2024 – #3 – Liberdade

Desconhecer tudo aquilo que a impede de chegar a algum lugar. Foi assim que Nena deu os primeiros passos para uma mudança radical em sua vida. O desconhecimento a fez perder o receio de tentar, de experimentar, de redescobrir os possíveis caminhos e trajetos até qualquer coisa.
Desconheceu barreiras, limites, desconfianças. Reconstruiu tudo que poderia servir de útil no percurso e deixou de lado o inútil para servir apenas de auxiliar para se pensar em algo diferente.
Assim desconheceu o tempo, a neurose, as correntes que a prendiam em um lugar concreto. O mesmo lugar concreto que deixou de existir, pois caiu no ostracismo com o desconhecimento.
À esta atividade de conhecer tudo novamente, Nena nomeou Liberdade.
No desconhecimento, tudo ganhou um novo significado.
Nena se tornou livre.

Texto de fim de ano

2022 está em seus últimos suspiros. E é impressionante a forma como esses marcos temporais nos fazem com que planejemos tudo a partir do próximo ciclo. “Em 2023 tudo será melhor” é uma frase que está latente aqui na minha cabeça. E eu tenho completa noção de que depositar esperanças em situações em que eu não tenho controle não me ajuda a pensar em possibilidades reais de melhorias.
Já fazem 2 anos que meus horários estão completamente confusos, vários trabalhos inacabados, estudos incompletos, perrengues financeiros, dor de cabeça, choros, noites mal dormidas e falta de exercícios físicos. Além da vida social que segue em isolamento involuntário, e eu não consigo sair dessa lógica.
Eu não estou mais aceitando demandas externas de novos trabalhos esse ano. Esse tipo de serviço acaba me desgastando muito, ocupando boa parte do meu tempo e meus projetos pessoais têm ficado cada vez mais esquecidos, incompletos em algum canto do meu atelier, ou perdidos no campo das ideias que não foram desenvolvidas. Minha ideia no fim de ano é concluir os projetos pendentes de terceiros, e iniciar 2023 focando na minha produção autoral, desenvolvendo minhas ideias e publicar aqui sempre que possível for. Eu tenho uma lista enorme de projetos e ideias em post-its virtuais, só esperando alguma dedicação para se tornarem realidades. Não irei cessar de prestar serviços a terceiros, mas irei selecionar melhor aqueles que se encaixam melhor na minha forma de produzir. Acho que me trará menos desgaste, menos dor de cabeça e maior realização profissional.
Também desejo retomar com as atividades físicas, voltar a pedalar com mais frequência. Isso tem feito muita falta. Entre covid’s, fadigas e falta de tempo minhas atividades em cima de uma bicicleta se reduziram drasticamente. Talvez eu precise entrar em uma academia para fortalecer músculos e articulações pra dar conta de retomar as atividades.
Retomar com as aulas de gravura aqui no meu pequeno atelier é uma possibilidade que também me agrada. Era um tempo bom de trocas de ideias e de experiências, conhecer pessoas interessantes e poder exercitar meus conhecimentos na área também. O que seria do conhecimento se ele não pudesse ser compartilhado?
Retomar meus estudos com novas mídias e explorar novas áreas também é uma ideia para o próximo ano. Em 2022 eu fiz alguns cursos online de motion, animação e outros tipos de projetos ligados às artes, com a intenção de expandir minha produção, conseguir alcançar outros lugares e possibilitar novas formas de expressão. Eu cheguei a fazer alguns estudos, mas ainda não consegui levar as coisas adiante da forma como desejo.

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É foda, começo a escrever esta postagem e me vem uma sensação horrível de abandono de sonhos. São muitos projetos inacabados, ou projetos que sequer foram iniciados por falta de tempo ou por estar sempre na busca de trabalhos externos que me fornecem um vencimento mais seguro. Dinheiro, ou a falta dele, parece se colocar sempre acima de qualquer necessidade, nos fazendo desistir de vários desejos por que precisamos pagar contas. Queria escrever uma publicação que pudesse desenvolver uma ideia do que foi 2022, e do que esperar de 2023, mas não consigo pensar em mudanças que me deixem em paz com tudo. Quase tudo depende de dinheiro, e pra ter dinheiro só o trabalho não basta. O dinheiro que entra paga boletos, mas não paga paz e nem elimina a minha preocupação da luta pelo mínimo necessário para sobreviver àquele mês. Não sobra, não rende. Parece que tudo depende disso, inclusive as mudanças que posso controlar acabam caindo nas teias do dinheiro. Estamos de mãos atadas? Fico pensando se um dia isso irá mudar, se o valor que produzimos nos dará uma vida plena, livre.

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Nesse sentido penso em todas as referências anarquistas que li, estudei e pesquisei ao longo desses anos. Nos diálogos com familiares, amigxs, companheirxs de vida e de batalha. O dinheiro não dá liberdade à ninguém, isso é um fato. O capitalismo nos prendeu nessa lógica de precisar monetizar todas as nossas atividades, isso nos trará uma sensação de produtividade, uma sensação de bem estar. Uma paz momentânea, efêmera, que será destruída a qualquer momento. Viver se tornou sinônimo de trabalhar. Nós colocamos todos nossos sonhos em uma mesma caixa de desejos profissionais: O que eu quero ser quando crescer? Ninguém me disse que eu podia escolher ser LIVRE, mas me disseram várias profissões que eu poderia exercer. E eu já trabalhei de officeboy, atendente, garçom, telemarketing, professor, educador, ator figurante, árbitro/bandeirinha de rugby, vendedor, impressor, entregador de bicicleta (bike messenger), pintor de paredes, gráfico, designer, muralista, pintor letrista, transcritor, digitador, entregador, pesquisador em educação. Talvez eu só tenha esquecido de viver sonhos que não tenham a ver com trabalho. Hoje, artista visual, meus sonhos são comprar um jogo de goivas importadas, ou uma aquarela com pigmentos mais bonitos, ou um computador que suporte aplicativos de edição de vídeos. Que diferença faz sonhar com isso ou com qual será a próxima viagem que irei fazer? Ou com qual grupo de amigxs passarei o fim de semana conversando? Ou com qual esporte poderei escolher para me exercitar de forma coletiva? Qual livro será o próximo que irei devorar? Qual filme…? Sonhos e desejos, né?

