Caminhar, uma filosofia – Frédéric Gros

Há muito eu não escrevia minhas impressões sobre um livro. Hoje me deu vontade de fazer isso. Em meio à vida caótica, que meneia entre frustrações, pressões e desesperos, decidi começar a ler este livro no último dia de 2024. Sim, eu tinha uma pilha de outras coisas para ler, mas não consigo organizar minha cabeça para dar conta das coisas que eu realmente preciso.
Conheci esse livro através de um amigo, que leu um texto meu mais antigo e disse que se parecia muito com esta obra de Gros. Ele me mandou um pdf para ler, e eu, completamente de saco cheio de ler coisas virtualmente, acabei comprando o livro.
Ele ficou guardado por alguns meses até que, na minha atual sensação de estagnação, me bateu a vontade de lê-lo. É impressionante como os olhos nadam no fluxo das palavras, como se estivéssemos navegando junto com a corrente, ao termos na nossa frente algo que parece dialogar tanto com a gente.
Eu caminho desde que me entendo por gente, e essa prática foi parcialmente substituída pelo bicicletear na vida adulta, onde precisei de um pouco mais de velocidade e autonomia nos trajetos.
Eu não consegui parar de ler, devorei o livro rapidamente, e agora tenho ganas e vontade de caminhar por todos os cantos do globo terrestre. Essa cidade onde moro ficou limitada demais nos meus planos.

“Tudo o que me liberta do tempo e do espaço me afasta da velocidade.”
“A ilusão da velocidade consiste em acreditar que ela faz ganhar tempo.”

Nunca tinha lido, ou sequer sabia dos hábitos de caminhada de Nietzsche, Rimbaud, Thoreau, Rousseau, Gandhi e outras personalidades citadas no livro. Alguns eu curto, outros não. Mas fiquei impressionado com o fato de que a caminhada era um hábito, e cada um a fazia por suas próprias razões, pois sabiam que geravam mudanças, movimentos necessários para fazer a engrenagem da mente funcionar.
Como descrito no livro, caminhar não é uma ação esportiva, é uma ação básica de todo ser humano (saudáveis, sem dificuldades motoras, de locomoção, etc.). Eu sempre pensei assim, e eu só escrevi o texto do Lapsos de Tempo porque tinha sido questionado, pois não queria sair por causa de um cansaço extremo, mas topei voltar caminhando para casa (em torno de 30 minutos de caminhada).
Esses 30 minutos me revigoram, muito mais que me cansam. O que me cansa é ter que esperar ônibus (que envolve caminhada até a parada, uma longa espera, e outra caminhada da parada até minha casa), ficar esperando um táxi ou ter que lidar com a inconsistência de aplicativos tipo Uber. Se é uma distância plausível, eu realmente prefiro ir caminhando, pensando na vida, observando os elementos do espaço urbano. Não vejo nada disso como um problema.

“O verdadeiro sentido da caminhada não é na direção da alteridade (outros mundos, outros rostos, outras culturas, outras civilizações), mas estar à margem dos mundos civilizados, quaisquer que sejam eles. Caminhar é pôr-se de lado: à margem dos que trabalham, à margem das estradas de alta velocidade, à margem dos produtores de lucro e de miséria, dos exploradores, dos laboriosos, à margem das pessoas sérias que sempre têm algo melhor a fazer do que acolher a doçura pálida de um sol de inverno ou o frescor de uma brisa de primavera.”

Caminhar tem essa coisa de ir contra a forma do sistema mesmo, de você ter uma certa autonomia do caminho, do trajeto, da velocidade, das pausas. Sorte é de quem consegue manter esse hábito. Lendo as páginas deste livro, percorri uma boa parte da minha vida enquanto ser caminhante, que sempre preferiu gastar a sola dos tênis movimentando-se na descoberta de novos e velhos lugares.
Foi a caminhada que me fez o hábito de fotografar coisas quaisquer na ruas, de aguçar a percepção, de entender o que é novo naquele espaço, do que é velho e rotineiro, habitual. Há muito que eu não lia algo tão eu, mas tão eu, a ponto deu achar que foi escrita para mim, pensando em mim. Me sinto próximo de Frédéric Gros, sem nunca ter ouvido falar de sua existência.
Foi caminhando, observando e refletindo sobre tudo isso que envolve o viver, que eu comecei a produzir arte e arriscar escrita. Eu crio a partir do que vivo, do que penso, do que vivencio enquanto um sujeito que almeja descobrir o mundo, e tudo que gira junto com ele.
Enfim, grato por finalizar 2024 e iniciar 2025 com essa leitura. Por mais caminhadas por esses percursos e trajetos tão incertos que compõem a vida.

“Escrever deveria ser isto: o testemunho de uma experiência muda, viva. Não o comentário sobre outro livro, não a explicação de outro texto. O livro como testemunho. Mas eu diria “testemunho” no sentido do bastão numa corrida de revezamento: passa-se o “testemunho” a outra pessoa, e esta, por sua vez, começa a correr. Assim, o livro, nascido da experiência, remete à experiência. Os livros não são o que nos ensinaria a viver (esse é o triste programa dos que têm lições a dar), mas o que nos dá vontade de viver, de viver de outra maneira: encontrar em nós a possibilidade da vida, seu princípio. A vida não cabe entre dois livros (gestos monótonos, cotidianos, necessários, entre duas leituras), mas o livro dá a esperança de uma existência diferente. Logo, ele não deveria ser o que permite fugir da monotonia da vida cotidiana (o cotidiano é a vida como o que se repete, como o Mesmo), mas o que faz passar de uma vida a outra.”

