caminhando, atravessando uns 4 ou 5 bairros. Comecei a fazer isso para economizar vale-transporte e poder gastar com alguma outra coisa. A cidade ficou pequena para mim, pois tomei gosto pelas calçadas, pelas ruas e por esta vida que surge e se movimenta em meio ao concreto cinza e rígido. Passei a observar cada elemento que surgia no meu trajeto. Pixações novas e antigas, portas, portões, janelas, lojas, graffitis, pequenos fragmentos de qualquer coisa que eu achava no chão. Tudo era motivo preu seguir me movimentando e observando. Quando eu estava no ensino médio arrumei um trabalho de office-boy. Minha tarefa consistia em colocar vários envelopes com boletos na minha mochila jeans cheia de patches punks e entregar para clientes da empresa em vários pontos da cidade. Eu criava uma rota analisando o mapa da cidade que vinha nas primeiras páginas do catálogo telefônico, decorava cada esquina que eu deveria virar, e para onde seguir depois de entregar algum envelope. De noite, eu ia para o colégio escutando walkman enquanto observava cada elemento que me chamava atenção no caminho. Não, eu nunca fui um bom estudante. Tive minha educação básica completamente negligenciada, mas caminhar sempre foi algo que me fazia aprender sobre o espaço em que eu me situava. Eu era um observador de tudo que acontecia no trajeto, de qualquer coisa que fugisse do padrão e atravessasse meu olhar. Você começa a perceber a rotina de cada pessoa que cruza o seu caminho, e acha estranho se em algum dia a pessoa não passou por ali, naquela hora. Você passa a enxergar as atividades das pessoas, você sabe em qual velocidade elas caminham, e começa a se perguntar para onde estão indo. Você sabe quando um outdoor foi trocado, quando a lixeira é esvaziada ou quando a rua será varrida. Você conhece os buracos e imperfeições, e comemora quando a passagem de pedestre foi consertada. Você olha o número das casas, percebe sua diversidade estética, e acha ruim quando a placa de número fica em algum escondido. Você presencia os locais de dormitório das pessoas em situação de rua, como arrumam aquele espaço público em um pequeno local aconchegante, e se questiona o que pode ter acontecido quando elas não mais estão ali… Minha vida sempre foi movimentada pelo ato de caminhar. Vieram outros trabalhos, cursinhos pré-vestibular, viagens, eventos punks em diferentes locais da cidade e da região metropolitana. Lá estava eu indo a pé, sozinho ou acompanhado. Caminhar não me traz cansaço como um trabalho repetitivo e exaustivo, ou uma roda de conversa no bar onde dez pessoas gritam para se fazerem ouvidas em meio à tanto estímulo sonoro, visual e alcoólico. Talvez algum dia você me compreenda. Caminhar, para mim, não é uma atividade física, não é algo que me desgasta, não é algo que eu faça apenas quando estou descansado, não é algo que eu faça para emagrecer, ser saudável ou manter a forma. Caminhar é um modo de locomoção ativa, que faz com que eu não dependa de recursos financeiros, aplicativos, tecnologias digitais. Caminhar é vivenciar outras formas de sentir a pulsão da cidade, de descobrir trajetos e curiosidades, de observar elementos que compõem o espaço, de refletir sobre o quanto a cidade odeia seus habitantes, de deixar que algo diferente te faça escapar da normalidade e da apatia. Caminhar, para mim, é descansar enquanto consigo organizar meus pensamentos durante o trajeto. Quando eu caminho, eu sinto que eu empurro o mundo para trás enquanto me lanço adiante em cada passada. É isso que me move. Talvez você nunca entenda…

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW


Boletim de Ocorrência

Fui roubado, furtado, expropriado, larapiado, escamoteado, surrupiado, usurpado e assaltado das piores formas possíveis. Levaram meus desejos, meus sonhos, minhas vontades, minha disposição, meu apetite, meus anseios, meus interesses, minhas aspirações, ambições, pretensões e intenções. Já não me resta nada além de desespero, frustração, rancor, mágoas, decepções, desencantos, desilusões, desgostos, tristezas, fracassos, derrotas e descontentamentos. Queria muito saber se vocês podem me ajudar, me auxiliar, me assistir, me socorrer, acolher, amparar e contribuir para resolver este meu grande, gigante, imenso, enorme, colossal, extenso, vasto, profundo e complexo problema, adversidade, dificuldade, sufoco, imbróglio, revés, transtornante contratempo trágico.
Como farei para retomar minha vida nesta imensidão louca e insana que é viver sem o mínimo possível? Eu quero de volta minha esperança.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW

Lapsos de Tempo #9

Corrente

Estou seguindo a corrente de ar, direciono os movimentos de corpo para que ela me mantenha no caminho certo. Primeiro, mantenho uma postura firme, mirando pra frente, sem ter um destino certo. Adoto uma forma mais aerodinâmica para subir a velocidade, cortando a resistência do vento. Os ombros estão encaixados para que as asas não fiquem livres, mas elas conseguem girar levemente para acompanhar o impacto invisível da corrente de ar. Assim eu não caio. Depois, sinto cada centímetro do meu corpo receber sua porção de vento que impulsiona e dá velocidade. Não falta destreza nesse pequeno corpo que sobrevoa as vossas cabeças.
Daqui de cima eu vejo tudo, observo tudo. Essas construções novas que surgem em qualquer lugar atrapalham o trajeto. Surgem novas todos os dias. Eles fazem com que os ventos mudem de direção, ou de sentido. Seguimos um pouco errantes neste trajeto sem rumo.
Aqui em cima a vida anda complicada. Existe uma certa competição por espaço entre esse tanto de coisa. São construções, aviões, helicópteros, torres, fios, papagaios e outras aves querendo se guiar pela corrente. Difícil fugir desta lógica quando os trajetos são planejados a curto prazo. Todo mundo aqui tem pressa, o que torna tudo mais complexo. Na corrente não há lugar para todo mundo, mas há outras correntes que guiam até outros lugares. Nunca entendi porque todos vão para os mesmos lugares sempre. A competição é por tempo também.
Sigo firme no meu caminho, desvio de fios com rolinhas, viro a direita para pegar a brisa vespertina que segue via oeste. Aqui é mais escuro, mas é um trajeto que refresca. Mudo para o patamar de cima, desvio de um poste de luz que piscava como filme de terror, a pressão aumenta, e minhas asas não aguentarão muito mais tempo. Volto para o patamar de baixo aproveitando o vácuo deixado por um companheiro, isso me faz descansar. Não sei para onde ele vai, mas preciso aproveitar o máximo possível a chance do descanso. Adiante me desvinculo do companheiro e sigo à direita, próximo de um coqueiro. Tem um tucano que vive ali em cima, hoje ele não estava. Lá embaixo, uma subida íngreme. Aqui, a corrente de ar me leva para cima sem muito esforço.
No horizonte, vejo que o sol começa a baixar. Eu acelero com um voo rasante na diagonal para baixo, pego impulso e subo o viaduto embalado. Subo alguns degraus de ar e alcanço o beiral da Mocadinha. Aqui é o melhor ponto para ver o sol se pôr.
Tem coisas que valem a pena o esforço.

La Idea, 2022 – Lomo Action Sampler, Fujifilm Superia 400

Referências

– Frederico, ultimamente tenho percebido que você está meio para baixo. O que aconteceu?
– Querida, há muitos anos atrás eu achei que minha ideia algum dia seria um sucesso. Mas até hoje eu só coleciono fracassos. Estou atolado em dívidas, o negócio já não é tão mais próspero, e nem o trocadilho com a animação faz mais sentido. Eu investi pesado em marketing, na apresentação de um bom produto. Contratei identidade visual e até adquiri parte dos direitos de imagem junto à empresa gringa. Contratei os melhores funcionários, pagando um salário mais que justo, pensando que o negócio iria prosperar, e hoje, nesta situação em que me encontro, não tenho mais perspectivas. Eu não consigo entender, de verdade, porque o mundo compreendeu que estamos mais próximos dos Jetsons do que dos Flinstones. Nós seguimos as mesmas etiquetas da idade da pedra, e não alcançamos o tráfego aéreo ainda. O mundo que se tecnologizou só o fez por partes. Seguimos tão antiquados e quadrados quanto os nossos antepassados. Apenas substituímos a rocha bruta por uma mistura de metais leves e resistentes, mas ainda assim deixando o rastro de destruição causado pela extração. O solo deixou de ser fértil porque não plantamos mais nada por pura preguiça. Preferimos comer embutidos e enlatados, que são re-fritos em óleos cancerígenos enquanto assistimos a qualquer besteira na televisão. O mundo instala esteiras rolantes nas calçadas das ruas, enquanto obriga alguém a pagar por uma academia para caminhar na esteira. É quase como ter um carro chique, importado, e usar os pés descalços para dar algum tipo de tração. A ilusão do moderno, do tecnológico, do futuro não passa de puros devaneios. A pedra, esse elemento revolucionário que deu origem aos mais diversos momentos da história, foi esquecida. Ela foi lançada contra tanques durante as Intifadas, serviu para erguer pirâmides e templos, suportou durante milênios vários tipos de inscrições e incisões, e reza a lenda que foi usada de suporte para carregar os dez mandamentos. Nada disso mais importa hoje…
– E o que você vai fazer agora?
– Bom, andei pensando e cheguei em algumas conclusões: Nada é para sempre; pedras resistem ao tempo mas não resistem ao humano; Flinstones e Jetsons são animações irrelevantes.
– E daí?
– E daí que me preocupa com qual animação iremos pensar sobre o passado e sobre futuro e em quanto tempo ela ficará obsoleta.
– (???)
– Não te preocupa essas questões?
– Não. O que me preocupa são todas as indenizações que você terá que pagar para seus funcionários, além das contas atrasadas e empréstimos. Você não sabe onde recorrer?
– Sim, vou assistir Galinha Pintadinha.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Double-X 200 PB