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2022 chega ao fim como uma voadora no peito. Vai embora deixando um rastro de destruição psicológica que somente 2023 não irá conseguir consertar. Finalizar as pendências será tão complexo quanto aprender a voar. E talvez aprender a fazer analogias melhores entre para a minha lista de atividades para exercitar mais no próximo ano. Aos trancos e barrancos o caminho se abre, se mostra mais acessível, e eu tento aproveitar esse estreito espaço para me organizar e seguir em movimento. “Um passo a frente e você não está mais no mesmo lugar” já cantava Chico Science, e eu acredito muito na potência do movimento como forma de seguir movimentando-se. Será a inércia um princípio de mudanças estruturais? Talvez sim, mas com toda cautela para não cair em uma inércia de não-movimento, dessas que te jogam largado no sofá enquanto você passa por todos os 386 canais da televisão paga sem vontade de assistir nenhum programa, ou as 15 horas diárias que passamos deslizando nossos dedos pela tela do celular em uma timeline infinita cujo conteúdo luminoso e fútil não nos interessa em 99% das coisas que aparecem por ali. Que sentido damos à vida quando nossas atividades se resumem a isso? A rolagem infinita da timeline, o deslizar lateral de um reels/tiktok buscando algo interessante, o mudar incessante dos canais cuja programação anda patética e obsoleta, ou o tempo gasto na busca pelo próximo filme que iremos ver em streaming? Seria essa um tipo de não-vida? Abrimos mãos de nossas atividades para nos prender em pixels luminosos? É frustrante viver isso, é frustrante refletir sobre isso.

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Enfim, não quero me prolongar muito mais nessa publicação. Eu ainda sou uma pessoa com muitos privilégios, tenho familiares e uma rede de amigos e conhecidos que me apóia muito, e eu tento apoiar em tudo que posso também. Talvez seja essa a lição que 2022 nos traz. Fortalecimento das relações, das redes, dos contatos, das ações e movimentos. Fortalecimento das ideias. Resta desenvolver quais serão os próximos passos. Desejo à vocês um ótimo 2023, que possamos seguir em movimentos!!

“O segredo domina este mundo, antes de tudo como segredo da dominação. O espetáculo organiza a ignorância do que acontece e o esquecimento do que, apesar de tudo, conseguiu ser conhecido. Quem esta sempre assistindo esperando o que vem depois, nunca age, assim deve ser o bom espectador. A consciência do desejo e o desejo da consciência são o mesmo projeto que, sob a forma negativa quer a abolição das classes. Que as pessoas tenham a posse direta de todos os momentos de sua atividade .”
Colligere, citando Guy Debord, na introdução de ‘O Poder do Pensamento Negativo’

Todo conhecimento pertence a uma rede

Esse título ficou estranho, mas eu realmente não sei como resumir meus próximos parágrafos em uma manchete. Eu só gostaria mesmo de tentar escrever, um pouco, sobre como as áreas do conhecimento nunca devem ser analisadas de forma isolada. Meu pavor da “instituição escola” vem justamente dessa separação em relação às temáticas que são trabalhadas, a forma como são colocadas em caixinhas de conhecimento, como se tudo fosse fragmentado e fosse dever exclusivo dx alunx reunir e associar tudo isso a fim de criar algum sentido lógico.

Já faz algum tempo que eu estou estudando e me aprofundando mais em algum tipo de educação que busque autonomia dxs sujeitxs, e xs autorxs anarquistas e libertárixs são xs que tem iluminado melhor meu caminho nesse sentido. Elxs entendem o processo educacional através de atividades, práticas e teóricas, sempre coletivas, associando as diversas áreas de conhecimento através de vários pontos de vista, de experimentações, de pesquisas, de diálogos. Pensando assim, uma pessoa que gostaria de cortar uma tora de madeira, fazer lenha e colocar em um fogão para fazer a comida, estará estudando biologia, química, matemática, física, artes, engenharia, educação física, história, geografia, etc. Isso tudo em uma simples ação de colher e cortar madeira. Eu sei que esse exemplo é bem superficial (e estou aberto a discussões), mas ele demonstra um pouco onde quero chegar com as minhas pesquisas.

Acho que esse tipo de ensino traz uma capacidade de associação muito interessante, e me dá até uma frustração em saber que o mais próximo dessa realidade seriam as escolas construtivistas, tão elitistas e inacessíveis. Imagina o tipo de conhecimento que poderia circular se essas práticas e metodologias de ensino fossem em outros ambientes, mais populares?

A minha ideia, então, é contar três curtos casos que aconteceram recentemente, que são desdobramentos de uma mesma coincidência e que me fizeram conhecer um pouco mais da história do próprio estado onde vivo, Minas Gerais.