“Como é vão sentar-se para escrever quando nunca se levantaram para viver.” Henry David Thoureau

[Linoleogravura] Carolina Maria de Jesus – Desafiando a ordem social vigente

Certo dia eu estava escutando o Podcast História Preta, especificamente a temporada sobre a Carolina Maria de Jesus, e acabei sentindo um certo incômodo. Não é um incômodo ruim, que te paralisa, mas algo que me deixou com uma enorme vontade de produzir e ampliar um pouco a percepção sobre o tema.
Escutar podcasts é algo recente na minha vida, começou em 2020 durante a pandemia por indicação das amizades. No meu atelier, trabalhando/estudando/tentando me manter vivo, ficava horas e horas escutando vários episódios de diversos canais. Eu sempre me imaginava surtando qualquer dia desses com tanta informação sem saber o que fazer com isso tudo.
Foi escutando o episódio 2 – Diário de Bitita, da temporada sobre a Carolina publicada no início de 2023 no canal supracitado, que uma observação proferida por Thiago André (pesquisador e narrador do Podcast) balançou um pouco meus neurônios da criatividade e da reflexão.
Próximo do minuto 26 do episódio é narrado o seguinte:

“Todos os dias ela se sentava na porta de casa, que dava acesso à rua, para ler o tal Dicionário Prosódico, que no contexto daquela cidade, daquele Brasil, aquela era uma cena incomum, quase pitoresca. Uma mulher negra a toa, lendo um livro sobre o sol da tarde. Naquela época, o artigo 399 da lei penal da República, tipificava a vadiagem como crime. A pessoa, geralmente negra, que fosse pega e não pudesse comprovar ocupação ou trabalho, podia pegar até 30 dias de prisão. Carolina ao sentar todos os dias na porta de casa por horas, com seu corpo negro a vista de todos, na rua, sob o sol, desafiava a ordem social vigente, pelo simples ato de ler um livro em público. E não só isso. Por também estar a toa.”

Transcrição feita por mim, pode ser que uma palavra ou outra esteja errada, rs.

Eu sempre fico impressionado com a capacidade que algumas passagens possuem de nos intrigar a ponto de nos dar vontade de produzir alguma coisa. A partir deste trecho, fiquei pensando no conceito de “crime”, e como isso toma uma proporção muito injusta a depender do contexto. Eu cresci desenvolvendo a ideia de “crime” como algo horrível, passível de punição. Algo que prejudicou outras pessoas, o coletivo, a sociedade. Algo que, de tão ruim, deveria ser julgado por pessoas especialistas em crimes.
Mal eu sabia que a noção de “crime” pensada e praticada por especialistas é apenas uma ferramenta de controle das massas, de manutenção para que o sistema liberal burguês siga forte e atuante. As repressões, as punições, julgamentos, vigilâncias, encarceramentos, despejos, violências diversas, tudo isso são ferramentas de controle para manter a ordem burguesa.
Tudo que é lei é adaptado para fornecer mais poder ou menos poder para determinado grupo. Não se trata do que é justo, mas sim de uma negociação que pretende equilibrar a manutenção dos privilégios de alguns e a fúria exacerbada de outros. A lei é a balança viciada que finda este “equilíbrio”.
Uma pessoa sentada na porta de casa lendo um livro é um perigo para quem?

Assumindo discursos

Essas questões entraram muito em foco durante meu processo de reflexão. Bastava alguém ter a ousadia máxima de ler um livro na porta de casa, para encarar 30 dias de cela. Não existe tempo para lazer, diversão, ócio. Se você fosse pobre e não pudesse comprovar um trabalho, você se encaixaria em um perfil criminoso. A situação chega a ser cômica de tão absurda que é.
Fiquei pensando muito em várias situações bizarras que outrora foram permitidas, mas que acabaram caindo ao serem pesadas na balança da manutenção dos privilégios. Uma delas é a escravidão. Só de pensar que poucos anos nos separam de um lugar onde comprar e vender pessoas era permitido, torturar era permitido, ser proprietário de pessoas era permitido, me traz uma certa agonia. E tudo isso fazia parte de uma gama de privilégios brancos, elitistas, coloniais, burgueses. Era permitido por lei e os agentes do Estado atuavam para fazer cumprir.
Talvez essa prática oficialmente deixou de existir porque a balança pesava demais para o outro lado, e valia mais a pena abrir mão das propriedades humanas para manter o sistema fortalecido.
Quem pesa na balança ao lado dos revoltosos contra o sistema não pode descansar. Deixar de lutar significa assumir derrotas.
Carolina Maria de Jesus é herdeira de todo esse processo. Negra, pobre e periférica, ousou pesar a balança contra a manutenção dos privilégios e sentiu na pele a injustiça e a repressão.
A tipificação do que é “crime” normaliza as práticas dos de cima, enquanto brutaliza as dos de baixo. Qual o propósito por trás disto?

Desenvolvendo a gravura

O ponto de partida para planejar esta gravura partiu do trecho transcrito acima: “Desafiava a ordem social vigente…”. Porque ler um livro na rua configurava uma prática de ousadia? Foi a partir desta pequena reflexão que comecei a fazer os esboços. Pensei em um formato de paisagem, com a Carolina ao centro, sentada numa escadinha junto com uma pilha de livros. A frase, adaptada pra gravura, ficaria no céu, como se fosse um fundo, algo que está latente no ar. De um lado a vida: casas, comunidades, morros, roupas, árvores, trabalho, ócio e espontaneidade. Passagens onde circulam rebeldias e ousadias. Do outro, uma barreira de espadas de São Jorge protegem a escritora da pequena viatura que vem para buscá-la. Lugar rígido, duro, acrítico. A ambiguidade dos espaços conflui na figura central, gigante. Sim, ela é muito maior que o braço armado da lei.

O material escolhido para fazer a gravação foi a matriz emborrachada conhecida aqui como Microduro, que simula algo como o linóleo mas que é mais barato e acessível. O esboço foi feito digitalmente, espelhado, impresso em impressora de toner, e o decalque na matriz foi feito com thinner. Alguns reforços com marcadores permanentes foram necessários para trazer alguns detalhes a tona. A gravação com as goivas começaram logo.

Após a conclusão da gravação, foi feita uma impressão de teste para compreender melhor como estava o resultado. Aqui eu utilizei tinta da cor sépia, pois daria um bom contraste para compreender bem as linhas, volumes e detalhes presentes na imagem.
A partir daqui, a matriz passou por mais algumas incisões, corrigindo algumas questões de profundidade, e passou por cortes para separar o primeiro plano do fundo. Como a impressão iria receber duas cores, dividir a matriz facilitou muito o processo de impressão, imprimindo as duas cores de uma vez. Também foi medido o espaço de respiro que teria o papel, e uma borda do tamanho adequado foi mantida.

Ainda no esboço virtual, eu tinha feito um teste de cores para compreender uma boa combinação, algo que fosse agradável ao olhar, que chamasse atenção. No final, optei pela combinação de vermelho e de laranja. Cores quentes, ousadas, que não competem por espaço nos nossos olhares. Cores que focavam tudo o que nos é permitido enxergar.
Foram utilizadas tintas a base de água, misturadas com medium extensor (para que a tinta pudesse ser esticada) e medium retardador (para aumentar o tempo de secagem) e assim poder imprimir com menos preocupações.
A impressão foi feita com baren e colher de pau em papel Marcatto 80g. O tamanho aproximado é de 42 x 21 cm.