Lapsos de Tempo #8

Diário

Hoje acordei nesse lugar estranho. Parece uma caixa com uma porta. Tem outros como eu em outras caixas parecidas. Não vejo ninguém com a cara boa dentro destas caixas. Tem algo ligado na minha veia, parece que estão me injetando um líquido transparente. Sinto uma dor abdominal tremenda, parece que falta algo. Não tenho muitas lembranças de como cheguei aqui, ou o que aconteceu nesse tempo. Tem algo enfiado no meu pescoço que me impede ver o que fizeram comigo, mas sinto uma faixa apertando o abdômen. Acho que estou sem forças…
***
Vejo o casal que cuida de mim na sala de espera desse lugar horrível. Por mais que eu queira sair correndo em direção à eles, sinto muitas dores, acho que estou meio zonzo. Sinto uma fraqueza no corpo. Eles me pegam no colo e me colocam no carro. No trajeto, olho a paisagem, ainda muito desconfiado do que pode ter acontecido comigo.
***
Já fazem alguns dias que sigo a mesma rotina. Me obrigam a tomar vários remédios com hora marcada. Eles são ruins, amargos, e eu sempre recuso esse tipo de tratamento. Essas pessoas que cuidam de mim me colocam deitado de barriga para cima no sofá. Eles limpam o corte fechado com pontos que tem na minha barriga. É um corte grande, e eu sinto um nervoso ao sentir esse produto de limpeza que passam. Nem vou dizer da coceira que dá quando borrifam esse trem marrom no ferimento. Eu sigo sem forças para várias tarefas, mas agora o colchão está direto no chão, eu não preciso me esforçar para dormir no quentinho.
***
Hoje tiraram meus pontos. Foi um baita dum alívio. Não preciso mais usar aquele aparato no pescoço que me impede de fazer tudo. Talvez eu esteja melhor.
***
Toda semana estou frequentando esse lugar, que parece o das caixas, mas que é diferente. As pessoas se parecem, mas a disposição de tudo é diferente. Entro numa sala, sempre a mesma sala quente, e fico sentado nessa mesa de alumínio. Minha pata é raspada com máquina, colocam uma agulha enfiada na minha veia ligada à esse líquido transparente. Injetam algo nessa mangueirinha e sinto algo queimando se misturando ao meu sangue. É bem desagradável. Toda semana é isso. Ao final, recebo umas agulhadas com medicamentos debaixo da pele nas costas, costuma ser bem dolorido. Eu ainda não sei o que aconteceu comigo.
***
Já tem um tempo que não preciso mais ser medicado, já não me sinto mais fraco, minha vida voltou ao normal. Consigo correr, pular, latir e brincar sem sentir dores. Eu engordei alguns quilos, e nem tenho mais a aparência raquítica. Todo dia, antes de dormir, estão me dando um negócio com gosto de peixe, dizem que eu precisarei tomar pra sempre. É gostoso, faço questão de lembrá-los disso antes de deitar.
***
Ultimamente tenho tido dificuldades para urinar. Eu faço bastante força, e costuma sair sangue. Eu não sei o que fazer para que as pessoas percebam essa dificuldade. Mas acho que da última vez eu urinei um pouco de sangue. Acho que eles viram o meu esforço para que saísse isso. Talvez eles me levem ao médico, sei lá.
***
Que dor de cabeça horrível, odeio acordar assim. Nem acredito que estou dentro da caixa com portas de novo. Os rostos nas caixas são outros, não reconheço ninguém. Estou ligado nesse aparelho que enfia líquido na minha veia de novo. Esse troço desengonçado no meu pescoço voltou. Ainda sinto muitas dores e não consigo me lembrar de como cheguei aqui. Estava fazendo alguns exames, enfiaram umas mangueiras em mim, de repente acordo aqui. Não aguento mais isso.
***
Cheguei em casa bem desanimado. Dói bastante para urinar, parece que tem pontos novamente em mim. As pessoas que cuidam de mim limpam a saída do xixi constantemente, talvez os pontos estejam ali. Retomaram com a rotina destes remédios de sabor horrível, são muitos. Me faltam forças para reagir…