SITUAÇÃO 1 = Na porta da oficina de bikes. Outro dia eu estava na porta da Canuto Cycles, trocando ideia sobre bikes e aguardando um serviço que estava sendo feito na minha bicicleta. Em algum momento, outro ciclista chegou por lá, e enquanto ele aguardava nós começamos a trocar ideia. Ele disse que morou em Lisboa por um tempo, e contava algumas histórias de lá. Ele citou um caso de que a pessoa com quem ele dividia a casa com ele quase incendiou o imóvel em duas oportunidades. Ele usava drogas injetáveis, e no momento em que desmaiava e adormecia fora de si, todo o aparato usado para preparar a substância seguia aceso, inclusive o fogo. As chamas cresciam muito e o risco de incêndio era real. Seguindo neste mesmo tema, ele disse que em Lisboa tem muitos imóveis que são feitos de madeira, pois depois do terremoto e tsunami de 1755, as casas começaram a ser construídas ou reformadas com estrutura de madeira, uma política do Marquês de Pombal, e era exatamente isso que ajudava a aumentar os focos de incêndio causados por moradores na Lisboa contemporânea. Olha que loucura.

SITUAÇÃO 2 = Ouvindo PodCast. Certo dia eu estava escutando um podcast enquanto lavava vasilhas, e dei play no episódio do Fronteiras Invisíveis do Futebol em que os locutores falavam sobre Minas Gerais. Esse podcast é interessante, une história e esporte, trazendo os aspectos sociais, políticos e culturais na história de algum lugar, seja estado, país, região. Em determinado momento, e claro que não poderia faltar, a Inconfidência Mineira vem à tona. E por mais que eu tenha estudado sobre essa temática na escola, eu nunca tinha associado esse episódio desta forma. De acordo com meu conhecimento prévio, a revolta se iniciou por causa da insatisfação com a tributação da Coroa Portuguesa em relação ao ouro na cidade de Vila Rica (atual Ouro Preto). E meu conhecimento sobre a motivação terminava aí. Sim, sou um péssimo mineiro. De acordo com a pesquisa dos locutores do Podcast, o aumento da tributação que ocasionou essa revolta foi justamente devido aos altos gastos da Coroa Portuguesa com a reconstrução de Lisboa após a destruição causada pelo terremoto e tsunami. A Coroa queria mais ouro para poder financiar a reconstrução, e a fonte de recursos estava justamente na exploração da Colônia.

SITUAÇÃO 3 = Escutando músicas. Um dia desses eu estava reorganizando minhas mp3, renovando a playlist que está no celular, e decidi colocar vários discos que eu escutava há 15, 16 anos atrás. Tem uma banda em específico, oriunda da Venezuela, chamada Los Dolares, que eu conheci através de um amigo que passou sua infância naquele país. Lembro de escutar muito no início dos anos 2000, talvez 2003 ou 2004, porque era um som anarcopunk que soava muito bom para mim. Acho que na época eu devia ser muito novo (e também não entendia muito bem o idioma espanhol/castelhano) e as letras não eram assim uma coisa tããão importantes e sensacionais. Hoje eu tenho muito mais maturidade e conhecimento para escutar as coisas e compreender do que estão dizendo as letras, seja em português, espanhol ou inglês. Talvez seja até por isso que tenho voltado a escutar vários sons que eu escutava quando jovem (afinal, tem pouca coisa boa surgindo na cena punk, e estou cansada destas bandas novas, de ideias políticas isentonas, que só faz as coisas pra chocar o mundo virtual). Enfim, enquanto escutava Los Dolares, uma música começou a tocar. Se chamava “La fiebre del oro”, e possui boa parte dela uma narrativa calma sobre como a história acaba sendo uma arma dos poderosos para vangloriar e registrar seus feitos, ignorando e esquecendo das lutas dos de baixo. Os colonizadores chegaram nestas terras, exploraram tudo o que tinham direito, promoveram verdadeiros massacres, e a história que escutamos e aprendemos é a que os vitoriosos e poderosos nos contam. A letra desta música cita Ouro Preto, em Minas Gerais, como um exemplo disso. Toda riqueza foi explorada e saqueada para manter os padrões de luxo da Coroa Portuguesa, e ainda assim e história que escutamos é a versão dos poderosos. E digo isso incluindo as próprias vozes dessa revolta da Inconfidência Mineira, um movimento de caráter elitista, onde um sujeito foi morto como bode expiatório, onde criou-se falsos heróis, e a elite participante simplesmente o largou lá. Onde estava o povo? Quem essa elite explorava? A quem pertencia as riquezas da terra? Há outros olhares e reflexões sobre o episódio que não tenha sido escrito pelos de cima?

Eu coloquei essas três situações pra conversar um pouco sobre os diálogos que são criados a partir de diferentes mídias. Aqui, os diferentes sujeitos trazem cargas de conhecimentos e de experiências que podem não ter ligação nenhuma aparente, mas que me fizeram criar uma rede de conhecimentos que envolvem vários aspectos históricos, sociais e culturais. E é mais ou menos isso que me interessa nas minhas pesquisas sobre educação. As vivências e experiências fazem todo sentido quando são compartilhadas, quando geram diálogos. Parece bobo trazer essas situações e forçar um tipo de estudo em cima disso, mas é justamente sobre isso que se trata um processo educacional que seja mais inclusivo. Ele é coletivo, transpassa as barreiras de um simples encontro, é um processo contínuo de associações que acontecem em todas as nossas atividades. TODAS.