A gravura pode ser adquirida na loja virtual ou clicando aqui.

Um Reels com o processo de impressão pode ser visto no link abaixo, na minha conta de Instagram.

Impressão do livro Haicaipiras

Uma das coisas curiosas que ~felizmente~ surgiram com a pandemia, foi a capacidade de nos aliarmos de maneiras mais sólidas com outrxs artistas. Nos víamos todxs em situação de vulnerabilidade, passando apertos pra pagar as contas, isoladxs da vida social, dos contatos, das redes, e a vida virtual de repente surgiu como uma possibilidade de interação (e hoje eu acho isso um saco, hahaha, mas eu entendo que ficamos muito dependentes das redes nesse período, era uma necessidade). Não que as associações, parcerias e colaborações não existissem antes, mas acho que no contexto pandêmico, sobretudo no início, estávamos mais abertxs à produção coletiva.
Uma das pessoas, que logo se tornaram duas e três, que conheci nesse contexto foi o Vitor Pedroso, aka Piruá Gravuras. O mano tem formação em Grego Clássico e Violão Clássico (ou algo assim) , e descobriu a gravura em uma oficina. Logo foi encantado pela técnica e desenvolveu uma rede enorme de artistas gravadorxs, e durante a pandemia conseguiu desembolar tantos contatos que foi o responsável pelo planejamento da maior troca de gravuras que o mundo já viu, o Escambo Gráfico. E eu digo que logo se tornaria duas e três pessoas, porque é impossível acompanhar as atividades do Vitor e ignorar o corre da Lud e do Joca. O Escambo, hoje, é tocado pelxs três (em maior ou menor proporção, rs) e o trabalho que elxs têm desenvolvido merece toda admiração e respeito possíveis.
Digo isso tudo porque, desde que nos conhecemos virtualmente, eu e Vitor trocamos muitas ideias, sobre técnicas, sobre artistas, sobre grego (hahahaaha) e sobre a vida também. Me lembro que meu pai havia adoecido com menos de 1 ano de pandemia por conta de um tumor, e eu andava meio mal da cabeça por conta de tudo que estava se passando. Conversar com o Vitor sobre isso, sobre minhas tensões e preocupações, e sobre tudo que estava rolando foram momentos importantes nesse processo todo.
Esta poderia, muito bem, se tornar uma postagem de boas memórias e elogios, mas eu gostaria de falar sobre outra questão. Eu e Vitor conversamos várias vezes sobre fazer alguma produção em parceria, mas a logística ou o tempo sempre iriam atrapalhar de alguma forma. Até que o Vitor chegou com uma ideia sensacional: produzir uma edição de um livro de haikais de maneira 100% artesanal. O livro já tinha nome, Haikaipiras ~haikais com a temática caipira.
O projeto demorou algum tempo para sair do papel, mas, para minha surpresa, Vitor já havia se associado a outros dois escritores/poetas para dar corpo à obra. Ele me enviou as páginas já diagramadas no tamanho A5, eu orcei o valor do meu trabalho e dos materiais que iria utilizar, incluindo todos os papéis.
Quando ele me pediu para iniciar a produção, já estava tudo pronto. As telas de serigrafia gravadas com toda a parte de texto só aguardavam a passagem da tinta.
Após a impressão de todas as páginas feitas de forma manual, enviei tudo pelos Correios para Araraquara/SP, localidade onde vivem Vitor e Lud (e Joca). Lá, Vitor pegou as páginas do Papel Pólen Bold que sobraram das impressões, e que foram enviados juntos com as páginas impressas, e imprimiu suas ilustrações em xilogravuras, dialogando com o texto e com a temática da obra.

Recentemente chegou um exemplar aqui em casa. Fiz 54 impressões de cada página, e foi o suficiente para criarmos uma edição fechada de 50 cópias, mais 1 cópia para cada pessoa que participou do processo de produção. O resultado não poderia ser diferente. O acabamento e a costura, também feitas de forma manual, é um espetáculo à parte. O resultado é uma obra incrível, que dá gosto de ver, de manusear, de ler, de observar. O projeto foi manual e artesanal em todas etapas possíveis, e nele é possível perceber cada gota de suor nas páginas impressas em serigrafia e em xilogravura.

Talvez a palavra “orgulho” seja pouco para definir a sensação de ver a matéria desta obra. Ver algo produzido de forma artesanal, com vários mãos e mentes em ação, é algo que dá gosto. Enfim, só tenho a agradecer ao Vítor, Lud, Emmanuel e Fábio (e Joca) por me possibilitarem fazer parte deste processo. Cada haiku que leio me tira desse lugar rígido que é a cidade, me leva prum lugar mais suave, mais sereno, mais maleável. Cada ilustração que vejo me faz lembrar de um tempo mais leve, menos corrido, mais contemplativo. A obra me trouxe uma sinestesia que há muito não sentia. São memórias que retornam, sobre pessoas, locais, gestos e situações. Sem palavras que possam descrever o que se passa na minha cabeça quando escrevo sobre a obra.

Obra: Haicaipiras (2023)
Haikus: Emmanuel Santiago
EpiGrama: Fábio Cairolli
Ilustrações em xilogravura: Vitor Pedroso aka Piruá
Impressão do texto em serigrafia: La Idea
Encadernação e Acabamento: Ludmila Siviero e Vitor Pedroso
Tiragem limitada/numerada em 50 cópias

Finalmente saiu a parceria que tanto almejávamos. A primeira de muitas (assim espero). Foi um prazer e um privilégio produzir com vocês. A minha parte do processo de produção foi toda gravada e pode ser vista no vídeo abaixo.
Obrigado.