***
É estranho mijar por esse orifício que abriram em mim. Eu não sei porque fizeram isso, mas imagino que deva ser pela dor que eu sentia quando tentava fazer xixi. Agora não dói, mas ainda é estranho, talvez seja difícil de acostumar.
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Fazem alguns meses que me sinto super bem, ativo como nunca. Não me levam na clínica há tempos, não sinto dores. Talvez sejam novos tempos, o sol até brilha mais forte que o normal.
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Ultimamente tenho me sentido desanimado, o sol está queimando mais que o normal, tenho buscado sombras. As pessoas que cuidam de mim jogam uma bolinha ou um ossinho de corda, mas não sei se tenho muitas energias para interagir agora. Eu olho para esses objetos e fico pensando se vale a pena o esforço. Não vale.
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Hoje aconteceu algo terrível. Fui tentar fazer cocô e senti algo que não devia escapar pelo ânus. Não era cocô, doía bastante e eu fiquei sem saber o que fazer. Corri para uma das pessoas que cuida de mim e fiz um estardalhaço. Ele me pegou no colo e fomos para a clínica. Lá, me deram uma injeção que eliminou a dor, e enfiaram de volta pra dentro o que não devia ter saído. Fizeram alguns pontos para evitar que saísse de novo. Foi horrível.
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Os últimos dias foram complicados. O que não deveria sair pelo ânus saiu mais 3 vezes. Em duas delas, foi feito o mesmo procedimento de injeção e retorno pra dentro com o conteúdo. Na última vez, me sedaram. Acordei na caixa com porta, bem zonzo, tonto, desorientado. Sentia a dor abdominal, só que desta vez era diferente. Eu não aguento mais esse lugar.
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As pessoas que cuidam de mim me buscaram, desta vez eu nem fiz festa, não tinha energias para isso, além de estar de saco cheio desse lugar. Em casa voltou a rotina dos remédios e da limpeza nos pontos. Eu já nem me importava mais com nada. Me sentia muito fraco para qualquer coisa.
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Fazer cocô é uma atividade muito custosa, me traz muitas dores, e não sai nada. Toda vez que faço força, algo que não deveria sair pelo ânus escapa. Eu não aguento mais isso.
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Me abriram de novo, não quero mais acordar nesse lugar… O que está acontecendo? Desta vez me deixaram aqui por uns 10 dias, morando nesta caixa com porta. Eu observava os rostos, muito desanimados, desolados, tristes… Não desejo isso para ninguém.
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Estou em casa, as pessoas que cuidam de mim fazem carinho na minha cabeça. Não sei porque, mas minhas patas traseiras estão dormentes, não consigo levantar. Apenas tenho movimento nas dianteiras e no pescoço. Fico encarando as pessoas para ver se elas estão percebendo isso.
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Minhas patas dianteiras param de funcionar, estão dormentes, não as sinto. Apenas meu pescoço se mexe. Uma das pessoas me carrega para o quarto e me coloca em um pano macio. Ela fica fazendo cafuné na minha cabeça a noite toda.
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É de manhã, eu apenas consigo mexer os olhos. É uma sensação horrível, parece que não há nada no corpo que não sejam os olhos. Eu solto um grito de dor involuntário, e começa a faltar ar. Um das pessoas se senta ao meu lado chorando, fazendo carinho em mim e dizendo algo que não entendo. Apenas enxergo parte de toda a situação. Eu fico cada vez mais ofegante, respirando muito fundo, escutando um choro ao lado.
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O último ar que circulou dentro de mim levou consigo toda minha essência. Já não pertenço mais à este lugar.
Obrigado por tudo,
e nos veremos em breve!