Por isso que me dá um certo desespero saber como foram as aulas que eu recebi durante a minha formação e como são as aulas que eu acompanhei durante meus estágios. As duas foram horríveis, fragmentadas, completamente sem sentido. As disciplinas, encaixotadas, não conversam entre si. Me lembro de um episódio enquanto fazia o estágio obrigatório, e dei uma aula sobre processos de impressão manual, mais especificamente a serigrafia e os recursos gráficos que enganam nossos olhar. A ideia era simples, utilizando um sistema CMYK (o mesmo que usa sua impressora a cores), ou seja, com apenas 4 cores (ciano, magenta, amarelo e preto), nós conseguimos reproduzir uma gama de milhões de cores, que enganam nossos olhos e nos fazem enxergar imagens fotográficas em um cartaz ou capa de livro, por exemplo. Essas cores, quando próximas ou sobrepostas umas às outras, criam tonalidades que só existem no nosso cérebro, não existem na impressão. A aula foi ótima, xs alunxs se mostraram interessados, fizeram perguntas, e me parece que correu tudo bem. Na semana seguinte, fiquei sabendo que o professor de física daquela mesma turma, começou um conflito com a professora de artes, justificando que “ela estava atropelando a matéria dele, porque COR é assunto de física, não de artes”. Eu achei isso um absurdo, pois na minha cabeça COR é assunto de várias áreas do conhecimento, cada uma tem seu modo de analisar as cores, em diferentes aspectos. Teoria da cor se encaixa em uma área mais voltada para as artes, a formação das cores, ótica e luz se encaixam na área de física. E as dezenas de tons de branco que os esquimós enxergam? E os diferentes verdes da flora e da botânica? E a nomenclatura das cores em cada região? E a diferenciação entre frutos “verdes” e frutos maduros? Isso tudo seria trabalhado exclusivamente na física? É isso que não faz sentido nesse tipo de saber que é “transmitido” e “absorvido” na escola. Ele é fragmentado e impede que a gente consiga associar as coisas, nos atrapalha a construir um conhecimento mais amplo. Ele nos limita.

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Sobre a relação da educação com o punk rock – parte 2

Dando segmento à minha pesquisa sobre a relação entre o punk rock e a educação, trago mais algumas letras que eu acho que tem a ver com minhas indagações no post anterior. Escreverei sobre algumas letras das bandas Solstício (RJ), Constrito (SP) e Ayat Akrass (PR). Essas bandas não se encaixam no gênero punk rock, estão mais para um Hardcore, Metalcore, Rapcore, e esses subgêneros. São bandas com letras bem coerentes e conteúdos muito politizados. Apesar de não serem “punk rock“, acho que o meio em que estão inseridas, nesse underground politizado, são bem similares, e eu acredito que poderiam muito bem dividir palco e público no mesmo evento. Para além dessa diferença conceitual, o que desejo com esse texto é fazer pequenas análises, relacionando o contexto educacional com algumas letras de hardcore, trazendo a discussão para uma comparação com a conteporaneidade.

Trago algumas referências ideológicas de Louis Althusser, e concordo plenamente de que o sistema de ensino é um aparelho ideológico do estado, e que a educação, sobretudo pública, vai tentar reproduzir ou impor o que ela entende que seja necessário para manter as engrenagens do estado funcionando corretamente. A existência de escolas técnicas, por exemplo, serve exclusivamente para formar mãos de obra para o mercado, e é o lugar onde as disciplinas de humanas e de criação/expressão são completamente ignoradas. O estado, hoje, sugere que toda educação siga uma linha tecnicista, e ataca diretamente qualquer disciplina que incita o pensamento e a reflexão sobre o ser e sobre o que vivemos. Não estou dizendo que o estado sempre age assim, mas a opinião pública, muito preocupada com o desemprego, pesca esse discurso como se fosse uma referência boa, e se como todos os jovens e adultos devessem tomar essa referência como futuro.

A música “Espaço de Conhecimento” da banda Constrito faz uma crítica direta a esse tipo de política. Baseados em princípios neoliberais e apoiados pelas agências de financiamentos mundiais (Banco Mundial, BID, FMI, Unesco, Unicef, etc), o estado de São Paulo propunha uma reforma educacional na segunda metade dos anos 90 e no início dos anos 2000, e ao que me parece gerou calorosos debates sobre a implantação do sistema. Foi uma imposição que veio de “cima para baixo” e hoje sabemos que os governantes lograram com as reformas. Acredito que esse tipo de política educacional que ignora os anseios dos alunos, colocando todos sob o mesmo patamar de desejos seja uma das formas mais cruel de confinamento dos sonhos. Elas ignoram que os jovens possam trabalhar em qualquer área, e não somente servir de uma futura mão de obra sem especialiades. Contudo elas continuam sendo prioridade nas agendas de muitos governos porque são um prato cheio para a manutenção de políticas conservadoras e ligadas à direita. Manter uma sociedade dividida em classes, com diferentes níveis salariais e cargas horárias de trabalho, é essencial para esse tipo de engrenagem funcionar. Faz o funcionário depender do salário, geralmente baixo, e não permite tempo de pensamentos e reflexões. Isso evita reuniões de trabalhadores para reivindicar melhores condições, afinal só querem manter o salário em dia. A política, assim, atua para manter o mercado aquecido e funcionando, com muita gente produzindo para gerar riqueza para poucos.

“Diminuir drasticamente a carga horária semanal
Nas escolas da rede pública do estado
Gera milhões de desempregados,
Além dos desdobramentos funestos à formação
Da cidadania dos alunos do estado de são paulo,
A liberdade de criação e desenvolvimento
Das escolas estaduais públicas
Vem sendo continuamente desrespeitada.
Um cenário de desprestígio, (de) demérito,
Para a formação nas áreas de ciências humanas;
Tal como o regime militar operou em décadas passadas,
Medidas impostas de “cima para baixo” somente anunciaram
E realizaram um futuro melhor para poucos,
Implementando-se às custas de enormes prejuízos sociais,
A eles (o governo estadual) importa estabelecer uma
Nova regulamentação do mercado de trabalho.
Mediante uma desregulamentação de profissões,
Disciplinando as classes subalternas via elementos
Coercitivos geradores de um “mal mercado”.
Para dirigirem o processo de “atualização”
Do país aos ditames da globalização.
É impensável a formação de indivíduo
Adaptado ao mercado globalizado
Sem o concurso de uma sólida formação
No campo das ciências humanas.
Acreditamos numa escola
Que seja um espaço de conhecimento
E não um espaço institucional,
Disciplinador e autoritário…”