Fragmentos #2

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Capítulo 2

Foi em uma terça-feira que combinamos o primeiro dia de oficina. Eu já havia ido à sede para assinar o contrato com a empresa responsável pela gestão da Casa e já estava liberado para iniciar os trabalhos. Passaram-se duas semanas desde a oficina de teste. Era um misto de expectativa com ansiedade, mas não pelo trabalho que eu iria fazer, e sim pela forma como eu me apresentaria para aqueles jovens.
Nunca me entendi como uma autoridade, e ser colocado neste papel me incomoda bastante. A autoridade nunca funcionou comigo durante o meu desenvolvimento e, pelo contrário, o medo e a punição que existe nesta forma de relação me traziam muito mais ódio e rancor que vontade de fazer algo. O conceito de autoridade parece que se mistura com o de ser autoritário, e sempre se torna uma relação violenta de poder, nunca de respeito.
Com tudo isso em mente eu entrei em contato com a Terapeuta Ocupacional para marcarmos o primeiro dia de oficina. Agendamos para a terça-feira seguinte, pois daria tempo de planejar as atividades e me organizar com os horários. A oficina deveria iniciar às 14 horas, um horário não muito bom para mim. Considerando que a distância entre minha residência e o local de trabalho era grande, e eu iria de bike, precisaria pedalar bastante debaixo do sol, logo após o almoço. Mas não havia outro horário disponível e ficou decidido que às 14h das terças eu deveria ministrar as oficinas.
No dia combinado eu antecipei o almoço e saí de casa logo após comer. Minha ideia era chegar cedo e ver os materiais que estavam disponíveis para trabalhar. A Terapeuta havia dito que lá haviam vários materiais de outras oficinas e de outros oficineiros e que eu poderia utilizar em minhas oficinas. Eu precisava verificar o que teria disponível para saber com o que poderia trabalhar. Minha ideia inicial era começar com as formas básicas, quadrados, linhas, círculos, triângulos, trapézios, e moldar a imagem a partir destas referências.
É uma técnica interessante, pois simplificamos as imagens complexas em formas simples, e daí conseguimos compreender as proporções de cada objeto, ou de cada parte do objeto. É como se conseguíssemos sintetizar uma imagem ao máximo, quase um abstracionismo, para logo depois reconstruir a imagem.
Minha ideia era utilizar os próprios elementos clássicos das tatuagens para construir essa imagem, pois percebi que a tatuagem é um elemento em comum entre eles. Portanto eu imaginei que crânios, rosas e adagas seriam elementos presentes. Treinei um pouco a desconstrução destas imagens, pensando nas formas básicas que poderiam dar origem ao desenho final. Na minha cabeça e nos meus planos estava tudo certo.
O trajeto foi tranquilo, não estava muito quente, mas o almoço já estava pesando. Fico pensando que seria interessante comer menos no almoço, e levar uma refeição complementar para comer quando chegar à Casa. Acho que assim pesaria menos. Durante o trajeto fiquei observando o que estava em meu caminho, no asfalto. Desde pequeno eu caminho olhando para o chão, buscando moedas perdidas. Hoje eu pedalo tentando compreender as coisas que estão no meu caminho e que podem me oferecer risco. Pregos, arames, cacos de vidro, tachinhas, pedras, buracos, poças de óleo automotivo. Nunca achei dinheiro pedalando, mas já achei vários animais mortos. Já vi pombos, ratos, gatos e cachorros. Uma vez eu vi um gambá. Outro dia vi um morcego. 
É impressionante a quantidade de coisas que se fazem presentes nas vias, enquanto os automóveis passam dominantes ofuscando qualquer outra presença naquele espaço. Parece que nada mais importa para os motoristas. As vias não são locais onde poderiam haver reflexões interessantes. É só um caminho, e pronto.
Cheguei na Casa com um pouco de cansaço, mas sem maiores problemas no trajeto. Toquei a campainha e aguardei alguns minutos até ser atendido. Novamente quem abriu a porta foi um funcionário que solicitou meus documentos e me deixou esperando lá fora mais alguns minutos. Após ter a entrada permitida, a Terapeuta me recebeu e me apresentou ao restante da equipe técnica que se encontrava no local. Um Advogado, duas Pedagogas, uma Psicóloga, e mais duas funcionárias que eu não me lembro qual função exerciam. Após breves saudações, a Terapeuta me levou ao quarto de materiais, aquele com a mesa redonda, estantes e uma janela grande que dava para o pátio.
Ela me mostrou que haviam muitos materiais ali que poderiam ser utilizados e abriu várias gavetas de uma estante de madeira. Ali haviam vários papéis de diferentes qualidades, um rolo enorme de papel kraft mais espesso, vários potes de tinta guache escolar, um estojo com vários lápis de grafite, um estojo com vários lápis de cor, um estojo de canetinhas hidrográficas com pontas finas e grossas, uma sacola plástica com vários pincéis dentro, borrachas, apontadores, estiletes e 3 latas de spray para uso genérico.
A Terapeuta me disse que eu poderia fazer uma lista de materiais para as oficinas, que ela faria um orçamento em vários locais para solicitar a compra, mas que poderia demorar. Eu disse que dava para trabalhar com o que tinha ali, mas que seria bom ter mais materiais disponíveis no futuro.
Ali na sala eu separei o estojo de lápis e de borracha, uma resma com vários papéis e já me preparava para descer, quando um Agente me abordou dizendo que não era para descer com todo esse material, que era para ser apenas um lápis e uma folha para cada jovem, dois apontadores e duas borrachas. Nada mais que isso. Ele me disse que haviam 15 jovens no pátio e que o material deveria ser a conta. Ele me disse que era uma medida para não haver furtos de materiais e nem brigas. Eu retornei para a sala e separei exatamente o material que ele me disse, além de um lápis e um papel para mim. O Agente conta tudo e anota em um bloquinho de papel. Ele abre o portão e eu desço para o pátio onde alguns jovens me aguardavam na mesa grande, outros estavam em seus leitos e havia um que ainda almoçava. Apenas três dos jovens que estavam ali participaram da primeira oficina há duas semanas atrás.
Eu me apresentei novamente, disse quais atividades faríamos e comecei a distribuir os materiais. Um Agente recolheu os apontadores e me disse que os jovens deveriam ir até a sala dele para apontar seus lápis. Ele me disse que as lâminas dos apontadores poderiam ser armas em caso de conflitos.
Enquanto iniciava algumas explicações sobre as formas básicas e como poderíamos utilizar isso na nossa composição, um dos jovens se lembrou de mim, me chamou de Boy de novo. Ele olhou a minha tatuagem no braço, uma coruja cega pousada em cima de um crânio, e disse que seria legal aprender a desenhar caveiras, para ele virar tatuador. Percebi que muitos dos jovens não estavam compreendendo o exercício, fiquei pensando se a minha explicação foi confusa. Pedi para que prestassem atenção ao meu papel, pois iria demonstrar na prática como poderíamos trabalhar, e que o esboço do papel poderia se tornar um passo a passo para pintar murais nas ruas. Comecei fazendo círculos para demarcar algumas áreas e aos poucos meu desenho de linhas básicas foi se transformando em um crânio. Usei o comentário do jovem para exemplificar a minha ideia de exercício. Disse que a construção do desenho deveria ser uma prática constante, e que nós ficávamos cada vez melhor a cada desenho que fazíamos.
Neste momento a Terapeuta desceu para acompanhar a oficina. Dois jovens começaram a indagar a ela quando poderiam utilizar o telefone. Outros jovens diziam que não queriam fazer a oficina e que preferiam descansar no leito. Ela falou com eles que a participação na oficina é obrigatória, que eles não tinham escolhas.