Constrito – Espaço de Conhecimento

Pensando na questão da educação, a interdisciplinariedade de todas as as áreas de conhecimento é fundamental para a libertação individual e coletiva de qualquer sociedade. É preciso entender que tudo que fazemos em nossas vidas são estudos, desde plantar/colher, a escrever/ler, pensar estratégias, dialogar, criar, produzir, refletir. Tudo  faz parte do pressuposto em que várias áreas de conhecimento estão interligadas, e co-dependem umas das outras para se desenvolverem. Pensa em Leonardo da Vinci, que produzia muita coisa em diversas áreas, pesquisava tudo que o deixava curioso, e só assim conseguiu revoluionar vários campos da ciência, como arte, filosofia, medicina, engenharia, e nunca se limitou unicamente a apenas um campo de pesquisa.

A educação, como é hoje na maioria das instituições, priva os alunos desse tipo de ensino, fragmenta o conhecimento e transforma todo o processo em uma disputa meritocrática. Competições de conhecimentos, melhores notas, provas, fracasso escolar, repetência, prêmios e punições. Valorização de algumas áreas em detrimento de outras, e falta de empatia com os alunos que não se adaptam ao modelo. Esse é o tipo de educação voltado exclusivamente para o mercado. Funciona como uma preparação para o que é a vida hoje, essa competição mercadológica pelo melhor cargo, pelo melhor salário, o desprezo pelas áreas de humanas, que costumam pagar menos (nos empregos públicos e privados) que as biológicas e exatas, por exemplo. A música “Taylor” da banda Solstício exemplifica bem essa ideia.

“Não posso calar ou ceder, me entregar ao torpor. Estou tão cheio de ódio, farto do medo e da dor. Noto que sonho acordado, a realidade é ilusão. Moldando os seus pensamentos te mantêm nessa prisão. E conhecer o inimigo para se opor é impossível, com a mídia ao inteiro dispor da estrutura de domínio que ascende às nações. Donos das nossas vidas, grandes corporações.

Somos partes da linha de produção. Peças descartadas com as variações do mercado.
A cada nova tecnologia nos tornamos mais desgraçados. Buscando liberdade nos encantamos com a servidão.

Uns poucos lutam, gritam, mostram sua revolta. Não quero crer que onde estamos já não há mais volta. Mais-valia é um crime e o povo não acorda. A escola não cria cidadãos mas mão-de-obra. E se a família é uma fábrica de competidores, a favela é destinada aos perdedores. Temos as vidas vendidas na bolsa de valores. Nos alienaram ao nosso próprio destino.”

Solstício – Taylor

A minha questão com o ensino por parte do estado ser uma imposição do que os governantes acreditem ser necessários para a manutenção desse tipo de sistema, se deve ao fato de o estado possuir várias opções de ações,  mas que nem sempre ele opta pelo o que é melhor para a população. Pense nos dias de hoje com toda essa questão do corona vírus e quais ações um governante pode adotar para proteger a sociedade. Há experiências de países que já passaram pelo pior, países que estão passando pelo pior e países que irão passar pelo pior. Há recomendações de cientistas, virologistas, médicos e da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o que deve ser feito para que o estrago não seja tão grande. Nesse sentido o governante pode optar por uma quarentena obrigatória, pelo isolamento/distanciamento social e pelo pleno funcionamento de todas as atividades, sem parar nada. Um governante precisa escolher alguma destas alternativas. Ele pode basear suas decisões em estudos científicos, em experiências políticas de países que já estão lidando com o vírus há mais tempo, pelas sugestões da OMS, ou ele pode optar por suas próprias decisões, sem muitos critérios além da convicção pessoal. Cada governante vai decidir pelo que lhe convier politicamente. No sistema de ensino o funcionamento é bem parecido. Os governantes podem optar pelas políticas educacionais que lhe convém, baseado na ciência, na sociedade, nas pesquisas ou no senso comum, que vai funcionar para aquele tempo de mandato. Depois dos 4 anos, pode ser que tudo mude e venha outra política.

A música “Quadro Negro” da banda Ayat Akrass traz um pouco dessa perspectiva. Políticas de estado e de governo que asseguram a manutenção do sistema de acordo com suas próprias convições políticas. É ignorado o que os indivíduos almejam, os estudantes não são escutados e tudo o que irão saber é somente o que o plano político de ensino determina. Óbvio que alguns professores têm ou sentem autonomia e confiança o suficiente para criar seus próprios planos de estudos, mas é difícil fugir do que é imposto, e atualmente a sociedade exige muito mais nesse sentido (isso é uma antítese da participação da comunidade da escola). Eles exigem coisas que não são dever da escola, e reclamam por algo que não sabem o que é, por exemplo, “doutrinar os alunos”.

“Rachaduras e cacos de vidro estilhaçados pelo chão, em frente às mesmas paredes cinza que insistem manter-se erguidas.
O medo conflitando com a perseverança, a esperança e o amor conflitando com a desestruturação e a ruína. A dinâmica neoliberal sangra o ensino defasando o professorado, alienando e destruindo as possibilidades de progresso do proletariado, assegurando a hegemonia burguesa. A mesma parede cinza por trás do quadro negro, silencia perante genocídio previamente calculado da organização popular. Desconstruindo sonhos e programando futuros corpos-bomba.”

Ayat Akrass – Quadro Negro

Pensando um pouco na questão coletiva nesse momento de incertezas quanto ao futuro e de paralização das atividades educacionais como forma de conter a contaminação por Corona Vírus, a educação entra em discussão novamente. Em Minas Gerais o governo suspendeu as aulas sob pressão social, mas a todo tempo tenta criar alguma política de retorno às aulas, ao ensino por distância, ou dar afazeres para os professores que estão de férias obrigatórias nesse período. Incomoda muito o governo manter os professores parados, e há também uma pressão por parte dos pais, que não sabem o que fazer com os filhos em casa. Se você não acredita, basta ver as várias notícias sugerindo atividades e afazeres para praticar com os filhos dentro de casa. Talvez por isso a cobrança em cima da escola sobre a educação com os filhos. Os pais parecem não saber o que fazer, em como educar, e delega isso ao sistema educacional. Mas não é apenas deixar na escola para que a escola ensine. Eles colocam na escola e querem que a escola ensine o que eles acham adequado. Isso inclui não somente as disicplinas tradicionais, mas ideologias e costumes, travestidos de moral. Essa é a minha ideia sobre o que a sociedade entende por papel da escola.

Eu penso, e volto a repetir aqui, que a escola deveria sim existir, porém como um lugar de construção de liberdade, autonomia, respeito e coletivismo. A educação acontece dentro e fora do embiente escolar, e o aprendizado existe em todas as tarefas que exercemos como indivíduos e em nossa interação com outros. Imagine o que estaríamos passando se não houvesse essa competição por insumos médicos, essa pressão de ter que ficar em casa entediado e, sobretudo, essa briga política na corrida pelo bem estar (ou mal-estar) social? Tudo parte da educação e o reflexo dessa sociedade que vemos hoje são resultados das políticas educacionais que vivemos. A relação com os professores é importante, bem como a relação com os colegas, com a família, com a cidade, com os amigos e com os inimigos. Tudo é educação.

A vida é desafio, já dizia Racionais…

Desde 2009 que eu trabalho com oficinas de arte, mas o trabalho com crianças, jovens e adolescentes é mais recente. Esse tipo de trabalho tem me dado um pouco de ansiedade em seu formato, pois são muitas dúvidas que eu tenho sobre minha atuação, e sobre os jovens que estudam comigo em alguns projetos.

Eu me considero uma pessoa paciente com a maioria das coisas. Acho que muitos processos possuem tempo certo para acontecer, e que tentar acelerar só o transformará em algo ruim, ou não prazeroso. Ter que fazer algo por obrigação torna o processo difícil, e saber que tudo o que você faz será julgado por terceiros também dificulta o processo. Na maioria das coisas que eu faço, tento fazer com tempo e paciência, para conseguir um resultado satisfatório.

Se eu colocar na minha cabeça que eu quero pedalar durante 6 horas seguidas, ou conquistar algum desafio do Strava, por exemplo, eu me preparo para isso, e dedico algum tempo para lograr com meus objetivos. Nem sempre consigo. Há fatores que às vezes me impedem de conseguir pedalar o quanto almejo. Problemas mecânicos, clima, preparo físico, acidentes… Mas não é por falta de paciência, e se não consigo eu entendo que eu me esforcei.

Na arte a mesma coisa. Posso passar horas, dias, semanas e meses trabalhando em uma única coisa, praticando, treinando, buscando alternativas para fazer um único trabalho, tudo feito de forma paciente, pensada, buscando um resultado que seja satisfatório para mim. Às vezes me dá uma agonia precisar criar uma estampa, por exemplo, e saber que ela ficará pronta só depois de algum tempo.

Eu me dedico. Eu pratico, eu treino, e busco aprender o que eu ainda não domino (se é que as técnicas podem ser dominadas). Acho que aí se encontra minha maior dificuldade como professor, educador, oficineiro. Para a maioria dos meus alunos, em apenas uma tarde de aulas eles já deveriam aprender tudo que é possível dentro de um técnica, já sair desenhando e pintando super bem, caprichado. Não se importam com o processo, com o treino, com a prática, com os estudos. Tudo deveria ser imediato. Eu tento pedir paciência, conto histórias sobre o meu processo, começando quando eu era bem novo, copiando com papel carbono os personagens de Cavaleiros do Zodíaco que estavam impressos em revistinhas. Demorou muito tempo até que eu conseguisse desenhar sem copiar. Demorou mais tempo ainda até que eu entendesse que isso é uma coisa que gosto, e que eu gostaria de aprender e compartilhar o conhecimento adquirido. Eu já devia ter meus 23 anos quando decidi cursar artes, mesmo sem saber desenhar. Na Universidade me sentia meio reprimido por estar ao lado de pessoas super talentosas, e eu nem chegava perto de ter habilidades como as de meus colegas.

Eu gostava do processo de produzir, mas não gostava de planejar, nem de criar. Sempre achava que eu estava aquém de todo mundo. Mas o fato de começar a ensinar me deu outra visão sobre tudo isso. Aprendi na marra que o processo é lento, e que devemos ser pacientes. Nunca tive a oportunidade de fazer um curso de desenho antes, meu olho não era treinado para isso, e só depois dos 27 que eu passei a compreender isso melhor.

A prática, o treino, o estudo e, principalmente, a paciência faz com que a gente consiga chegar onde queremos. Isso eu entendo perfeitamente bem. Mas eu ainda questiono como fazer com que xs jovens entendam isso? Tudo tem que ser imediato, tem que ser preciso. Eu realmente não sei como trabalhar isso com elxs. Recentemente eu proibi xs jovens de uma oficina minha de usar borracha, pois eles desmanchavam tudo o tempo todo. Ensinei a fazer esboços, planejar o desenho, ir tratando, fazendo acabamento e arrumando aos poucos, até conseguir chegar no resultado final. Foi uma oficina interessante. Elxs estavam aflitos por não poderem usar borracha, estavam ansiosos por causa da imagem toda embolada e rabiscada. Mas ficaram surpresos com o resultado final, acabado, limpo. Quando fui perguntar à elxs se eles gostaram, se foi interessante ter paciência e construir o desenho aos poucos, elxs me disseram que se tivessem borracha eles teriam feito igual, e de forma mais rápida. Eu sei que elxs não fariam igual, mas elxs não sabem disso. Independente do resultado, o processo delxs é rápido, curto, e talvez essa velocidade em fazer e desmanchar seja mais importante que o resultado final.