Um dos jovens começou a escrever letras de rap e funk no papel, outro começou a desenhar uma pomba, três jovens apenas observavam tudo, e alguns se mostraram interessados nas minhas explicações. Estes mais atentos fizeram desenhos muito similares aos meus, como se eu estivesse ensinando um passo a passo de como fazer um crânio. Eu dizia que eles deveriam tentar fazer seus próprios desenhos também, de algo que eles gostem ou se interessem, que não era interessante apenas a cópia.
Um jovem falou que seu desenho estava horrível, amassou o papel e jogou na lixeira. Ele solicitou outro papel e eu disse que não havia, era apenas um papel para cada. Eu dei meu pedaço de papel para ele e disse para ele usar a borracha quando precisasse desmanchar.
Haviam apenas duas borrachas para aproximadamente 15 jovens, em uma mesa retangular extensa isso foi um grande problema. Eles passaram a querer desmanchar tudo o tempo todo. Começaram a jogar borrachas de um lado para o outro. Um dos jovens viu que a borracha estava disputada e segurou uma borracha em sua mão enquanto desenhava. Outros jovens começaram a discutir sobre uma borracha lançada que atingiu o braço de um deles. Os ânimos esquentaram e os jovens passaram a se ofender. Eu disse que haviam duas borrachas e que elas poderiam ficar sempre na mesa, mas que o erro não era uma coisa ruim e que poderia ser usado a nosso favor enquanto desenvolvíamos nossos desenhos. Nós aprendemos com o erro e o utilizamos como comparação para chegar mais próximo ao acerto, ou ao objetivo que almejamos.
Não sei se os jovens compreenderam muito bem essa ideia, mas seguiram com seus desenhos de uma maneira mais calma. Logo após a retomada da atividade, percebi que havia fila na sala do Agente para poder apontar o lápis. Um jovem estava apontando seu lápis e a ponta quebrava dentro do apontador. Com isso, os jovens que estavam aguardando começaram a reclamar que ele estava fazendo hora pra não participar da oficina. O Agente tinha liberado apenas um apontador, e isso gerou um conflito pela utilização da ferramenta. 
O jovem que desenhava pombos fez uma marca de dois tiros no peito da ave e disse que a pomba branca tem dois tiros no peito, fazendo alusão à música do Facção Central. O jovem que escrevia letras desistiu de escrever e passou a apenas conversar com os outros jovens. O que ainda almoçava se integrou ao grupo e reclamou que não havia material para ele. Como ele trabalhava no período da manhã, ele almoçou apenas mais tarde e não foi contabilizado pelo funcionário que fez a contagem dos materiais para mim.
Os jovens me perguntam o que significam as minhas tatuagens e eu pergunto o que significam as deles. Eles não me respondem e eu não respondo à eles. Eu disse que tatuagens não precisam de ter significados e um deles diz que toda tatuagem tem significados. Na Quebrada tudo tem um significado.
A oficina começa a chegar em seus minutos finais e os jovens começam a me devolver seus desenhos e os materiais. Dois jovens queriam ficar com seus desenhos e a Terapeuta disse que não poderiam. Eles apontaram o desejo de terminar o desenho na próxima oficina e eu disse que os traria para eles terminarem. Todos precisam assinar o seu desenho, independente do que fizeram. O Agente contou o material devolvido e me autorizou a subir. 
A Terapeuta começa a folhear os desenhos na sala de materiais e vai me dizendo tudo que é considerado apologias para o Sistema. Talvez seja melhor evitar a temática do crânio, pois isso teria a ver com a morte e que poderia gerar um simbolismo diferente para aqueles jovens. A letra de rap e funk que um dos jovens escreveu estava repleta de ofensas que poderiam ser apologias. A pomba branca com dois tiros no peito era uma apologia direta e objetiva. 
Eu deveria fazer um relatório no Livro de Registros assinalando todos esses fatos, inclusive os conflitos no pátio, os nomes de quem estava presente, quem se destacou e quem deveria ser punido. Eu guardo todo o material na estante, e na hora de preencher eu me recuso a identificar os jovens desta forma. Folheio os papéis, escrevo o nome daqueles que estavam mais interessados e digo que a oficina ocorreu sem maiores problemas. Guardo os papéis com os desenhos em uma pasta destinada para isso na estante.
Na saída eu falo com a Terapeuta que essa tática de limitar a quantidade de materiais poderia gerar mais conflitos, além de barrar o fluxo da atividade e fazer com que o trabalho não renda tanto quanto o esperado. Ela me disse que era algo com que eu deveria lidar melhor, porque os materiais ali sempre seriam limitados. Perguntei também sobre a questão dos jovens que não queriam participar, se eles poderiam fazer outras atividades, e ela me disse que eles não tinham escolhas. Todas as atividades eram obrigatórias, e nos primeiros 45 dias de cada jovem, eles eram obrigados a se manterem reclusos e participativos. Esses 45 dias iniciais serviriam como um período de avaliação e que seriam enviados ao Juiz. Era um período determinante para a pena, para saber se poderia ser mais branda ou mais restritiva e punitiva.
Apesar de saber do período de 45 dias, optei por não alterar o meu relatório. Eu não sabia há quanto tempo cada um daqueles jovens estava ali. Nem me interessava saber por quais crimes eles foram enquadrados. Me dava uma pena o fato de eles serem obrigados a fazer algo que não queriam, e depender disso para saber sobre o futuro naquela Instituição ou no Sistema Penal.
Me despedi dos demais funcionários e saí da Casa. Enquanto pedalava pensava sobre o caos que foi a oficina, como ela não rendeu de acordo com o esperado. Me deu uma agonia saber que os jovens não poderiam ficar com seus desenhos após a oficina, e que não havia a possibilidade deles trabalharem nas práticas artísticas quando eu não estivesse ali. De que então adianta eu falar sobre praticar, sobre o exercício diário de se propor ao treino, ao desenvolvimento de um desenho, de uma ideia, de uma observação, se até disso eles seriam privados?
Acho que a sensação de frustração me distraiu em meu trajeto e quando eu pensava nessas questões, um carro me fechou para virar a próxima esquina. Não me atropelou por pouco. Um xingamento saiu de minha boca, com um ódio que veio do fundo do pulmão, sendo expelido da maneira mais agressiva possível.
O motorista parou o automóvel e disse que ele estava atrás de mim e tinha buzinado avisando que iria passar. Eu disse que se ele iria virar a rua, poderia ter esperado que eu passasse em segurança. Ele argumentou que tinha buzinado antes de fazer isso. Eu disse que a buzina dele não me faria desaparecer da frente do carro e que ele deveria ter esperado para não colocar minha vida em risco. Ele proferiu alguns xingamentos e arrancou o carro. 
Eu nunca vou entender um automóvel que está atrás de um ciclista e buzina. Eu não sei o que esta buzina significa. Buzinas talvez sejam a forma de comunicação menos efetiva que existe. Ela pode significar várias coisas, mas pode também significar nada. 
Nesse caso, eu estava tão distraído com minhas frustrações que eu nem tinha escutado a buzina. De qualquer forma, um som proferido do volante do carro não me diz nada, não me salva, não me alerta. O sujeito escolheu me ultrapassar e virar a esquina a apenas alguns centímetros da minha bicicleta. Ele escolheu colocar minha vida em risco a troco de alguns segundos.
Esse desrespeito me frustra mais ainda. Chego em casa, cansado e com a cabeça quente. O dia foi cheio e eu precisava repensar a oficina durante a semana. Agora com noção de várias limitações em relação ao material disponível e já entendendo um pouco o comportamento daqueles jovens. A próxima oficina teria que ser mais proveitosa que essa. Não poderia repetir isso de novo.