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Desenhando rostos

Pensei em fazer alguns trabalhos de desenho de forma mais livre e desapegada, mas eu ainda preciso encontrar uma maneira de fazê-los desapegar dessa coisa realista, desenho e borracha o tempo todo. Fico pensando em várias práticas que fizemos no ambiente Universitário de uma Escola de Artes, e fico pensando se daria certo. Afinal, em uma Escola de Artes, a maioria ali está disposto à esse tipo de experimentação, de reflexão e de discussão. Não sei se os jovens com quem eu trabalho teriam essa disposição de experimentar, de desapegar do desenho tradicional/clássico para surfar em outras ondas. Não sei se o espaço onde trabalhamos seria receptível à isso, pois na Universidade de Artes a maioria dos espaços são de experimentação e provocação. Dentro de uma comunidade, por exemplo, a moral e os costumes estão ligados à outros processos que não se abrem tanto para experimentações.

Ainda que a letra da música tenha pouco a ver com esse dilema onde me encontro, o título é bem propício: A Vida é desafio.

E Sobre a Educação?

Queria poder escrever sobre o sistema educacional de uma forma bonita e prazerosa. Desde 2009 dou cursos e oficinas, desde 2009 estou em uma faculdade, e desde 2013 que eu comecei a me interessar pela docência. Apenas em 2018 eu iniciei formalmente meus estudos para me tornar um professor e, desde então, comecei a refletir sobre a atuação no sistema educacional. E existem coisas que não me atraem nesse universo, e talvez, por isso, não conseguirei escrever de uma maneira bonita e prazerosa.

Fico lembrando quando estava na escola, ótimos anos. De 1994 a 2005 eu frequentei algumas instituições públicas, e sempre me achei um “bom aluno” até certo tempo. A partir da 7ª série, quando eu descobri o que era uma “Escola Plural”, implantada na rede municipal de ensino, eu simplesmente parei de me importar com a escola. Hoje eu entendo o quanto fiquei defasado em várias questões, e isso me custou muitos anos de cursinho para aprender o que eu nunca aprendi. No meu terceiro ano do ensino médio fui parar no Colégio Soma, privado, com aquela promessa de ser aprovado no vestibular da UFMG. Aprendi o que era a UFMG quando eu estava estudando no segundo ano, e minha irmã foi prestar vestibular. No Soma, consegui ir mal em quase todas as matérias, sempre pegava recuperação em várias disciplinas, e até hoje não sei como consegui formar. Foi um período muito pouco proveitoso, e se eu soubesse o que viria nos anos seguintes, teria feito tudo de forma diferente.

Em Julho de 2018 eu iniciei os estudos em Licenciatura em Artes Visuais, continuidade de estudos do meu Bacharelado em Gravura/Litografia. Ao mesmo tempo, trabalhava dando oficinas de arte em uma Unidade de Semiliberdade das Medidas Socioeducativas, dava aulas de xilogravura e serigrafia em meu atelier, e comecei a acompanhar duas escolas da Rede Estadual de Ensino. Uma delas é uma escola grande, famosa, conceituada, estruturada, bairro nobre, muitos recursos, etc. A outra é uma escola de bairro, porém não periférica, situada a duas quadras da minha casa. Posso passar uma eternidade aqui citando diferenças estruturais entre as escolas, mas irei focar na parte que me importa: as pessoas. As pessoas são aquelas que fazem parte da comunidade escolar como um todo, que participam do cotidiano e que, querendo ou não, fazem a escola acontecer. São professores, funcionárixs e alunxs, e eu fico tentando perceber/entender como elxs atuam nesse espaço/tempo.

Apesar da diferença berrante entre as duas escolas, tenho percebido muitas similaridades quando o assunto são as pessoas. Professorxs desmotivadxs por diversos motivos, funcionárixs desmotivadxs por diversos motivos, e alunxs desmotivadxs por diversos motivos. Motivos para a desmotivação é o que não falta. E eu entendo esse sistema indo cada vez mais para o buraco. Não é de hoje que esse formato que chamamos “escola” não funciona. A escola não é atraente, e não oferece mudanças em nenhuma perspectiva. Vejo com frequência alunxs de ambas escolas comparando o local com uma prisão. E eu entendo bem isso. Ali é um local de limitação de liberdades, onde há regras, muitas vezes controversas, e nada daquilo ali dialoga com xs alunxs. Digo isso com clareza, pois entendo que o ambiente escolar também não me atraía quando jovem. Fui entender que era preciso estudar e comecei a buscar conhecimento depois de muitos anos de formado, e hoje, com 31 anos, começo a compreender onde a escola erra. Nas salas de aula vejo várias matérias desconexas, uma falta de interesse dxs alunxs no que está sendo exposto, e uma ideia de que nada daquilo ali importa. A maioria dxs alunxs fazem prova sem nem ler, simplesmente marcam qualquer resposta. A maioria dxs alunxs não se importa com o que x professorx está ensinando, porque nada daquilo ali vai fazer diferença. De fato, tive dificuldades com matemática por muitos anos, até compreender os locais onde eu poderia aplicar uma fórmula matemática. Com a física, a mesma coisa. Também com a química. Também com a biologia, geografia, história. A maioria das disciplinas escolares nunca fizeram sentido para mim quando jovem, e eu só fui compreender na necessidade e na prática, onde esses conhecimentos são importantes.