Falta sensibilidade

**Provavelmente conterá spoiler**

Eu ainda estou tentando digerir um pouco da leitura d’O Estrangeiro, de Albert Camus. Não é em si uma obra muito difícil de ler, é bem fácil até, uma leitura bem fluida, com capítulos curtos. Mas foi uma história que me deu agonia do início ao fim. Monsieur Meursault é uma pessoa inafetável. Nem sei se esse termo existe, mas o protagonista não se sensibiliza com praticamente nada que aparece no decorrer das páginas. Parece que ele compreende os acontecimentos como uma linha que já foi escrita, que tudo precisa ser dessa forma, e que a ação dele não mudaria nada. Ele se mostra solícito com alguma situação apenas quando solicitado for, nunca por vontade própria. Ele não questiona acontecimentos, decisões, vontades, apenas aceita e convive com tudo isso, aparentemente, numa boa. Um falecimento, um emprego, um relacionamento, um caso de violência doméstica, um adoecimento, uma perseguição, um assassinato. Tudo passa com uma naturalidade que não transpassa a superfície das emoções, fica só ali, como algo que aconteceu. Nesse terreno infértil, talvez a reação impensada seja a única resposta que possa desenvolver.
É óbvio que existe um certo exagero, mas não duvido que existam pessoas assim, completamente superficiais, que apenas vivem o que deve ser vivido. Existe um curso da vida que a gente segue cegamente, sem ser afetado pelas margens? Tenho minhas dúvidas.

***

Acho que vale a pena mencionar a influência desta obra no último episódio da sitcom Seinfeld. A espetacularização do julgamento e da sentença, baseada na falta de sentimentos dos réus, em um resgate histórico de atitudes apáticas, reacionárias e talvez até desrespeitosas. Nem a prisão consegue afetar esses sujeitos de forma mais profunda. É apenas uma aceitação de que isso ocorreu e, portanto, devemos aceitar. A arte imita a arte.

Fragmentos #1

INTRODUÇÃO

48 minutos de bicicleta. Esse é o tempo que gastei da minha residência, zona noroeste, para uma entrevista de trabalho, na zona norte. No caminho presenciei um acidente. Um carro entra na contramão e acerta em cheio um motoqueiro que fazia a conversão olhando apenas para o lado em que os carros deveriam vir. É um choque absurdo ver tudo acontecendo. Apesar da rapidez do som do impacto, tudo pareceu em câmera lenta. O motoqueiro é lançado para o alto e cai em cima do capô do carro. A moto é arremessada até o portão fechado da loja da esquina. Várias pessoas correm para ajudar ou para saber o que tinha sido o estrondo. Eu fiquei lá um pouco, mas não podia perder a entrevista.
O dia estava quente, com uma massa de ar seco pairando na paisagem. Comecei a pedalar por volta das 12:30h, pra dar tempo de chegar na entrevista que seria às 14h e retomar o fôlego, secar o suor. Péssimo horário para pedalar.
Cheguei no local, ainda cansado e suado, toquei o interfone e um funcionário me atendeu. Disse que tinha vindo para uma entrevista de oficinas, ele pediu meus documentos e me deixou aguardando ali na rua por uns 12 minutos. Pareceu uma eternidade. Ele me disse para entrar e esperar em uma sala de reuniões onde havia apenas uma mesa e 4 cadeiras em volta. Em seguida entraram duas mulheres para conversar comigo sobre o trabalho. Uma que estava lá somente para anotar e fazer a ata, e outra, terapeuta ocupacional, guiaria a entrevista.
Elas me explicaram que no local funciona uma Casa de Semiliberdade, ligada ao Sistema Socioeducativo. Ali, jovens cumprem penas alternativas e precisam participar de atividades ligadas à cultura e à educação durante a estadia. Minha tarefa seria a de fornecer semanalmente oficinas de artes visuais, mais ligadas ao graffiti, durante 90 minutos. A remuneração era de R$80 por hora de trabalho, ou R$120 por oficina.
Me interessei pela conversa e elas me proporcionaram um tour pelo local. Era uma casa de dois andares, sendo que o de cima, no nível da rua, era a parte de escritório, reuniões e trabalho dos técnicos, e a de baixo, no subsolo, era composto pelos alojamentos e por um pátio grande onde aconteciam as diferentes atividades. Combinamos uma data, daqui dois dias, para uma oficina experimental com a finalidade de avaliação das minhas práticas de oficineiro.
Depois de acertados todos os detalhes burocráticos, peguei minha bicicleta para ir embora. A volta seria mais intensa. O sol já não estava mais tão forte, mas a quantidade de subidas seria maior. 1h12 para chegar em casa. Apesar de mais longo, o tempo passou rápido. Na minha cabeça maquinaram novas ideias do que eu poderia trabalhar naquele local, já planejava uma oficina experimental que pudesse atender à expectativa de jovens naquela situação, ainda com toda preocupação em ser bem avaliado pela Instituição que planejava me contratar.
Já em casa, espalhava as notícias aos meus familiares de que as coisas estavam melhorando. Seria meu terceiro trabalho como oficineiro de forma simultânea, e cada um deles teria sua parcela de contribuição para minha renda mensal.
Essa noite eu dormi bem.

CAPÍTULO 1

Passaram-se dois dias desde então. Hoje poderia ser uma data daquelas em que se comemora algo especial. Uma nova experiência se inicia, e com isso novas ideias, novos contatos e novas possibilidades.
No decorrer destes dias, conversando com a Terapeuta Ocupacional, criei um plano de oficina utilizando os materiais que eles disponibilizavam. Eram exercícios simples para eu poder, talvez, conhecer um pouco mais esses jovens. A ideia era usar apenas lápis e papel. Minha intenção era que os jovens se desenhassem no centro e, a partir disso, iniciassem uma série de ligações com coisas que os rodeiam. Poderia ser qualquer coisa: locais, eventos, objetos, situações, memórias…
Me organizei um pouco melhor com os horários, pois já tinha noção do tempo que levava para chegar ao local. Não levei nenhum material específico, pois sabia que não os usaria nessa oficina. O dia estava quente, mas não tão insuportável quanto no dia da entrevista. A ida, repleta de descidas, fornecia uma brisa que aliviava a sensação térmica, seguida por um trecho plano mais fresco que contorna a lagoa rumo à Zona Norte. Enquanto pedalo evito ao máximo trafegar na contramão dos carros, e ciclovia é uma coisa que me dá ojeriza, mas tem vez que não tem jeito. Para evitar um trecho com trânsito mais complexo, ou cortar caminhos, se faz necessário a contramão ou a ciclovia. Muitas vezes a calçada ajuda, mas não gosto da ideia de colocar a integridade física de pedestres em risco.
Quase chegando à Casa existe uma descida em direção a um ribeirão antes do acesso ao bairro de destino. Descida íngreme, repleta de areia que alguma obra ou caminhão derramou na via. Meu pneu traseiro, próprio para uso em asfalto, não dá conta de frear e eu derrapo durante a descida. Não caio no ribeirão por pouco. Um susto apenas. Acho que todas as pessoas que pedalam passam por sustos no decorrer de seus trajetos. Ainda que não tenha acontecido nada demais, o nervosismo sobe com o susto, e vem o receio de sofrer um acidente mais grave.
Chego na Casa ainda com os batimentos um pouco acelerados. Cheguei cedo, com um bom tempo para tomar um gole de água, retomar fôlego e diminuir a umidade na roupa causada pelo suor. A Terapeuta Ocupacional vem me receber, e ela me mostra a sala de materiais enquanto conversamos sobre os jovens. A sala de materiais tem uma janela grande com vista para o pátio de atividades. Lá de baixo os jovens me observam quando me aproximo da abertura. Um frio na barriga toma conta daquela situação e talvez meu nervosismo e ansiedade fiquem bem aparentes. Primeiro dia em uma experiência nova é sempre assim. Você sabe que é capaz, já fez isso várias vezes, está cansado de saber como funciona, mas a ansiedade é inevitável.
Na sala de materiais fico sabendo onde ficam guardados papéis, lápis, tintas guaches, borrachas, apontadores, trabalhos anteriores… Também tem uma mesa redonda com 4 cadeiras dessas que são conjugadas com um apoio lateral, típico de salas de aula, mas que não se encaixam para serem utilizadas com a mesa grande. Também tem uma estante com livros diversos. Muitos livros de projetos de rap que deram certo, livros didáticos escolares, alguma literatura mais complexa, e muitas bíblias. Realmente a quantidade de bíblias me chamou a atenção, porque se destacam muito. Em uma estante de cinco prateleiras, uma delas era só de bíblias, duas de livros diversos, uma de papéis, uma de equipamentos velhos que estavam largados ali, como um projetor quebrado e uma televisão de tubo 14 polegadas.
A Terapeuta me informou que a minha oficina sempre será dividida com outra atividade. A minha será interna e a outra externa. Ela argumentou que fazem dessa forma para alternar as atividades, e os jovens com melhor comportamento na Instituição podem escolher o que querem fazer naquele dia. Essa estratégia também se fazia necessária para diminuir o grupo com que cada oficineiro trabalharia, facilitando a dinâmica das atividades.
A Terapeuta me informou que a minha oficina sempre será dividida com outra atividade. A minha será interna e a outra externa. Ela argumentou que fazem dessa forma para alternar as atividades, e os jovens com melhor comportamento na Instituição podem escolher o que querem fazer naquele dia. Essa estratégia também se fazia necessária para diminuir o grupo com que cada oficineiro trabalharia, facilitando a dinâmica das atividades.
Saímos da sala e fomos descer a escada que ficava no corredor da Casa. Antes de acessar o pátio um funcionário me parou, contou todo o material que eu carregava, recontou e anotou. Na volta, a conta teria que ser igual. A Terapeuta me disse que isso era uma medida para evitar furtos e impedir que qualquer material possa ser usado em caso de conflitos.
Chegando no pátio, já haviam cerca de 15 jovens sentados em uma mesa retangular me aguardando. A Terapeuta me apresentou, logo em seguida eu me apresentei. Disse que estava ali para dar oficinas de artes visuais, para praticar um pouco a memória e o desenho e, a partir disso, ir desenvolvendo outras técnicas. A maioria dos jovens tinham tatuagens aparentes nas mãos e antebraços, alguns possuíam tatuagens nos rostos e pescoços. Enquanto eu olhava as tatuagens deles, eles olhavam as minhas. Essa foi a primeira interação onde aconteceu uma identificação entre pares. Era perceptível que naquele espaço havia uma riqueza histórica e cultural enorme, uma diversidade de experiências que me levaram a escrever os fragmentos que narro aqui.
Coloco os materiais na mesa, digo a minha proposta e iniciamos os trabalhos. Não posso me alongar muito, pois 90 minutos de oficina passam bem rápido. Os jovens desenham de acordo com o que falo. Alguns com mais vontade, outros com menos. O vento fica tentando levar as folhas embora, e nota-se o esforço dos jovens para manter os papéis na mesa. Eu olho para o que estão fazendo: uma figura humana no centro, objetos diversos ao seu redor. Vejo armas, números, animais, bolas de futebol, letras de músicas, padarias… Fico feliz em saber que boa parte está interessada na tarefa.
Os jovens fazem muitas perguntas sobre mim: De onde sou? Com que trabalho? Quanto ganho? O que significam minhas tatuagens? Respondo apenas algumas perguntas, pois não tenho intimidade com eles para dizer algo além do profissional, mas acho que o local de origem é importante para criar diálogos. Eu digo e eles me chamam de Boy, porque o bairro onde moro é classe média.
Durante a oficina, a Terapeuta me observa e conversa com os jovens. Uma outra técnica fica mais distante apenas analisando. Há 5 funcionários disciplinadores responsáveis pelos jovens no pátio e nos alojamentos. Os jovens chamam os funcionários disciplinadores de “Agentes”. Ao que parece, toda a interação humana naquele local ocorre sem problemas, pelo menos foi assim à primeira vista.
O tempo de oficina termina e a maioria dos jovens não concluiu seu  desenho. Alguns simplesmente largam o material ali de qualquer jeito. Já outros querem continuar e terminar o que começaram. Os materiais são recolhidos e contados para conferência. A Terapeuta me chama para subir e eu despeço dos poucos que ali ainda estavam, buscando alguma interação comigo, falando algo sobre o desenho ou sobre minhas tatuagens.
Subimos de volta para a sala de materiais e, enquanto eu guardava os materiais utilizados, a Terapeuta me dizia que o Sistema possui algumas regras e deveres, tanto para os oficineiros quanto para os jovens. Lá no pátio os jovens não poderiam se envolver em conflitos, deveriam manter a organização do espaço. Eram obrigados a participar das atividades e não poderiam fazer apologias ao crime. Ao final da minha oficina eu deveria fazer um relatório escrevendo sobre como cada jovem se portou, o que fizeram, quem se destacou ou quem fez apologias. Essa questão da apologia me deixou com uma série de perguntas sobre o tema. A Terapeuta me respondeu que fazer apologia seria falar sobre o crime que cometeram ou sobre o artigo no qual foram enquadrados, falar sobre drogas, facções, escrever siglas, desenhar ou fazer referência a armas, gesticular siglas com as mãos ou apontar gestos para outro jovem, falar sobre morte ou assassinatos, e mais uma série de fatos e situações genéricas.
Ela me disse que os desenhos que eles fizeram na minha oficina estavam repletos destes elementos, e que seria meu dever reprimir no ato e colocar no relatório final para esses jovens receberem as devidas sanções e punições. Eu fico em silêncio, apenas pensando nisso. Ela disse que vai redigir o contrato e que eu terei que ir na sede do Programa para firmar e poder começar a trabalhar.
Vou embora de lá pensando em várias questões. Enquanto pedalo, tenho minhas reflexões sobre como é aleatório o julgamento do que seria apologia. Vários dos exemplos que a Terapeuta me deu, a meu ver, dizem respeito às próprias experiências de vida daqueles jovens, seus contextos, suas atividades. Muitos viveram isso em toda sua trajetória. Isso ficou bem claro para mim, sobretudo quando olhava para seus desenhos. Para mim a arte deveria ser livre, serviria para iniciar diálogos, dotar de sentido as ações e relações, ajudar na cognição e em vários tipos de interações. Os desenhos daqueles jovens poderiam dizer muito mais sobre eles do que qualquer conversa, onde filtramos algumas coisas objetivas que não queremos expressar.
Apesar de um primeiro contato parcialmente frustrante, retorno pra casa pensando em como melhorar a dinâmica destas oficinas, o que poderia fazer para contornar essas situações burocráticas institucionais.
Para os próximos passos eu deveria apenas aguardar, pois teria que assinar contrato e alinhar meus horários com a equipe técnica para as oficinas semanais naquela unidade.
Eram tempos de planejamento.