O formato das Escolas que eu acompanho são muito parecidos. Várias matérias com vários conteúdos, provas bimestrais, recuperação, várixs alunxs fora de sala, várixs alunxs que não levam material, várixs alunxs que nem sequer tiram a mochila das costas, várixs alunxs sendo punidos por indisciplina. E eu entendo perfeitamente a indisciplina. Imagino que eu seria um desses que está de saco cheio disso tudo, e compareço à escola por obrigação, ficaria torcendo para chegar logo o horário de intervalo, e depois a hora de ir embora. Nem sei se o que escrevo faz sentido algum, mas escrevo para que um dia eu chegue a algum lugar com isso.

Na Universidade tenho várias aulas sobre educação, e sistemas educacionais, e formas de entender a docência, e a importância da arte no ensino. Mas tudo segue muito distante da realidade que eu experimento. Muitxs professorxs nunca entraram em uma sala de aula de uma escola pública, e os exemplos que trazem sempre são de escolas construtivistas, dessas super elitizadas, como se fosse igual lidar com problemas de ricx e problemas de pobre. Escrevo de uma forma bem xula, não me importo. Aqui são palavras que saem para tentar entender meu papel nessa história. O que estudamos no meio universitário não tem quase nada a ver com as escolas que frequento. Parece ser tudo muito utópico e lindo ao discutir o papel da arte nas escolas, mas as próprias escolas limitam muito a atuação da arte, e talvez não compreendam a importância da arte como campo de conhecimento. Arte não é fazer decoração de festa junina. Eu entendo a arte como um local de construção de sentido, de expressão, de aprendizado e de compreensão do universo, da sociedade e de seus fenômenos de uma maneira crítica. Talvez eu tenha demorado muito a compreender isso dessa forma, e não acho que seja fácil a compreensão por pessoas que não estão ligadas à isso. No ambiente escolar os campos de conhecimento sempre parecem muito distantes entre si, sem diálogo algum entre eles, e realmente deve ser um saco, um porre, ver essas aulas que nada tem a ver com a outra. Não estou falando aqui de existir recursos audiovisuais, aulas online, tecnologia de ponta para realizar aulas, mas de entender que as diferentes disciplinas podem trabalhar assuntos semelhantes, pois tudo está conectado. Com o tempo tudo foi dividido em diferentes áreas, e sumiram as relações entre o que aprendemos e o que vivemos. Fico pensando em Leonardo da Vinci, que exercia diversos ofícios e foi importante para várias áreas: Engenharia, Medicina, Artes Visuais, Botânica, Teatro, Arquitetura, Matemática, e vários outras áreas que hoje não dialogam entre si. Talvez na época de Da Vinci, o conhecimento geral fosse importante e os campos de conhecimento estavam conectados, e tudo que se ensinava construía um sentido, e fazia sentido.

Mas o sistema escolar limita tudo. Tudo tem seu tempo, suas regras, nada faz sentido, nada é atrativo e segue um formato que sufoca muito mais que liberta. Um ambiente fechado, onde xs alunxs não possuem nenhum senso de pertencimento, destroem todo o equipamento, funcionárixs irritadxs todo o tempo porque não aguentam mais a estrutura, e corpo docente de saco cheio sem entender as razões.

Escrevo aqui porque quero tentar entender o que desejo fazer, o que desejo tentar, e como eu posso ajudar a mudar algo. Não vou mudar o mundo, e nem quero. Não me preocupo com Mercado de Trabalho, pelo contrário, estou pouco “me fudendo” para isso. “Mercado de Trabalho” é um termo que me lembra pessoas acorrentadas a um emprego bosta, fazendo o que não gosta, ganhando stress, em troca de um dinheiro qualquer. “Mercado de Trabalho” para mim segue a lógica do nascer, estudar, trabalhar, morrer; e seguir a vida assim, torcendo para chegar o fim de semana ou as férias, porque somente nesses contextos é que se aproveita a vida, e o resto é trabalho e chatice. Eu gostaria que as pessoas fossem livres para fazer o que quiser, e ser o que quiser, e buscar, da forma que quiser, sua felicidade. Começo a compreender que esse formato de escola talvez sirva para se adaptar a esse modo de vida medíocre, pois segue a mesma lógica. Passar o dia em algo que não gosta, torcendo para o fim do expediente chegar logo, torcendo para chegar o fim de semana, e depois reclamando da segunda feira; tudo isso em troca da eterna promessa de uma vida melhor.

Acho que meu texto saiu um pouco do que eu imaginava. Meus devaneios sobre a educação talvez não terminem nunca. Esse formato não me atrai, e eu já entendi que não atrai xs alunxs, nem xs professorxs. Todo mundo reclama, e não pode propor mudanças, porque as mudanças vão criar pessoas livres, e inteligentes, e críticas. E ninguém quer isso.

O que fazer então? Como posso atuar na educação de uma maneira diferente?

Fico pensando que quando for professor terei muito trabalho. Eu sei que vou ganhar mal. Eu sei que irei ficar estressado, revoltado, cansado da estrutura, que vou reclamar por trabalhar muito, torcer para chegar o fim de semana, e reclamar da segunda feira. Eu sei que vou ter um discurso bonito, de conseguir construir sentido com poucxs alunxs, e isso vai fazer valer a pena todo esse processo. Estamos adaptados à isso. Eu estou adaptado à isso.

Ainda tenho tempo, e há muitas coisas para repensar e refletir. Até lá, farei o que puder, apesar de ainda não saber como.