Pela ferrovia subterrânea

O primeiro livro que li em 2021 foi o “Underground Railroad – Caminhos para a liberdade” do escritor estadunidense Colson Whitehead. Que livro cares leitores, que livro!

Foi impossível parar de ler. Li de uma maneira frenética, adentrando todo esse universo e não consegui parar de ler nem quando o livro terminou. Fui ler o livro extra que a TAG manda, bem como pesquisei sobre o autor.

Não sou crítico literário, então vou escrever o que quero escrever sobre minha leitura aqui. Não espere uma crítica profunda, cheia de relações históricas, análises de personagens e essa coisa toda. Quis escrever sobre esse livro por conta das analogias com o anarquismo que eu encontrei nesse livro.

O anarquismo é uma ideia e um movimento. Age por debaixo dos panos, nas vielas, nos becos, no submundo, nas entrelinhas, na literatura, na ação, na coletividade. A Ferrovia Subterrânea me trouxe muito dessas ideias. Uma rede construída por várias mãos e mentes anônimas, para fazer com que negros consigam sua alforria na fuga para estados não-escravistas. Soa como o anarquismo e toda sua “ilegalidade” na busca pela liberdade e pela autonomia. Existem pessoas dispostas a ajudar e, no final, todos se ajudam por um bem maior. No final, no processo, no começo.

A ideia surge, é compartilhada. E quem são os que ousam buscar os caminhos que chegariam lá?

A Ferrovia são as redes. O Trem são as ideias. O Destino é a liberdade.

“A ferrovia subterrânea é maior do que seus operadores. É todos vocês também. Os pequenos aguilhões, os troncos principais, temos as mais novas locomotivas e os motores mais obsoletos, e tem um carro movidos a manivela como aquele. Ela vai a toda parte, há lugares que conhecemos e a lugares que não conhecemos. Temos esse túnel bem aqui, correndo embaixo de nós, e ninguém sabe pra onde ele leva.”

Não lembro a página

Várias pessoas em várias lugares diferentes, construindo a Ferrovia, sem saber exatamente onde chegariam, mas com a certeza que conseguiriam a liberdade. Ideias circulando, redes se articulando. O anarquismo é muito maior que as pessoas. Não pode ser morto, nem acabado. É um conjunto de ideias e ações, experiências e compartilhamentos.

A Liberdade é um conceito diferente para cada ser. Bem como autonomia. Basta compreender o significado dessas palavras e você terá chegado no seu destino? E o que basta saber para que todos chegássemos aos nossos destinos?

A Ferrovia Subterrânea para mim foi uma analogia às redes de contrainformação dos “de baixo”. Não consegui desvincular desta ideia em nenhum momento do livro.